• Nenhum resultado encontrado

O teatro do absurdo, assim como o simbolista, ficou caracterizado como um teatro mais discursivo e imagético, distanciando-se da ação dramática e da narrativa linear (em sua dimensão de criar o verossímil), progressiva e coesa; mas ambos conectados ao dramático através da estrutura formal de atos, cenas e personagens. Entretanto, a forma do discurso no absurdo se diferencia bastante da forma simbolista.

A linguagem do teatro do absurdo não foi homogênea, ou uma nomenclatura dada pelos autores de um gênero teatral, mas sim oriundo da percepção de características reconhecidas em determinados autores e peças que puderam (e podem) servir de estudo para um teatro que fale do absurdo da existência e da situação da vida, como é o caso das peças de Hilda Hilst. Martin Esslin (1918-2002) em sua obra O teatro do absurdo (1968), apresentou as primeiras teorizações e características a repeito das peças teatrais escritas por dramaturgos europeus no período após a Segunda Guerra Mundial (pós-1945); e no qual se encontra a obra produzida por Samuel Beckett (1906-1989) e Eugène Ionesco (1909-1994), grandes nomes do teatro do absurdo.

Em termos filosóficos gerais, o absurdo representa a condição de ininteligibilidade a que chegou o homem moderno em face de suas pretensões humanísticas e da realidade em que vive (...) [Nestas dramaturgias,] as frases não fazem o sentido convencional a que estamos habituados. Cria-se um mundo à parte, auto-suficiente, embora semelhante ao nosso. A intenção dos dramaturgos do Absurdo é, porém, mais ambiciosa. Querem que relacionemos suas abstrações linguísticas à essência da nossa condição humana, como a experimentamos como indivíduos (FRANCIS apud ESSLIN, 1968, p.10).

De acordo com Pallottini “o que os dramaturgos do absurdo fizeram de efetivamente novo foi mostrar seu descrédito pela linguagem do teatro tradicional, seja ela a que se expressa no diálogo, como a que fala através de outros signos do universo cênico” (1989, p.116). Deste modo, os autores passaram a retratar o próprio absurdo na cena teatral e na linguagem não mais utilizada para retratar um mundo em particular, mas para ser este mundo doentio.

Podemos perceber um possível diálogo do teatro de Hilda Hilst com o teatro do absurdo no que diz respeito às questões temáticas: estruturalmente, enquanto expressão da linguagem é bastante divergente; já em sua prosa Fluxo-floema (1970), por exemplo, a

estrutura desordenada de falas, ações e narrativas, parecem aproximar-se estruturalmente desta linguagem que o teatro do absurdo também procurou expressar26.

Os temas que permeiam a dramaturgia de Hilda Hilst, de um modo geral, abordam as dificuldades e os desafios da existência do ser humano; de um homem que já não tem mais esperanças no mundo em que vive; dos desejos, dos sonhos e da impossibilidade de alcançá- los pelos mais diversos motivos: normalmente impedidos pelas barreiras – materiais ou imateriais – impostas aos personagens. Estes, no teatro do absurdo, “vão desde o quase realismo até a quase nudez, a quase inexistência” (PALLOTTINI, 1989, p.121). Os personagens de Hilda Hilst podem ser encontrados nesse espaço entre o realismo e o não realismo uma vez que nem sempre tem nomes próprios; são identificados por grupos sociais ou por figuras simbólicas; representam mitos (como por exemplo, o diabo) que não pertencem cientificamente ao campo da realidade, mas que nem por isso entram no campo do inverossímil. O rato no muro, por exemplo, é composto por dez personagens: destas, nove são nomeadas Irmãs, cujos nomes são letras que vão de A a I, e uma é a Irmã Superiora. Em O verdugo27 a descrição dos personagens também não sugere uma individualidade no sentido do sujeito único, através de um nome próprio, mas sim por “títulos” que caracterizam determinados grupos ou tipos de pessoas, como A mulher do Verdugo, Filho, Filha, Carcereiro, Juiz Velho, Juiz Jovem e Cidadãos, por exemplo.

Dentro da escrita de Hilda Hilst há uma lógica interna, uma coerência e verossimilhança. Suas peças tratam do absurdo de ser vivo, de estar vivo, das situações absurdas em que o homem está submetido; mas não o fazem por meio de uma linguagem do absurdo. O que a autora faz é uma menção a acontecimentos extremos; estes são colocados em cena fazendo parte da própria composição do enredo (como um contexto de guerrilha, ou de julgamento), ou por meio de uma narração dos personagens, uma exposição dessas situações, como podemos observar nessa passagem de A morte do patriarca: o Demônio narra brevemente a história de Joana, na qual podemos identificar, claramente, a alusão que feita à

26

“Não, Ruiska, nada disso, apenas uma coincidência, não fique fazendo ilações, relações, libações. Hi, o anão é um letrado, meu Deus. Posso olhar para você? Claro, êle disse. HO HO HO GLU GLU GLU, eu não pude me conter, êle parece uma pêra, não, um abacate, a cabeça eu quero dizer. De onde você vem, hein? Do intestino, da cloaca, do universo, do cone sombrio da lua. E veio fazer o quê? Agora êle ri: gli gli gli” (HILST, 1970, p.34).

