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Recôncavo: antropofagia e vida cotidiana no terceiro mundo.

4. Memória, imaginação e cotidiano na produção de Marepe.

4.3. Recôncavo: antropofagia e vida cotidiana no terceiro mundo.

Vera Cruz de Itaparica, 20 de dezembro de 1647.

O caboco Capiroba apreciava comer holandeses. De início não fazia diferença entre holandeses e quaisquer outros estranhos que aparecessem em circunstâncias propícias, até porque só começou a comer carne de gente depois de uma certa idade, talvez quase trinta anos. E também nem sempre havia morado assim, no meio das brenhas mais fechadas e dos mangues mais traiçoeiros, capazes de deixar um homem preso na lama até as virilhas tempo suficiente para a maré vir afogá-lo lentamente, entre nuvens cerradas de maruins e conchas anavalhadas de sururus. Isto só aconteceu depois dos muitos zumbidos e assovios que sua cabeça começou a dar, no ver de alguns porque era filho de uma índia e de um preto fugido que a aldeia acolheu, o qual, de medo, nunca saiu de casa a não ser pela noite para se mudar quando era preciso, tendo por esta razão desenvolvido uns certos parentescos com morcegos e bacuraus e deixando de enxergar à luz do dia (RIBEIRO, 1984, p.37)36.

As condições, que possibilitaram Marepe trilhar o caminho da diversidade de linguagens e materiais, são diversas. Muito de sua prática é sua própria vivência, sua relação com o mundo. Muito cedo ele percebeu que a obra de arte poderia ser para o outro, o espectador, algo a mais que uma experiência retiniana nos moldes convencionais. Aos dezessete anos cursava a Escola de Agronomia da Universidade Federal da Bahia, em Cruz das Almas37, e, aos dezoito,

Licenciatura em Desenho e Plástica na Escola de Belas Artes, também da UFBA,

36 Trecho do livro “Viva o povo brasileiro” de João Ubaldo Ribeiro. 37 Cidade localizada na região do Recôncavo baiano.

em Salvador. Agraciado com o “Grande Prêmio Viagem à Europa” da I Bienal do Recôncavo, em 1991, o artista passa uma temporada na Alemanha. Lá vivência uma nova experiência em relação ao objeto de arte e suas relações com a criação, com a maneira de criar. O próprio artista diz que a estadia em outro país, possuidor de outra cultura, mas que, por um fio imaginário, poderia ser observado horizontalmente, livre da sensação de hierarquia cultural, possibilitou uma reflexão de si e do outro. Marepe fala de sua vivência na Alemanha:

Eu fui para Europa e me deparei com uma cultura, que não acho superior, acho que tem muita superioridade aqui na nossa cultura, na resistência, existem muitas mazelas, muitas questões mal resolvidas, mas existem muitas coisas positivas. Na Bahia, que é o lugar que eu observo, a existência acontece de uma forma menos veloz, está tudo muito mais rápido. (...) Então eu tive contato com a Europa, e eu tive que descobrir uma beleza nas coisas aqui (...) esse choque com a cultura tecnológica, racional. Eu fui ver coisas positivas também, as pessoas são muito mais politizadas e conscientes em um nível macro (MAREPE, 2003, s/p).

Em um sentido formal, esta possibilidade de distanciamento de sua própria cultura proporcionou ao artista analisá-la de um outro ponto de vista, além de perceber mecanismos de transformação da arte, em um local onde estas transformações tiveram uma contundência maior em um nível cultural mais amplo.

Na verdade, eles passaram por todas as etapas, quando eles dizem “somos pós-modernos” é por que eles são pós-modernos, passaram pelo moderno, como as estações do ano, as etapas da vida, a infância, adolescência, maturidade, velhice, e a gente não passou por essas etapas. Descobriram um dia desses aí, um regime de escravidão, então é muito arriscado, é complicado. Pra mim, foi necessário conhecer minha cultura (MAREPE, 2003, s/p).

Esta colocação reflete alguns pontos importantes no trabalho de Marepe que podem dar uma referência inicial para a reflexão de características contemporâneas em sua obra. A participação do espectador, a desmistificação do suporte tradicional e a proposta para uma arte coletiva, por exemplo.

