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4. Memória, imaginação e cotidiano na produção de Marepe.

4.4. O abrigo como metáfora.

O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos. Então ela é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa onírica (BACHELARD, 1990, p.75).

Marepe apresentou “O Casamento” (1996), no III Salão da Bahia, em 1996 (Figura 71), uma instalação que tem como objeto central um fogão azul de quatro bocas, característico da década de 1970. A tampa do fogão aberta serve de suporte para fotografias do casamento de seus pais, e uma mangueira grossa sai dele até um garrafão de água tombado, sem água, mas com carvão dentro. No local de dois botões de abrir o gás, um rádio de automóvel que tem vínculo com um fone de ouvido, de onde pode-se ouvir a história de Dom Ratão e Dona Baratinha.

Relacionando este trabalho com a memória do artista e seu universo pessoal, é possível fazer uma associação com o devaneio das imagens de infância.

Marepe declara esta forte relação com sua memória, suas visões do passado. O artista fala sobre estas imagens, e as relações com os trabalhos são evidentes: “O fogão, por exemplo, que eu fiz no MAM, eu lembro de umas coisas, que eu pegava uns azulejos, fazia tipo um fogãozinho, pegava umas plantas, colocava uma vela em baixo e ficava vendo a folha modificar” (2003, s/p).

É também evidente, através da narrativa do artista e de suas próprias declarações, que o universo familiar é de grande importância para o desenvolvimento do seu trabalho.

Em determinado momento, o artista, em entrevista à autora, ao ser questionado sobre alguma memória da infância declara “A minha infância, foi uma infância muito solitária, muito preso dentro de casa” (2003, s/p).Na sua resposta é perceptível dois indícios que podem ser pontos de ligação com as noções de imagens poéticas da infância, encontradas em Bachelard. Percebe-se o vínculo com a casa e a situação da solidão, fator importante para a criação do poeta. Os objetos de Marepe resgatam uma ou mais imagens fugidias de um passado que volta em forma de devaneio do pensamento do artista, como esclarece Bachelard:

Mas o devaneio não conta histórias. Ou, pelo menos, há devaneios tão profundos, devaneios que nos ajudam a descer tão profundamente em nós mesmos que nos desembaraçam da nossa história. Libertam-nos do

nosso nome. Devolvem-nos, essas solidões de hoje, as solidões primeiras. Essas solidões primeiras, essas solidões de criança, deixam em certas almas marcas indeléveis. Toda a vida é sensibilizada para o devaneio poético, para um devaneio que sabe o preço da solidão (2001, p.93-94).

Marepe traz à tona, nesse trabalho, uma lembrança que fortalece seu vínculo com a memória da casa, com a importância da casa natal, com a primeira casa, que é uma fonte de devaneios. ”É no plano do devaneio, e não no plano dos fatos, que a infância permanece em nós viva e poeticamente útil” (BACHELARD, 1993, p. 35). Marepe fala desta casa: “acho que um acontecimento muito forte que aconteceu comigo, que me marcou de fato, foi a perda de uma casa, a primeira casa que eu morei” (2003, s/p). A partir das variações da memória das casas em que viveu, é possível visualizar as imagens que refletem diretamente no trabalho do artista. “A casa natal nos interessa desde a mais longínqua infância por dar testemunho de uma proteção mais remota” (BACHELARD, 1990, p. 80).

Continuando o depoimento sobre a casa natal, o artista demonstra como seu vínculo com ela é forte:

Eu lembro que, com o tempo, eu voltei a essa casa [a primeira na qual o artista morou] várias vezes, e entrava na casa – ele [o avô] vendeu essa casa pra outra pessoa – e eu entrava e circulava na casa, como se fosse a minha. Eu não tinha essa consciência de que tinha sido minha casa, depois a dona da casa foi me explicando, que ali não era mais a minha casa. Eu lembro que chorei muito (2003, s/p).

Dentro deste contexto da casa, “O Casamento” é uma espécie de explosão da memória, aliada à imaginação criadora, responsável pela concretização do devaneio na instalação artística.

