• Nenhum resultado encontrado

A identidade como conceito primitivo

3.2 IDENTIDADE EM LINGUAGENS DE 1 A ORDEM

3.2.1 A identidade como conceito primitivo

Nos textos usuais de lógica, normalmente se costuma assumir a iden- tidade como sendo um conceito primitivo. Neste caso, assume-se que L contém além dos símbolos acima um símbolo de predicado binário, A, por exemplo, e define-se que a fórmula t = s seja uma abreviação para A(t, s), bem como que t 6= s seja uma abreviação para ¬A(t, s).9 Assim, o símbolo (ou o predicado) ‘=’ é chamado de símbolo de igualdade ou de identidade, e intuitivamente afirmamos a = b quando a e b forem ‘o mesmo objeto’. Como diz Hodges (HODGES, 1983 p. 69), seria bom se encontrássemos uma teoria ∆10emL , na qual os modelos são exatamente as L -estruturas com a identi- dade padrão (como veremos abaixo, a diagonal do domínio). Porém não há tal teoria. Para toda aL -estrutura U com a identidade padrão, é possível provar que existe umaL -estrutura B, a qual é modelo das mesmas sentenças de L como U, mas que não tem a identidade padrão (a prova disto pode ser vista na bibliografia citada). Este fato é usualmente expressado dizendo que a iden- tidade não é uma relação de primeira ordem “elementar” (HARRY, 2008). Dito de forma coloquial, o fato de assumirmos — como fizemos acima — um predicado binário para representar a identidade, por si só não nos garante que semanticamente este predicado irá realmente representar o que temos como sendo a identidade em todas as estruturas da linguagemL .

Não obstante, existe uma teoria ∆ deL que será verdadeira em to- das asL -estruturas com a identidade padrão, ou seja, pode-se assumir certos postulados que irão sempre funcionar para todas sentenças verdadeiras deL em todas as estruturas deL . Em certo sentido, podemos dizer que esses postulados irão ‘reger’ o predicado acima de modo que o ‘force’ a represen- tar o que temos intuitivamente como sendo a identidade. Os postulados que podemos assumir e que irão ‘governar’ a identidade são os seguintes:11

9Percebe-se de pronto que o símbolo = não pertence à linguagemL , mas à sua metalingua- gem (como dito, é assumido como uma abreviação de modo a facilitar o trabalho).

10Uma teoria é um conjunto de fórmulas Γ que seja fechado para deduções, isto é, Γ = Cn(Γ), onde Cn é o Operador de Consequência de Tarski. Por exemplo, no Cálculo Proposicional Clás- sico, se tivermos um conjunto Γ = {α, α → β }, este conjunto não é uma teoria pois de Γ ` β , mas β /∈ Γ.

11Historicamente, estes postulados são atribuídos a Frege em seu Begriffsschrift de 1879. Para uma visão mais moderna, pode-se consultar, por exemplo, as obras (MENDELSON, 1979, p. 79;

1. (=1) [Lei da Reflexividade ou Princípio da Identidade da lógica elementar]: (∀x(x = x)).

2. (=2) [Substitutividade]: ∀x∀y(x = y → (A(x) → A(y)), onde A(x) é uma fórmula qualquer que contém a variável x livre, e A(y) resulta da anterior pela substituição de x por y em algumas das ocorrências livres de x, desde que a variável y seja livre para x em A(x).12

É fácil ver que toda a estrutura deL com a identidade padrão é um modelo de (=1) e (=2) acima. A partir destes postulados, e dos demais axi- omas do Cálculo Quantificacional Clássico, pode-se provar que a igualdade é simétrica e transitiva.13 Ademais, como dito acima, o símbolo de igualdade aqui é tomado com um significado intencional: se temos que x = y, então x e y devem ser um e a mesma coisa (quando ‘=’ é tomado como a identidade padrão), o que então relaciona os conceitos de igualdade e de identidade (cf. (HODGES, 1983 p. 68).). Além disso, com tais postulados, também pode-se provar que a identidade na lógica clássica tem as propriedades de uma rela- ção de congruência, ou seja, é uma relação que preserva as propriedades dos objetos (no sentido de que se afirmamos algo sobre x (o denotarmos com al- guma propriedade), e se tivermos que x = y, então a mesma propriedade vale para y). Isso vale também para as relações de qualquer aridade, como por exemplo, as binárias: se temos que aRb, e que a = c e b = d, então também temos que cRd. Isto é importante, porque uma congruência é uma relação de equivalência, de modo que podemos particionar o domínio no qual ela se aplica ‘separando’ os indivíduos em classes de equivalência de elementos.14

Na lógica elementar, no entanto, não podemos quantificar sobre pro- priedades ou relações (coisa que como dissemos pode ser feita em lógicas de ordem superior), e sendo assim os postulados acima nos proveem unicamente um esquema. Isso faz com que ocorra o seguinte fato (MENDELSON, 1979, p. 83/4; FRENCH e KRAUSE, 2006, p. 251ss.; KRAUSE, a aparecer). HODGES, 1983 p. 69; CHURCH, 1956, p. 280ss.).