Gaston Bachelard fala do espaço da imaginação e o espaço vivido, que em Marepe, gera o objeto vivenciado:

O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem. No reino das imagens, o jogo entre o exterior e a intimidade não é um jogo equilibrado (BACHELARD, 2003, p.19).

Marepe produz muitos trabalhos, talvez a grande maioria, pensando no público, e não diferencia essa intenção do sujeito iniciado em arte, do não iniciado, do adulto e da criança. Sendo assim, é possível perceber a relação intimista do expectador com a obra, mesmo que sua percepção questione se o que está diante de si é arte ou não. Esse questionamento ainda é muito freqüente, principalmente, diante de trabalhos com linguagens contemporâneas. Mas quando Marepe convoca a participação do outro, este quase sempre não resiste e vivência a proposta evocando a imaginação.

Para o I Salão da Bahia, realizado pelo Museu de Arte Moderna em 1994, Marepe envia uma instalação s/ título (Figura 48). O artista já demonstrava a relação de contato entre arte e público, que circunda seus trabalhos até hoje. A instalação consistia num desenho de “zoofitomorfos”38 na parede, uma grande forma orgânica no chão a qual o expectador interagia inflando-a com uma bomba

anexa ao trabalho.

Ao verificar a primeira experiência, com o que se pode chamar de linguagem contemporânea, na sua primeira exposição, fora do circuito das artes, quando ainda cursava Agronomia, Marepe faz o relato, em entrevista, de como foi o processo que o fez despertar

38 Desenhos que relacionam “bicho+planta+gente”, relações que aparecem em outros trabalhos do

artista. Figura 48

para a arte e que já direcionava sua principal forma de expressão, dentro do universo das artes plásticas, “(...) eu encontrei um colchão de mola e resolvi levá- lo para casa39, ainda tinha um resto de tecido, eu só queria levar a armação de mola”. Sua experiência com aquele objeto gerou uma percepção para outras possibilidades “(...) eu larguei agronomia quando me vi rasgando um colchão. Quando vi aquela cena, percebi que alguma coisa estava errada, despertei” (2002, s/p).

Sobre a primeira exposição, Marepe relata sua experiência ainda em Cruz das Almas, “(...) foi minha primeira individual, em que aconteceu minha primeira instalação também, no Centro Cultural de lá, a Casa da Cultura40. Na época ,

recebi uma grande força do Nelson Magalhães41” (2002, s/p).

Em relação ao trabalho apresentado no I Salão do MAM, a participação abre precedentes para outras experiências que terão como ponto central a relação sujeito-objeto, foco primordial das transformações operadas pelo neoconcretismo.

O neoconcretismo baseou-se em teorias da fenomenologia, o que ajudou no conceito da diluição, da distância do espectador em relação ao objeto de arte, na produção de artistas deste movimento. Em outros trabalhos de Marepe, esta relação entre sujeito–objeto tem grande importância, e uma grande aproximação dos conceitos neoconcretos.

Em uma análise geral das características do trabalho de Marepe, a relação com a sua cidade é quase uma constante, remetendo-nos a hábitos e tradições de qualquer cidade do Recôncavo baiano. Seu olhar diferenciado para o universo dos trabalhadores informais também é freqüente. Em alguns de seus trabalhos, que exigem a participação do espectador, é muito clara a presença da consciência de seu universo social, principalmente em “Deixe Aqui o Seu Piolho” (1995) e “Palmeira Doce” (2001).

Aparentemente, em um grau menos evidente de seu cotidiano, “Cabeça Acústica” (1995) (Figura 50) traz consigo uma relação forte com as experiências

39 A casa a que o artista refere-se é a república em que morava. 40 Centro Cultural Galeano D’Avelírio.

de Lygia Clark, sobretudo em “Nostalgia do corpo - Máscaras Abismo” (1965- 1988) (Figura 49).

Esta proposta de Marepe possui semelhança com a série “Máscaras” de Lygia Clark. Guy Brett, ao falar do trabalho de Clark, é como se ilustrasse esta analogia. Brett fala do trabalho de Lygia Clark, as “Máscaras”, através da possibilidade do outro poder ver algo naquele que “usa” o trabalho. “Embora para aquele que põe uma das máscaras, a experiência seja interna, elas ainda tem um aspecto externo para quem olha” (in CENTRO CULTURAL HÉLIO OITICICA, 2001, p.36).