Algumas curiosidades intrigam o expectador mais ávido por decifrar este trabalho. Um galão de água é unido ao fogão, através de um tubo, como se substituísse o bujão de gás, dentro do galão há carvão. Suas relações com a casa serão lapidadas e as recordações aparecerão com mais clareza, ligadas a fatos mais específicos.

“O Telhado” (1998) (Figura 72), que também participou da Mostra do Redescobrimento em 2000, possui a característica da força de converter as imagens em poesia. Como coloca Bachelard, “A arte é então uma reduplicação da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono” (1993, p.17)

Se não é possível ver os horizontes que o telhado de Marepe carrega em sua memória, não se pode fazer esta relação familiar, a casa de Marepe não tem apenas um cômodo. “O Telhado” é pura poesia, devaneio do artista que oferece um repouso a um espectador desprevenido em uma mostra com tantas informações como foi a do Redescobrimento.

Muitos dos trabalhos de Marepe funcionam como catalisadores, provocam uma abertura de interpretação muito ampla, como no caso de “Tudo no mesmo lugar pelo menor preço” (2002), inserido no contexto da 25ª Bienal de São Paulo. Mas no momento que Marepe monta um telhado, ele evoca a simplicidade de uma casa no interior da Bahia, em Santo Antonio de Jesus. Está implícita a noção de abrigo, o telhado não é deslocado de uma casa, ele é construído por um profissional sob o auxílio e comando das idéias do artista. Marepe mostra sua poética, sua beleza e simplicidade. Inconscientemente evoca Bachelard. “Para dormir bem não é preciso dormir num grande aposento. Para bem, não é preciso trabalhar num num reduto” (2003, p. 78), como se, na segunda parte, pudesse associar a participação de um devaneio de infância.

No catálogo da exposição “Além do arco-íris” (1998), realizada na Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP em São Paulo, a imagem de um telhado é associada a uma poesia de Marepe:

...Subirei aos telhados e chegarei à minha casa / Encontrarei pai, mãe, irmã / pegarei meu pai e colocarei num braço / pegarei minha mãe e colocarei no outro e entre as pernas minha irmã / Na boca levarei os amigos / Subirei ao céu e soltarei todos num gesto de felicidade / Felici – Feli – Fé (FAAP, 1998).

Então, o telhado demonstra um grau de intimidade com a família, com a casa. Uma imagem maravilhada que apresenta o artista sobrevoando a pequena casa de Santo Antonio e anunciando com assopros de amigos a importância dos laços afetivos com o mundo, assume um gesto de empenho em pensar um mundo fantástico. É preciso lembrar que o telhado foi o último trabalho do artista feito com a ajuda de seu pai, que faleceu logo depois.

Na nossa infância, os devaneios nos dava a liberdade. E é notável que o devaneio mais favorável para receber a consciência da liberdade seja precisamente o devaneio de criança, só é um paradoxo quando nos esquecemos de que ainda pensamos na liberdade tal como a sonhávamos quando éramos crianças (BACHELARD, 2001, p.95)

Outro trabalho que possui essa relação com o abrigo, com a casa é o desenvolvido para a exposição “Terrenos”, realizada no Instituto Goethe Salvador, em 2000. Uma construção, parecida com rochedos de presépios feitos de papel amassado, posicionado no nível do chão e tomando o longo de uma parede e seu

canto. Tipos diferenciados de papel compunham uma espécie de gruta. A entrada, em formato irregular, tinha o chão “polvilhado” com pigmentos em pó coloridos.

Levando em conta os materiais e a dinâmica de montagem, é possível encontrar relação com o fato de sua mãe ter sido professora de educação artística. O ato de amassar papel, numa maneira lúdica de compreender o material, com o fim de explorar suas potencialidades, faz parte de muitos dos recursos usados na educação infantil. Os pigmentos, a necessidade de construção, podem ser visualizados no pai.