12Segundo Krause (KRAUSE, a aparecer), o postulado da substitutividade é algumas vezes identificado com uma forma de um princípio mais geral denominado de Indiscernibilidade dos Idênticos(II), que diz que entidades que são iguais (idênticas) são indiscerníveis: podem ser substituídas uma pela outra salva veritate, como dizia Leibniz.

13Para tal prova, veja (MENDELSON, 1979, p. 79/80). Vale ressaltar que certos autores já assumem a simetria e a transitividade da identidade como axiomas que regem a identidade (este é o caso de Church (CHURCH, 1956)). Todavia, ambas as formulações — como já se percebe — são equivalentes, ou seja, delas se deduzem a mesma classe de teoremas.

14Em qualquer modelo para uma teoria ∆ acima com igualdade, a relação de igualdade é uma relação de equivalência. Se esta relação é a relação de identidade no domínio do modelo (ou seja, o conjunto dos pares da forma hx, xi, sendo x elemento do domínio conforme veremos à frente), então o modelo é chamado normal (MENDELSON, 1979, p. 83).

Semanticamente, como dito, o predicado = deve ser entendido (já que temos como pano de fundo uma interpretação pretendida ou intencio- nal) como representando a identidade do domínio da interpretação da nossa linguagemL , que de acordo com (=1) expressa a ideia intuitiva que todo ob- jeto é idêntico a si mesmo. Como sabemos, na semântica usual, esse domínio de interpretação é um conjunto não vazio D, e a identidade sobre D é tomada como sendo o sub-conjunto ∆D= {hx, xi : x ∈ D} chamado de diagonal de D. Se os postulados acima que regem a relação de igualdade fossem tais que se pudesse ‘atribuir’ a eles a diagonal de D (ou, dito de outra forma, se tais postulados refletissem tal diagonal), então aparentemente teríamos captado a noção de identidade formalmente. Porém, os postulados (=1) e (=2) não ga- rantem que essa interpretação seja realizada de forma unívoca, isto é, apenas na diagonal mencionada. O motivo disso é o seguinte.15

Em resumo, basicamente o que ocorre é que usando apenas (=1) e (=2), acabamos por não conseguir distinguir entre a interpretação da iden- tidade dada sobre indivíduos do domínio ou sobre certas classes de indiví- duos. Para ver como isso acontece, suponha que temos uma estrutura padrão U= hD, ρi para nossa linguagem de primeira ordemL16, onde ρ é a função denotação usualmente definida (isto é, para toda constante individual c da lin- guagem, ρ(c) (notação: cD) é um elemento de D, para todo predicado n-ário R, ρ(R) = RDé um subconjunto do conjunto Dn(a n-ésima potência de D), e para qualquer símbolo funcional n-ário f , ρ( f ) é uma função de Dn7→ D). Como dissemos anteriormente, a relação que interpreta o símbolo primitivo de identidade é uma relação de equivalência de um tipo específico. Vamos chamar de ≈Dtal relação. Tomamos agora outra estrutura B = hD0, ρ0i com uma outra interpretação para nossa linguagem: o domínio D0agora é o quo- ciente de D pela relação ≈D(isto é, D0= D/ ≈D), de modo que denotamos a relação que interpreta o símbolo de igualdade nesta nova interpretação (es- trutura) por ≈D0. Assuma também f : D 7→ D0 como sendo uma função que associa a cada elemento x ∈ D sua classe de equivalência f (x) ∈ D0(ou seja, a classe de equivalência f (x) na qual x pertence). A partir disso, definimos então que:

1. f (x) ≈D0 f(y) se e somente se (see) x ≈Dy

2. Para todo predicado n-ário R da linguagem, se ρ(R) = RD, e ρ0(R) = RD0, então RD0( f (x1), ..., f (xn)) sse RD(x1, ..., xn).

3. para todo símbolo funcional n-ário g da linguagem, se ρ(g) = gD e ρ0(g) = gD

0

, então gD0( f (x1), ..., f (xn)) ≈D0 f(gD(x1, ..., xn)). 15Adaptado de (FRENCH e KRAUSE, 2006, p. 252-254; MENDELSON, 1979, p. 82ss.). 16Sobre a definição de estrutura, veja a seção “Indiscernibilidade em uma estrutura” abaixo.