Nestes trabalhos, bem como em muitos outros da artista, “o corpo é o motor da obra” em seu estado pleno. Brett fala mais especificamente: “com ‘Máscaras Abismo’, não há aspecto externo exceto uma vaga monstruosidade. Como o nome sugere, elas são radicalmente internas” (ibidem).

Já do ponto de vista da construção, “Cabeça Acústica” assemelha-se aos “Bichos”, material metálico, dobradiças, formas simples. Traz à tona o questionamento da relação do corpo na obra de arte, sua importância para a arte contemporânea. Merleau-Ponty fala do papel do corpo para a percepção do mundo: “Meu corpo é a textura comum de todos os objetos, e é, pelo menos em

relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha ‘compreensão’” (1999, p.315). No evento Arte Construtora (1996), Marepe propõe uma música para ser cantada com a “Cabeça Acústica”, desdobrando na performance “A ilha, o castelinho de pólvora”:

Todo mudo pode ser uma ilha

Todo mundo pode ser um castelinho de pólvora Todo mundo pode ser

Uma ilha com um castelinho de pólvora

“Lasque um nome aí” (2001) é outro trabalho que tem o corpo no papel de participador, sendo sua existência ligada diretamente a esta participação (Figura 51). No item três do “Esquema Geral da Nova Objetividade”, Hélio Oiticica trata da participação, definindo duas maneiras preponderantes, “uma é a que envolve ‘manipulação’ ou ‘participação sensorial-corporal’, a outra que envolve uma participação ‘semântica’” (Oiticica, 1998, p.115). Gritar uma palavra, ao mesmo tempo em que rasga-se um pedaço de pano com vigor, faz com que a participação

do corpo e a participação semântica exerça uma força única no indivíduo que promove a ação.

A participação do espectador no caso de “Lasque um Nome aí” pode atingir o outro pela surpresa, utilizando-se da segunda pessoa para viabilizar a totalidade do projeto. Marepe, centrado em sua vida cotidiana, inscreveu em pedaços de pano palavras como “graxeira”, “estopô”, “nigrinha”, “porra”, etc., numa alusão ao palavreado popular de sua região. Propõe ao espectador que rasgue um pano e esbraveje a palavra inscrita nele, remetendo-se a uma expressão muito usual naquela região, onde “lascar um nome” significa falar palavrão. No catálogo do Panorama da Arte Brasileira de 2001, Nicolau Sevcenko descreve o processo do trabalho:

Marepe montou uma barraquinha de feira na qual o que se oferece ao público é a possibilidade de uma descarga emocional, uma síncope catártica como um espirro, em que as criaturas têm a feliz oportunidade de escolher e descarregar um palavrão, a plenos pulmões, enquanto dilaceram com as mãos um pedaço de tecido, completando o prazer dessa somatização dos impulsos indignados (SEVCENKO, 2001, p.128).

De fato, a palavra “estopô”42 poderia causar uma experiência

desconcertante a quem não conhecesse as diferenças lingüísticas coloquiais do Recôncavo. E mesmo assim, para uma pessoa que tenha vivido em Salvador ou Santo Antonio de Jesus, escutar alguém soltar em altos berros esta palavra, seria uma experiência de ampla possibilidades.

No ponto central de uma aproximação das características contemporâneas e da “tradição” brasileira, a participação do corpo é um aspecto importante. A palavra toma uma conotação primordial no trabalho, “a palavra lida não é uma estrutura métrica em um segmento de espaço visual, ela é a apresentação de um comportamento e de um movimento lingüístico em sua plenitude dinâmica”, diz Bachelard (1999, p.316).

