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Memória, experimentação e metáfora, características contemporâneas no trabalho de Ieda Oliveira.

3. Arte Contemporânea na Bahia: das fendas da tradição cultural, novos mecanismos e expressões de reconhecimento da cultura.

3.3. Um meio que existe.

3.3.1. Memória, experimentação e metáfora, características contemporâneas no trabalho de Ieda Oliveira.

Ieda pode ser citada como uma artista de grande importância para o contexto contemporâneo baiano. Ao receber o prêmio da III Bienal do Recôncavo, premiação que possibilita aos artistas estudarem durante um período na Alemanha, Ieda causou interesse de curadores e críticos estrangeiros, tendo participado de diversas exposições na Alemanha e na Argentina, por exemplo. E em meados do ano de 2005, Ieda irá para a China através de uma bolsa de artes.

(...) agora eu estou indo para China, fazer um intercâmbio. (...) se eles se interessam eles procuram, eles não esquecem. E aí vieram atrás e procuraram a Fundação Sacatar28 (...), e aí rolou essa história. Vou pra uma instituição em Taiwan passar dois meses trabalhando e fazer uma exposição no final (OLIVEIRA, 2005, s/p).

A ênfase em Ieda nesse capítulo possui uma carga extra que está relacionada à capacidade intrínseca de seu trabalho, participação, características que nos remetem às experiências participativas dos anos 1970.

Hélio Oiticica afirma que uma das principais características da “Nova Objetividade” é a participação do espectador, incluindo a “participação semântica”

(1986, p.110-119). Isso significa que a palavra pode dar uma outra proposição para o espectador. Este pode, através da assimilação da palavra do conjunto da obra, absorver detalhes não revelados a priori e que estes detalhes abrem margem para uma participação mais efetiva, na obra.

(...) desde as proposições semânticas da “palavra pura” às da “palavra no objeto”, ou às de obras “narrativas” e as de protesto político ou social, o que se procura é um modo objetivo de participação. Seria a procura interna fora e dentro do objeto, objetivada pela proposição da participação ativa do espectador nesse processo: o indivíduo a quem chega a obra é solicitado à completação dos significados propostos na mesma (CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA, 1986, p. 115).

A metáfora não é uma representação passível apenas de contato retiniano e semântico, pois propõe uma

Figura 33

possibilidade real de sentimento, de ação sobre a proposta. Os títulos escolhidos pela artista quase sempre fazem referência ao material utilizado para a construção do trabalho, ou uma alusão à determinada situação, sendo este parte integrante da obra, já que a leitura do título pode abrir precedentes para novas percepções.

Em “Milagres” (2002), Ieda participa, com o expectador, seu devaneio, literalmente, não só simbolicamente, propondo uma história de parte da sua vida (Figura 33).

E uma das salas da galeria do Goethe Institut Salvador, coloca vários cavalos de madeira infantis, em cima de um gramado verdadeiro, num tamanho que acolhe um adulto. Este, tendo acesso livre, pode se balançar como uma criança no espaço interno da galeria. A artista organiza uma ação na abertura da exposição, quando canta um repente de autoria própria, acompanhada por músicos, vindos do interior, tocando sanfona, zabumba e triangulo. A música conta a história da artista junto à tradição da cidade de Milagres29, onde, normalmente,

após a visita à Nossa Senhora, o devoto leva, entre outras coisas, melancia para casa. Assim, justifica-se a um desavisado o porque da distribuição de melancias ao público (Figura 34). Na parede são projetadas imagens de fotos de sua infância, na cidade que deu nome à exposição. Estas mostras caracterizam-se como propostas de vivências de situações vividas e experimentadas em vários níveis. Táticas de imposição à participação, à instauração do contato em níveis mais significativos entre sujeito e objeto. Assim, retorna ao questionamento da ramificação do acontecimento que caracteriza a instalação “Milagres”.

Esses trabalhos possuem relação com a participação descrita no “Esquema geral da Nova Objetividade” de Hélio Oiticica, considerando a possibilidade de uma participação semântica e destacando a relação do tema com o material utilizado.

Muitos trabalhos de Ieda trazem uma palavra em comum: dor. “Escorre- Dor” (2000), “Emborca-Dor“ (2000), “Enxágua-Dor” (2001), “Peca-Dor” (2004), dentre outros, com relação à dor e sua personificação no cotidiano como uma cama de borrachas escolares emparelhadas, que, através do título, dá vazão à imaginação do espectador, “Apaga-Dor” (2000) (Figura 35).

No projeto de Ieda que foi montado na 26ª Bienal de São Paulo (2004), “Peca-Dor” (Figura 36), a relação de dor e pecado foi projetada na construção de um ambiente interativo, que possui elementos que relembram os castigos da educação cristã, que ainda hoje, pode ser encontrada em algumas localidades do interior do país. Ieda transfere um confessionário de uma cidade30

do interior da Bahia e o leva para a metrópole, colocando o relicário sobre uma tonelada e meia de milho, emitindo a música “Os sete pecados capitais” do Pe Zezinho: - a artista escutava a mesma música na Paróquia de Varzedo, quando criança: “não deixe o coração se escravizar / Nas garras da soberba, / Da avareza, da luxúria / E da ira e da Gula / E da avareza e da preguiça. / Não deixe o coração se extraviar / No labirinto dos pecados capitais”.

