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Para efetuar um estudo dramatúrgico centrado no personagem, é necessário problematizar, em primeiro lugar, a própria terminologia. Cada vez mais, o personagem se encontra, em uma perspectiva contemporânea dramatúrgica, “dividida, explodida, distribuída em vários intérpretes, questionada em seu discurso, reduplicada, dispersa” (UBERSFELD, 2005, p.69). Algumas vezes recebe o nome de “seres ficcionais”, “voz” ou “presença”, todos os termos completamente discutíveis e suscetíveis a polêmicas intermináveis, mas ainda assim, não se pode negar a existência e a sobrevivência dos mesmos.

Não há evidências de que o teatro [como no romance] também possa fazer economia da personagem e que essa se dissolva numa lista de propriedades ou de signos. Que ela é divisível, que não é mais uma pura consciência de si, onde coincidam a ideologia, o discurso, o conflito moral e a psicologia, ficou claro desde BRECHT e PIRANDELLO. O que não quer dizer, mesmo assim, que os textos contemporâneos e as encenações atuais tenham deixado de recorrer nem ao ator nem, pelo menos, a um embrião de personagem. Permutas, desdobramentos, ampliações grotescas de personagens, de fato, só propiciam a conscientização do problema da divisão da consciência psicológica ou social. Elas trazem sua pedra para a demolição do edifício do sujeito e da pessoa com um humanismo já exaurido (PAVIS, 2005, p.289).

Em sua concepção clássica, o personagem é visto como o condutor da ação e produtor do conflito, “um determinante da ação, que é, portanto, resultado de sua existência e da forma como ela se apresenta” (PALLOTTINI, 1989, p.11). O dramaturgo é responsável por criar um personagem, um “ser ficcional que, através da imitação, (...) dê vazão ao fluxo de suas idéias, tudo isto obedecendo a um plano de trabalho que se baseia na evolução dramática, e que conduz a um fim, a um alvo, à meta final que o autor se propôs e propôs aos personagens” (PALLOTTINI, 1989, p.13). Observando tais determinações, percebemos que estudar o personagem de Hilda Hilst a partir desta concepção seria uma forma redutora ao que é proposto dramaturgicamente pela própria autora, uma vez que os conceitos tradicionais podem ser questionados em seu teatro se estudado sob uma perspectiva contemporânea.

De acordo com Bonfitto, a utilização do termo “seres ficcionais” para definir os “actantes” (aqueles que agem) de um texto, ou de uma representação, “pretende atingir um horizonte mais amplo do que aquele associado ao termo ‘personagem’, frequentemente relacionado a indivíduos ou tipos humanos” (2009, p.22), como podemos observar na citação a seguir:

[em] toda a seqüencia da evolução do teatro ocidental (...): a personagem vai-se identificar cada vez mais com o ator que a encarna e transmudar-se em entidade psicológica e moral semelhante aos outros homens, entidade essa encarregada de produzir no espectador um efeito de identificação. (...) Essa relação se esboça desde os primórdios do individualismo burguês, desde o Renascimento e o Classicismo (BOCCACCIO, CERVANTES, SHAKESPEARE) e atinge o apogeu depois de 1750 e até o final do século XIX, quando a dramaturgia vê nessa rica individualidade o representante típico de suas aspirações ao reconhecimento de seu papel central na produção de bens e idéias (PAVIS, 2005, p.285).

Falar em personagem é, portanto, reportar a uma gama de significados e leituras que provavelmente já não preenchem todas as necessidades de um estudo do teatro contemporâneo. “Quando pensamos em seres ficcionais, podemos considerar a possibilidade de lidar com ‘seres’ que não são simplesmente indivíduos ou tipos, mas também com criações-composições poéticas que são funcionais às estruturas narrativas produzidas em cada processo criativo” (BONFITTO, 2009, p.22). Dentro desta elaboração, Bonfitto distingue três categorias de actantes: actante-máscara, actante-estado e actante-texto:

o actante-máscara envolve o que podemos chamar de personagem-indivíduo e personagem-tipo, as quais têm como característica o fato de serem referencializadas e temporalizadas. Ou seja, tais personagens são claramente situadas e oferecem parâmetros conceituais, psicológicos e sociológicos de reconhecimento. Na medida em que tais seres ficcionais sofrem processos de modalização, passando assim a serem definidos não somente a partir do que eles “fazem”, mas também a partir do que “querem fazer”, “podem fazer”, “sabem fazer” e “devem fazer” eles podem ser destemporalizados e ter, assim, a própria funcionalidade comprometida. O actante- estado (...) seria um produto de tais processos. Já o actante-texto emergiria de modalizações ainda mais acentuadas, que podem provocar o desaparecimento da intriga e a transferência para o texto dos predicados que contribuem para a constituição da personagem enquanto sujeito (BONFITTO, 2009, p.22).

Estas diferenciações me parecem interessantes para uma análise dos seres ficcionais que constituem um texto ou uma representação teatral, na medida com que abrem espaço para percebermos outros “motores” da dramaturgia; no caso de Hilda Hilst, podemos notar a presença de actante-máscara, uma vez que as figuras construídas pela autora possuem o personagem-tipo (que remetem a uma categoria específica, a uma classe) e o personagem- indivíduo (com uma particularidade, individualidade) na sua estrutura; e a presença do actante-texto, já que diversas vezes, é o texto destas figuras que produz o movimento da peça. Diante disto, refiro-me aos personagens de Hilda Hilst como “figuras teatrais”, ao invés de personagem ou seres ficcionais, pois entendo que a construção destes se dá num espaço entre estes dois termos: as figuras de Hilda Hilst estão atreladas a características do personagem, enquanto unidade psicológica, mas em seus discursos, esta unidade muitas vezes é

desconstruída; porém não chegam a “seres ficcionais”, no sentido abrangente do termo, pois estão estritamente vinculados a uma representação do(s) sujeito(s).