O universo íntimo da casa, neste trabalho, fica explícito na declaração do artista:

O processo de criação parte da ação do amasso de papéis. Trata-se de um trabalho intimista remetendo à casa, à caverna, ao abrigo; e do passado e do presente da humanidade. Esses papéis já utilizados traduzem uma plasticidade mais primária. Local onde se está, a gruta é um estado emocional, o que está dentro e está fora – luz e trevas (GOETHE INSTITUT SALVADOR, 2000).

Esse sentido de caverna, esta relação com o íntimo, com o abrigo, reflete uma tentativa de introspecção às suas imagens pessoais. Funciona em sentido oposto ao “O Telhado”, a gruta agora é metáfora, é sonho de criança que monta com papéis uma pequena estrutura e projeta-se para aquela dimensão, penetra nas reentrâncias de um tronco, ou por entre as pedras.

Essas lembranças que vivem pela imagem, na virtude de imagem, tornam-se, em certas horas de nossa vida, particularmente no tempo da idade apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio bastante complexo: a memória sonha, o devaneio lembra. Quando esse devaneio da lembrança se torna o germe de uma obra poética, o complexo de memória e imaginação se adensa, há ações múltiplas e recíprocas que enganam a sinceridade do poeta. Mas exatamente, as lembranças da infância feliz são ditas com uma sinceridade de poeta. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra a memória (BACHELARD, 2001, p.20).

Marepe possui uma ética pessoal, um retorno a um tipo de humanismo que está inscrito na simplicidade do povo do interior, onde a palavra vale muito mais do que nas trocas dos grandes centros urbanos. Uma ética primitiva que olha o mundo a partir de sua vivência com o mesmo, antes de qualquer formulação teórica. Muitos de seus trabalhos surgem de uma relação com sua região, com localidades freqüentadas por ele, de um retorno a elas em vários fragmentos. “Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem” (idem, 2003, p.25).

Ao narrar um fato de infância, Marepe dá pistas para a compreensão mais específica de seu projeto para a Galeria Luisa Strina, em São Paulo, a exposição titulada “Suplemento manual, é Natal”, em 2002.

Comparando a exposição com seus depoimentos, podemos observar melhor as conexões entre memória e imaginação.

Tem uma cena comigo em que eu estava na porta de casa: minha mãe comprou pra gente um presente bem bonito, um carro bem bonito, um carro de bombeiro – nós não éramos ricos, mas mainha no final de ano caprichava nos presentes de Natal – e passou uma galera pobre, bem pobre... E eles ficavam olhando aquele meu carro, olhavam com desejo. Não sei, essas coisas, bateram muitas lembranças, de um estado quase de esquizofrenia, de um universo muito particular meu (MAREPE, 2003, s/p).

Fazia parte da exposição “O presente dos presentes” (2002), vários presentinhos de argila enfeitados com fitas de seda coloridas e estrelinhas em papel laminado (Figura 73). Um misto de brincadeira infantil que simula alguma coisa de nosso cotidiano em algo mágico. Pode também ser associado à imagem do menino que cobiçou o carro de bombeiros, Figura 73

à consciência de que há alguém em uma condição antagônica à sua. Poderia ser uma equivalência de valores, presentes muito parecidos, da mesma matéria-prima enfeitados, apesar da pequena diversidade de cores e formas, de igual valor.

Assim, as imagens da infância, imagens que uma criança pôde fazer, imagens que um poeta nos diz que uma criança fez, são para nós manifestações da infância permanente. São imagens da solidão. Falam da continuidade dos devaneios da grande infância e dos devaneios de poeta. (BACHELARD, 1988, p.95).

Com essa

conotação, a projeção dos trabalhos assume um olhar de criança que é também colocada sobre o espectador. Na mesma sala dos presentinhos de argila, “O presente dos presentes”, estava o “Cajueiro com neve de Algodão” (2002), trata-se de um cajueiro que foi desmontado e levado para a galeria, remontado e enrolado com algodão (Figura 74). Lisette Lagnado faz uma declaração bastante poética desse trabalho e

reflete possíveis significados pertinentes a

esse símbolo natalino: Figura 74

É Natal e Bienal em pleno março. Para além do ar fora de lugar, a data também é fora de hora – realidade concreta, tempo abstrato. Por aqui neva. Aquele cajueiro macho, abatido por causa da construção de uma nova estrada, está todo branco, imitando o que não temos. Mas você me garante que são bem reais os horizontes agrestes de galho seco e algodão que margeiam o sertão até o recôncavo (GALERIA LUISA STRINA, 2002).