30 Varzedo, cidade do interior da Bahia, onde a artista passou sua infância, e cujo confessionário,

emprestado pela Paróquia de Varzedo, recebeu sua 1ª confissão. Figura 36

No catálogo da 26ª Bienal de São Paulo, o crítico alemão Peter Anders fala do trabalho:

Ieda torna presente uma práxis operando com meios simbólicos, a qual aponta para além da mera coletividade regional. Justamente o recurso aos objetos do cotidiano, muitas vezes objetos de culto, e à sua reconstrução possibilita ao observador transformar as próprias feridas psíquicas. O fato de isso acontecer sem qualquer lamúria e com a devida dose de ironia é o que torna seu trabalho tão penetrante (2004, p. 178). A alusão à dor, à culpa, foi desconstruída, quando a estrutura tradicional foi decodificada. No chão, os grãos de milho que podem remeter à dor nos joelhos, penalidade pelos pecados, possibilitaram os desejos de quebra de padrões, os desejos de infância. As crianças visitantes daquela Bienal são as que mais potencializaram essa idéia. Elas se jogaram no milho, confrontando o símbolo da dor com uma brincadeira divertida embutida em uma proposta de arte, próxima ao Éden31

projetado por Oiticica em 1969, onde, por imagens (Figura 37), pode-se ver uma criança muito à vontade jogando as palhas

31 Na versão “Whitchapel Experince”, realizada na Whintechapel Gallery - Londres, em fevereiro de

1969 (Hélio Oiticica, 1996, p. 132-133 e 136-138). Figura 37

para o alto de uma das ambiências da instalação.

Outra instalação, “Farinha do Mesmo Saco” (2001) tomou toda a galeria da Associação Cultural Brasil-Estados Unidos – ACBEU com quase meia tonelada de farinha de mandioca (Figura 38). A princípio, as pessoas não entravam no espaço da instalação, tinham receio de pisar na farinha esparramada pelo chão, depois, pisaram sem maiores constrangimentos. Na ocasião, o coquetel, normalmente servido nas aberturas das exposições, foi cachaça comprada a granel e mantida nas garrafas pet’s. A estranheza à falta de requinte, normalmente existente nessas ocasiões, pode ser o motivo da cachaça não ter sido bebida. Este fato confirma o irônico título da exposição “Farinha do Mesmo Saco”, um ditado popular que iguala determinado grupo de pessoas, sem distinção. E Ieda tornou seu trabalho tão acessível, que quem quis possuir parte dele, adquiriu, por modesto R$1,00 um pequeno saco de farinha (igual aos de 60kg), contendo, em média, 200g, com a inserção da frase “Farinha do Mesmo Saco”. O dinheiro era recolhido em uma cuia

de queijo do reino, muito conhecido na Bahia como “queijo cuia”. Essa cuia é, normalmente, utilizada por mendigos, para pedir esmolas (Figura 39).

E a relação que Ieda faz é que os artistas ficam pedindo esmola, quando propõem uma exposição ou são convidados a expor. A artista contextualiza sua proposta:

Eu criei um grupo que não existe, que foi justamente quando cheguei da Bienal do Mercosul. Vim de lá sabendo que tinha o APIC e o PEADA32, e aí eu criei um aqui e chamei de “Esmola”. Falei para alguns artistas, mas o povo é tão covarde que teve medo porque podia se queimar com fulano de tal. Eu mesma fiz um trabalho lá na ACBEU, chamado “Farinha do mesmo saco”, onde fiz a performance “Esmola”. Fiquei com uma cuia de queijo cheia de moedas, sacudindo para as pessoas comprarem o saquinho de farinha por um real. Era uma forma de comprar o trabalho. Porque a ACBEU não me deu nada, me convidou para participar (...) E, na época não deram dinheiro nenhum para comprar a farinha e por fim, me deram R$250,00, eu me lembro, e por isso fizeram o convite preto e

32 Grupos que contestam a falta de recurso oferecido aos artistas, pelas instituições que ganham

valor simbólico com as exposições. APIC - Artista Patrocinando Instituições Culturais, e PEADA - Patrocínio E Apoio De Artistas.

branco. E aí as pessoas compravam essa esmola, que era o saco de farinha. Eu vendi 45 sacos na noite da exposição, foi tão engraçado! (2005, s/p).

Em um outro trabalho, Ieda coloca várias forminhas de bolo (iguais às de empada) ordenadamente, com uma mão pintada dentro de cada uma, uma palmatória ao lado, intitula a obra de “Bolos de Mainha” (1999). A dubiedade se faz mais presente, quando a palavra “bolo” ganha seu duplo sentido, muito utilizado no interior da Bahia, o do bolo comestível e o de tapa, palmada... Assim, mesmo não utilizando a palavra “dor”, a dor está inserida, lembrando da infância que, dificilmente, passa sem “bolos” da mãe, e cada um que vê aquele objeto, provavelmente busca uma memória particular, sua própria vivência ou a experiência alheia assimilada. Neste caso, os bolos de palmatória eram recebidos pela mãe de Ieda e divididos entre suas tias, em proporções quantitativas conforme a idade: a mais velha tomava nove, a do meio seis, e a mais nova, três. As forminhas eram utilizadas pela sua mãe para fazer bolinhos e depois vendê-los em cima de um tabuleiro, ao lado da igreja, durante a infância da artista.

Em geral, os trabalhos de Ieda Oliveira são a mistura de memória e devaneios de sua infância e das histórias ouvidas durante toda sua vida. A artista consegue absorver a importância dos fatos e vai à essência dos termos e expressões dúbias. Ao transformar essa absorção em um trabalho artístico, exterioriza seus valores, ativa a lembrança do espectador, atinge os arquivos da memória. “Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores” (BACHELARD, 1988, p. 99).

Essa exteriorização dos valores presentes em objetos e em fatos do cotidiano, também está presente no trabalho de Maxim Malhado.

3.3.2. Maxim Malhado: Ibirapuera, ou madeira velha; o agreste do cotidiano