27

O Verdugo, escrita em 1969, recebeu no mesmo ano o Prêmio Anchieta instituído pela Comissão Estadual de São Paulo; a peça foi encenada profissionalmente no ano de 1973 sob direção de Rofran Fernandes e recebeu elogios da crítica tanto com relação à montagem, quanto ao texto. Para Pallottini, “é, sem dúvida, dentro do panorama da realização cênica de Hilda Hilst, a que melhor estrutura dramaticamente o seu material, contando uma história organizada de maneira lógica, explicitando com bastante nitidez os seus caracteres, colocando e desenvolvendo conflitos até a sua eclosão e solução final” (PALLOTTINNI apud PÉCORA, 2008, p.16).

história de Joana d’Arc (1412-1431), mártir francesa que foi queimada viva e canonizada em 192028:

Demônio (distraidamente): Dizem que ela sofreu muito antes de morrer. Dizem que não foi possível (faz um gesto como se estivesse estrangulando) rrrrrr... como costumavam fazer por misericórdia... não foi possível porque armaram o conjunto todo muito lá em cima... para que o povo visse seu rosto, naturalmente, e o carrasco não tinha como fingir que arrumava a lenha... e porisso foi horrível... o fogo foi comendo aquela carne viva, o cheiro era insuportável, ela (levanta a voz) urrou...urrou. (com desânimo) Parece que o coração ficou intacto. Já é alguma coisa, já serve (HILST, 2008, p.468).

No que diz respeito à ação da narrativa no teatro do absurdo, ela “não pretende contar uma história, mas comunicar uma configuração de imagens poéticas” (ESSLIN apud PALLOTTINI, 1989, p.122), ou seja: mesmo que exista uma narrativa, uma história a ser contada, ela parece estar sempre em segundo plano, sendo mais importante a forma como o texto se configura, e a expressividade a que ele se propõe. Nas peças teatrais de Hilda Hilst, existe sim a pretensão de se contar uma história, mas podemos dizer que isto se dá através de uma “configuração de imagens poéticas” por meio das palavras. É o caso deste monólogo que consiste em uma história contada ao Menino por sua Mãe, em O verdugo:

Mãe: Era uma estória muito boa. Eu sei inteira de cor. Eram dois homens, não é? Um mais velho e outro mais moço. Veja se está certo. Olhe para mim. (o Menino olha para a mãe e abaixa a cabeça) Começava assim: (a mãe ilustra a estória grotescamente. Fala com duas vozes masculinas, uma mais grave e a outra com a voz de um adolescente. (Voz grave) Você me lembra alguém...Agora me lembrei: Lázaro, Lázaro. Lógico. (voz de adolescente) Mas você alguma vez já viu o rosto de Lázaro? (voz grave) Não importa. Sei que você se parece com Lázaro. (voz normal) A tarde era de águas. E o homem e o adolescente caminhavam depressa. Agora tudo era mais espesso. O ar muito grosso, o chão coberto de folhas gigantescas, lixo, pássaros, muitos pássaros mortos, tudo lixo. (voz grave) Toma. (voz normal) Tirou do bolso um pedaço de carne. (voz grave) Come. (voz de adolescente) Carne! Nunca! Ainda que eu tivesse de comer as folhas espremidas desse chão. (voz grave) Bem, se não comemos, é melhor jogá-lo fora... (voz adolescente) O importante é chegar...você não vê... noutro lugar. Corre, corre. (voz normal) Eles fugiam, fugiam, tentavam correr, e viram de repente aquelas mulheres velhas perto dali. As velhas colocavam plumas nas pequenas armações. (voz adolescente) Serão asas o que elas constroem? Hein? (voz grave) Claro! Claro! Você nunca viu? São asas para a procissão (HILST, 2008, p.308-309).

Apesar da distância formal, percebemos uma conexão temática entre o ser humano pensado no gênero absurdo e o ser humano em Hilda Hilst. No primeiro, é um sujeito “para o

28

Ver mais sobre a biografia de Joana d’Arc no artigo Julgamento e processo de condenação de Joana d’Arc:

teologia e poder, autoria de Fabrício Reinaldo Cerini, disponível em:

qual a razão não faz sentido, o desencontro é irremediável. Um desiludido, desesperançado, candidato ao suicídio (...). Alguém que busca (...) comunicar-se quando não acredita mais na comunicação” (PALLOTTINI, 1989, p.114), traços que reverberam fortemente em alguns personagens de Hilda Hilst, como a personagem América, de A empresa (A possessa), ou a Irmã H de O rato no muro. No entanto, é importante ressaltar (novamente) para que não haja um erro de interpretação, que o intuito aqui não é denominar a obra teatral de Hilda Hilst como teatro do absurdo, até porque ela se diferencia bastante daquilo que foi produzido e reconhecido como tal; mas sim apontar características e aspectos do teatro do absurdo que podem servir de análise para compreender o universo dramatúrgico de Hilda Hilst, bem como aprofundá-lo, por meio de uma aproximação de temáticas e interesses presentes nestas linguagens, e não através do uso de formas e estruturas teatrais.

Ao contrário do que vimos no teatro do absurdo, analisaremos agora como a dramaturgia de Hilda Hilst pode dialogar estruturalmente com aspectos da performance linguística, ou melhor: como e quais aspectos formais do performativo podem ser interpretados como partes comuns ao teatro de Hilst.

II.4 – PERFORMANCE LINGUÍSTICA: TRAÇOS DO PERFORMATIVO, DO NÃO