Este cajueiro remete-se ao costume popular de colocar algodão nas árvores de Natal para simular a neve. Certamente, essa neve não deve ser influência da estadia do artista na Alemanha, e sim do mesmo lugar de todas as pessoas que fazem isso. É uma cultura vista na televisão, nos filmes, nos desenhos animados com renas e trenós de Papai Noel, como de um autêntico habitante do hemisfério Norte, branco, vestido com roupas de frio. Certamente, características que não refletem os cajueiros, eles não gostam de frio.

Mas este cajueiro possui uma outra característica por seu tamanho. Para as crianças, as coisas possuem uma outra dimensão de tamanho. Ao voltar para algum local de convívio na infância, normalmente a sensação remetida é de que eram bem maiores. O cajueiro de Marepe é enorme. Sua dimensão parece com a relação de uma criança com as árvores de Natal, a cada ano, parecem para a criança, menores.

A abordagem fenomenológica do espaço e do corpo vivido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade. Por exemplo, no sono e no sonho, o corpo fantasmado coincide com as diferentes modalidades de semiotização espacial que ponho em funcionamento. A dobra do corpo sobre si mesmo é acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários (GUATTARI, 1992, p.153).

Vestido de Natal, o cajueiro, reflete esta relação de valores espaciais quando nos deparamos com algum ambiente familiar, mas que, certamente, é maior do que era em nossa época de infância. Felix Gattari narra um acontecimento, quando em São Paulo, ficou absorto com uma paisagem, e ao

tentar fazê-la submergir de sua memória, percebeu sua semelhança com uma paisagem de infância:

Ao fim de certo tempo, a resposta me veio naturalmente, algo da minha primeira infância me falava do âmago dessa paisagem desolada, algo de ordem principalmente perceptiva. Havia, de fato, uma homototetia entre uma percepção muito antiga – talvez a da Ponte Cardinet sobre

numerosas vias de estrada de ferro que se abismam na estação Saint- Lazare – e a percepção atual. Era a mesma sensação de desaprumo que se achava reproduzida. Mas, na realidade, a ponte Cardinet é de uma altura comum. Só na minha percepção de infância é que eu fora confrontado com essa altura desmesurada que acabava de ser reconstruída na ponte de São Paulo. Em qualquer outra parte, quando esse exagero da altura não era reinterado, o afeto complexo da infância que a ele estava associado não podia ser desencadeado (GUATTARI, 2000, p.154-155).

“Supletivo manual, é

Natal” (2002), nesta mostra havia também outro trabalho que remete à condição de abrigo, da relação do artista com a

casa, com a questão da moradia, seu reflexo em uma situação de Terceiro Mundo: o “Embutidinho” (2002) (Figura 75). Trata-se de um trabalho que faz parte alguns desdobramentos e que lembra os projetos dos penetráveis de Hélio Oiticica, inclusive por sua configuração também em maquete.

Em uma analogia com os trabalhos de Oiticica, podemos adentrar um pouco a discussão em relação à casa e suas conexões com os escritos de Bachelard, sobretudo em “Poética do Espaço”.

Figura 75

O sentido de abrigo ganha força na metáfora do ninho, nas maquetes de Oiticica, ainda que alguns penetráveis tenham uma série de compartimentos, os ambientes resultantes de seus “labirintos” são pequenos, propõe uma aproximação das pessoas que penetram no ambiente.

Marepe também parte de uma transformação do objeto. A metáfora da casa, do abrigo, gerou um trabalho em três etapas, já que três trabalhos foram constituídos. A proposta básica é um abrigo individual composto de compartimentos. Primeiro apresentou na exposição “Os 90”, no Paço Imperial, Rio de Janeiro, em 2000. Sobre o trabalho, Lisette Lagnado explica:

Os Embutidos poetizava a moradia improvisada. Era uma construção de

madeirite magenta por fora, com uma organização interna que misturava os ambientes da vida cotidiana (quarto, cozinha, sala, banheiro). O usuário era instruído a interferir na estrutura dessa arquitetura do precário (GALERIA LUISA STRINA, 2002).