O corpo do expectador toma uma posição de co-autor, pois sem sua intervenção o trabalho não acontece, como os Parangolés nas exposições em que eles estiveram pendurados e isolados do contato do público. Paola Jacques, em seu livro “Estética da ginga”, narra o acontecido na Documenta de Kassel de 1997, sob curadoria de Catherine David:

As capas, tendas e bandeiras, imóveis, vazias, penduradas num cabide, são literalmente despidas de sua característica de Parangolé. (...) em Kassel, não foram os passistas os impedidos de entrar no museu43: a própria obra é que foi esvaziada de seu sentido. Não podia mais ser experimentada pelo público, que voltara, assim, a seu status original de simples espectador, sem direito a qualquer participação (2001, p.37-38). Para artistas como Laura Lima, Jarbas Lopes, Cabelo, Ieda Oliveira, Marepe, etc., o corpo pode tomar um sentido de objeto no mundo, sensível a este mundo. Ponty coloca:

Em suma, meu corpo não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto

sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons, vibra para

42 A palavra “estopô” é utilizada popularmente significando coisa do mal, diabo, nome feio para

chamar coisa/pessoa ruim, ou de aparência tétrica, com expressões como “virado no estopô”.

43 A autora refere-se ao que aconteceu em 1965, na mostra Opinião 65, no MAM do Rio de

Janeiro, quando Hélio Oiticica chegou com amigos da Escola de Samba Mangueira, vestidos com Parangolés, e foram impedidos de entrar no museu.

todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe (1999, p, 317).

A palavra tem um tom confessional, ela faz relação com o universo simbólico do artista. E talvez por sua crueza, a crueza do próprio universo do nordestino seja tão adequada em determinadas circunstâncias, como nos trabalhos: “Tudo no Mesmo Lugar pelo Menor Preço” (2002),exposto na 25ª Bienal de São Paulo, e “Lasque um nome aí” (2001), como já dito, participou da mostra do Panorama da Arte Brasileira de 2001. Mas em um trabalho mais antigo do artista já percebe-se a relação com a incorporação da linguagem escrita,

sem uma alusão leviana à plasticidade, mas a seu significado intrínseco, como nas Trouxas (1995), e “A bica” (1999) (Figura 52), entre alguns outros. Mas em “Deixe aqui seu Piolho”, através da palavra, ele argumenta com o espectador a possibilidade da tomada de posição, um embate com uma condição que poderia incomodar esse indivíduo. O próprio artista relata:

Era uma espécie de urna onde se vota. A idéia era você devolver o piolho, você pôr na urna seu voto, seu piolho. Eu estava muito pesado na época, eu achei pesado este trabalho, ainda acho. Eu me coloco também na figura de um piolho em lençóis, desenhado de carvão, e coloco meu rosto em xérox, como se fosse um grande piolho. Já era uma situação em que eu queria que as pessoas se chocassem com a própria realidade delas, no final eu também queria descobrir, queria assumir minha realidade. É muito comum na rua do interior ver, na porta das casas alguém catando piolho de alguém. E o que é que tem de beleza nisso, o que é que tem de tristeza nisso também (2003, s/p).

Esses posicionamentos nos trabalhos de Marepe são parte de um processo de criação que não está ligado à técnica. Sua prática consiste em uma análise do mundo, de seu processo de vida, da observação e da captura de alguns

acontecimentos da vida cotidiana dos habitantes de determinada região, sobretudo do Recôncavo Baiano. Sua relação com o corpo assemelha-se ao processo de imersão na vida de determinada comunidade, em muitos casos, de Santo Antonio de Jesus e dos ambulantes de Salvador. Lisette Lagnado comenta uma dessas imersões de Marepe em um determinado cotidiano. “Seu olhar engloba origens e evoluções dos materiais físicos, formas ‘menores’ de subsistência, truques da economia alternativa” (GALERIA LUIZA STRINA, 2002). A captura de imagens/objetos de Marepe dá-se por uma entrega ao fluxo do mundo, a sua velocidade específica. Merleau-Ponty fala sobre a percepção do objeto no mundo:

Apoiada na unidade pré-lógica do esquema corporal, a síntese perspectiva não possui o segredo do objeto, assim como o do corpo próprio, e é por isso que o objeto percebido se oferece sempre como transcendente, é por isso que a síntese parece fazer-se no próprio objeto, no mundo, e não neste ponto metafísico que é o sujeito pensante, é nisso que a síntese perceptiva se distingue da síntese intelectual (1999, p.312-313).