4. Para toda constante individual c, temos que cD0 ≈D0 f(cD).

A partir de tais definições, podemos facilmente provar que as estru- turas U e B são elementarmente equivalentes, ou seja, todas as fórmulas da linguagem que são verdadeiras em uma delas, são verdadeiras na outra: para qualquer sentença α(y1, ..., yn), temos que

U|= α(y1/x1, ..., yn/xn) see B |= α(y1/ f (x1), ..., yn/ f (xn)).17 Para nossa discussão, o que importa ressaltar é que este resultado de equivalência entre estruturas mostra é que a linguagem de primeira ordem L não consegue diferenciar entre as interpretações dadas para o símbolo de igualdade em U e em B (isto é, entre a interpretação “na diagonal dos obje- tos” do domínio, e a interpretação “na diagonal das classes de equivalência” do domínio, respectivamente). Com isso se percebe como os axiomas (=1) e (=2) acima não caracterizam a diagonal sem ambiguidade: não consegui- mos saber (a partir desta lógica) se estamos tratando de objetos do domínio ou de classes desses objetos, já que, intuitivamente, este resultado diz que todo elemento do domínio D0age como um elemento de D também, fato que se reflete também na relação de identidade entre tais elementos. É essencial- mente este o sentido em afirmar que tais postulados não fixam a interpretação dada à identidade como seria desejável, ou que os mesmos não garantem que a interpretação da identidade será realmente a diagonal: como o que vale para os objetos x, y etc. de D também vale para as classes (coleções de elementos de D) f (x), f (y) etc., nunca poderemos saber a partir da linguagemL , como dito, se a identidade que estamos trabalhando está ‘agindo’ sobre os objetos do domínio ou sobre as classes de tais objetos! Como mostrado por Men- delson (MENDELSON, 1979, p. 83), para a identidade em primeira ordem sempre é possível provar a existência de tal f e assim sempre incorrer neste problema.18

Neste caso, pode-se então concluir dizendo-se que os axiomas da iden- tidade acima apresentados (bastante intuitivos, por sinal), somados à lingua- gem de primeira ordem nos quais estão expressos, não permitem axiomatizar de um modo único, sem ambiguidade, a identidade do domínio como desejá- vel.19Tal como também afirmamos, é neste sentido que a noção de identidade 17Duas estruturas são elementarmente equivalentes sse não se pode distinguí-las pelos recursos da linguagemL . A prova de que tais estruturas são elementarmente equivalentes pode ser encontrada em (MENDELSON, 1979, p. 82ss.).

18Todavia, é bom observar que esse problema não é um problema da linguagem da lógica de 1aordem — tal como o texto deixa transparecer — mas sim da própria lógica de 1aordem em si.

19Como comentaremos abaixo, para caracterizar de um modo único a diagonal ∆ Dnecessi- tamos de variáveis de segunda ordem. Todavia, como também mostraremos, isso vai depender

não é uma noção lógica “elementar”. Apenas para enfatizar tal situação e fi- nalizar esta seção, vale citar aqui o que diz (DA COSTA, et. al. 2012):

O predicado binário de identidade deve satisfazer es- sas condições [os postulados =1 e =2] para todas as

relações da estrutura em questão. A identidade, con- forme expressa pela diagonal do domínio, é ela mesma uma relação de congruência sobre qualquer estrutura E. A dificuldade é que, para muitas estruturas, a dia- gonal não é a única relação de congruência, pois [como vimos] podem existir outras relações que igualmente satisfaçam os axiomas acima. O que os axiomas =1e

=2nos garantem é que o símbolo de identidade sem-

pre será interpretado na relação de congruência em uma estrutura [e apenas isso, não fixando a interpreta- ção, como dito]. Nos casos em que há apenas uma tal relação, esta será a diagonal e, assim, não há proble- mas na caracterização da relação; no entanto, nos ca- sos em que há mais de uma congruência sobre E [coisa que como vimos é sempre possível de ser construída na lógica clássica], o símbolo ‘=’, dado pelos axio- mas anteriores, não denotará necessariamente a rela- ção expressa pela diagonal, mas será interpretada em uma relação de congruência que não será necessaria- mente a identidade, entendida agora como a diagonal do domínio [...]. A estratégia usualmente adotada para evitar essa situação consiste em postular, na metama- temática, que o símbolo da relação de identidade da linguagemL receberá sempre uma interpretação fixa para cada estrutura: a diagonal do domínio. Assim, a interpretação desejada é garantida por decreto; o que raramente aparece devidamente justificado nas discus- sões sobre o assunto.