Através de imagens das maquetes de Oiticica e de suas propostas de participação, podemos ver uma semelhança no “Embutidinho”, uma estrutura geométrica composta de compartimentos com “Penetrable PN 16, Nada” (Figura 76), de 1971, de Hélio Oiticica.

Esse desmembramento do objeto em propostas cada vez mais abertas é explícito no projeto relacionado à “Os Embutidos” (1999) (Figura 77). Por mais que pareça um racionalismo geométrico que se apresente, por sua

organização partindo de uma forma geométrica simples, o cubo, ao colocar os objetos utilitários como utensílios de cozinha, alimentos etc., ao possibilitar ao espectador a condição de participante, também desmonta a racionalidade geométrica, presente com mais força em “Embutidinho”. A associação ao sentido da casa, ao abrigo, também é muito forte, sua simplicidade não diminui seu aconchego. “Assim, a casa sonhada deve ter tudo. Por mais amplo que seja o seu espaço, ela deve ser uma choupana, um corpo de pomba, um ninho, uma crisálida” (BACHELARD, 2003, p.78).

Nos escritos de Hélio Oiticica, o artista mostra sua preocupação com a transformação que a arte deveria propor. Suas propostas possibilitavam ao espectador uma participação plena, ninguém precisava de conhecimentos prévios sobre algum assunto para absorver o trabalho. Para Hélio, “a arte já não é mais instrumento de domínio intelectual, já não poderá mais ser usada como algo “supremo, inatingível”“. Idéia compatível com a de Bachelard:

Em poesia, o não saber é uma condição prévia; se há oficio no poeta, é na tarefa subalterna de associar imagens. Mas a vida da imagem está toda em sua fulgurância, no fato de que a imagem é uma superação de todos os dados da sensibilidade (BACHEALRD, 2003, p.16).

Em “Os Embutidos” (1999) e, sobretudo, “Recôncavo” (2003), este último mostrado na Bienal de Veneza em 2003, são propostas que possuem uma

organicidade muito freqüente na obra de Marepe, que faz parte de seu método de trabalho. A relação com a casa ganha um sentido constelar, as cidades à noite são pontos de luz na escuridão.

Nessa comunhão dinâmica entre homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre casa e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico (BACHELARD, 1993, p.62).

Esta citação poderia estar fazendo referência ao processo de transformação da arte brasileira relacionado à ruptura do neoconcretismo com a racionalidade do concretismo.

Pode ser resumido grande parte da trajetória de Marepe, no trabalho “Recôncavo”, a participação, a posição em favor do objeto e suas conseqüências, e a sua relação com a casa. No trabalho da Bienal de Veneza, a estrutura podia ser desmembrada, literalmente desdobrada, numa alusão à infância, nos jogos de dobraduras ou estruturas modulares em cores primárias. “Recôncavo” abre-se em sua imensidão poética, levando um pouco da memória do artista consigo. Bachelard fala da relação poética da casa com a liberdade.

Estamos antes diante do fenômeno de libertação pura, de sublimação absoluta. A imagem já não está sob o domínio das coisas, nem tampouco sob o impulso do inconsciente. Ela flutua, voa, imensa, na atmosfera de liberdade de um grande poema. Pela janela do poeta, a casa empreende com o mundo um intercâmbio de imensidade. Também a casa dos homens, como gosta de dizer o metafísico, se abre para o mundo (BACHELARD, 1993, p. 81-82).

A caixa de surpresa pertencente à memória, devaneio e cotidiano de Marepe ou “moço do muro” já pertence à história da arte da Bahia. Sua sensibilidade e simplicidade o fazem estar em contato com o mundo a partir de Santo Antonio de Jesus, cidade com nome de santo franciscano, e de grande popularidade na