Essa experiência imersiva de Marepe será ponto de apoio para análise de outra característica do Esquema Geral da Nova Objetividade: a tomada de posição em relação ao objeto e a negação do quadro de cavalete. Na observação da vida dos moradores de sua cidade, O artista encontra imagens poéticas de um universo específico. Diferenciado do conceito de ready made, os objetos de Marepe são como ele mesmo diz, “nécessaire”, não trata da aquisição de resíduos no sentido do exótico.

A absorção do mundo, para Marepe, não está na captura de objetos industrializados, é fruto de sua relação com o universo, num vai e vem de trocas simbólicas. Lagnado fala da sensibilidade de Marepe à adversidade do mundo envolta, do improviso popular da riqueza da “gambiarra” diversificada pelo comércio informal:

É uma homenagem contínua à capacidade de improviso, a imaginação criativa dos comerciantes das ruas de Salvador. Minha pergunta é: como ser colportor dessa sensibilidade sem cair no exotismo do turismo cultural

que vem fascinando uma certa má consciência? Gostaria que essa preocupação servisse para separar o joio num saco dentro do qual são aceitas ações oportunistas que estetizam o regionalismo. “Da adversidade vivemos!” significa também “luxo para todos”. Artistas fazendo exercícios de deambulação urbana estão na moda. Nostalgia do Situacionismo? Se Oiticica não tivesse andando tanto pelas ruas do Rio de Janeiro, não teríamos toda a conceituação que derivou de Delirium

ambulatoriun, nem o que veio antes de Tropicália. Trata-se de dar

continuidade à crise da representação (GALERIA LUIZA STRINA, 2002).

Marepe, no II Salão de Arte da Bahia, participou com três objetos, possuindo os seguintes títulos: A Trouxa 03 (Figura 53), A Trouxa 04, A Trouxa 05 (1995). Lisette Lagnado faz relação com “um tipo de Merzbau, tropical e transportável”, ainda diz, “É afeto em estado bruto”. E observa a memória que o artista tem das simplicidades do cotidiano: “Há em todo o seu trabalho um ‘prestar atenção’ aos encontros, salvaguarda de uma memória, sobretudo do ‘feito a mão’ (servir cafezinho ou mingau de milho)” (ibidem).

A série de Trouxas, é composta por objetos tirados de imagens do cotidiano, de um espaço onde tudo que circunda o objeto é um referencial dele próprio. O artista vê o objeto, valoriza seu contexto, adormece-o e descobre nele um impulso de captura. Percebe seus aspectos físicos, seu material e os lugares onde podem ser adquiridas as matérias-primas. E mesmo transferindo a trouxa de seu espaço original, ela não perde as conexões com seu contexto, com a roupa suja com, a roupa passada, ou com o bóia fria - o homem ou a mulher que carrega a trouxa na cabeça, ou o trabalhador que leva seu prato de comida para o trabalho (Figura 54).

Em relação ao mundo percebido e ao espaço e seu potencial em conexões, Merleau-Ponty escreve:

O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível. Quer dizer, em lugar de imaginá-lo como uma espécie de éter no qual todas as coisas mergulham, ou de concebê-lo abstratamente com um caráter que lhes seja comum, devemos pensá-lo como a potência universal de suas conexões (1999, p.328).

Figura 53

Essa busca de um determinado objeto e de suas conexões, acarretaram em um enorme número de trabalhos feitos para espaços expositivos. São claramente relacionáveis com a “negação do quadro de cavalete”, e mais precisamente com a aproximação ao objeto. A maneira que Merleau-Ponty descreve esta procura do mundo, na tentativa de senti-lo, ilustra esta postura diante do objeto e do mundo, característico na arte contemporânea brasileira.

Eu sentirei na exata medida em que coincido com o sentido, em que ele deixa de estar situado no mundo objetivo e em que não me significa nada. O que é admitir que deveríamos procurar a sensação aquém de qualquer conteúdo qualificado, já que o vermelho e o verde, para se distinguirem um do outro como duas cores, precisam estar diante de mim, mesmo sem localização precisa, e deixam, portanto de ser eu mesmo. A sensação pura será a experiência de um “choque” indiferenciado, instantâneo e pontual (ibidem, p.23).

Convivendo com o mundo, Marepe está usando-o como laboratório, como se o artista, após a reprodutibilidade técnica na