As figuras que compõe O rato no muro, Auto da barca de Camiri e As aves da noite diferem bastante umas das outras no modo como são construídas por Hilda Hilst, a começar pelo modo de apresentação. A primeira peça é constituída por dez figuras; destas, nove são denominadas Irmãs identificadas por letras que vão de A a I; e uma delas é a Irmã Superiora (cujo nome já identifica a sua posição perante as outras Irmãs no enredo). Na segunda peça, não são todas as figuras indicadas de antemão à narrativa: apenas sabe-se da entrada dos Juízes e do Trapezista, no momento em que a autora faz a indicação do cenário. O leitor vai descobrindo quem são as testemunhas no percurso da audiência. Já na terceira peça está o retrato de uma figura real (o Padre Maximilian), e as outras sete figuras fictícias são representadas por nomes que indicam sua posição social através da profissão e do gênero (como o Carcereiro e a Mulher). Aliás, essa opção de identificação dos nomes por classe- gênero se repete em outras peças de Hilda Hilst não presentes nesta análise (como O Verdugo e A morte do Patriarca), caracterizando um estilo de composição de figuras da escritora, e que dialogam com a concepção do personagem “divisível, permutável: ao mesmo tempo articulada em elementos e, ela mesma, elemento de um ou mais conjuntos paradigmáticos” (UBERSFELD, 2005, p.73). Este jogo com as nomenclaturas define as figuras não como um ser único e indivisível, mas como qualquer outro ser que pertença àquela posição determinada. Isto dialoga com o que Ubersfeld chama de o indivíduo personagem:

toda determinação individual da personagem pode desempenhar um duplo papel: a) pode fazer da personagem um indivíduo com uma alma, hipóstase da Pessoa, em relação com uma problemática idealista do Sujeito transcendental; b) também pode fazer do indivíduo um elemento bem determinado de um processo histórico; o papel do indivíduo é, então, não apenas o de remeter a um referente histórico por meio de um efeito de real de sua individualidade concreta (marcada, por exemplo, por um nome conhecido), mas ainda o de mostrar a inserção desse indivíduo em um contexto sócio-histórico determinado (UBERSFELD, 2005, p.81).

A partir desta proposição, podemos perceber que tanto o item a quanto o item b são inscritos na peça Auto da barca de Camiri, por exemplo. Embora não remeta diretamente a um fato real específico, a não ser por meio do nome da região que faz parte do título da peça (Camiri), Hilda Hilst coloca as figuras em uma situação histórica identificada somente através de um estudo do metatexto da obra. Estas são reconhecidas por sua posição e função social, o

que mostra a inserção dos “indivíduos personagens” em um contexto “sócio-histórico determinado”, mas não referido de modo direto.

O Auto da barca de Camiri é composto pelas seguintes figuras: Juiz Jovem, Juiz Velho, Trapezista, Povo, Passarinheiro, Agente, Prelado; além destas poderíamos acrescentar o Homem, que embora não participe dos diálogos através da sua própria fala, está sempre presente no discurso das outras figuras, inclusive nas didascálias. Entretanto, ele está ausente da cena representada, pois tudo o que ocorre ao homem é do lado externo ao tribunal, ou seja: o Homem é uma figura presente no conteúdo (e no texto) e ausente cenicamente, o que aponta para uma diferenciação entre o personagem escrito e o personagem representado. Esta diferenciação (aos estudantes de teatro) pode parecer óbvia, mas é importante fazê-la para discernir os elementos que textualmente configuram um personagem (no caso, uma figura teatral) e que após essa etapa será, então, representado (ou poderíamos chamar de reinventado, ou reapresentado). “A personagem cênica adquire, graças ao ator, uma precisão e uma consistência que fazem-na passar do estado virtual ao estado real e icônico” (PAVIS, 2005, p.288), ocasionando uma amplificação e, consequentemente, uma modificação do discurso do personagem textual. Portanto, o estudo de um personagem a partir da matéria escrita, envolve uma análise dos discursos disponíveis no texto pelo autor, mais do que uma impressão particular ou uma projeção desses personagens realizada pelo leitor. O personagem, já representado no palco, mostra a idealização de uma figura a partir da matéria textual, enquanto o personagem no texto é a matéria crua tal como configurada pelo texto. Portanto, uma análise deste no texto, é também, uma leitura e uma interpretação do analista. Tanto a análise do personagem na cena, quanto do personagem escrito, não é possível de ser feita isoladamente, sendo o personagem um conjunto de discursos e o ponto de cruzamento entre estes na narrativa.

Ouve-se nova rajada vigorosa de metralhadoras. O Trapezista sai correndo da sala e o Prelado ajoelha-se e reza. Um tiro seco.

Juiz Velho: O que era mesmo que eu estava falando? Juiz Jovem (aflito): Faláveis da (voz baixa) lei, Excelência. Ouve-se ruídos e muitas falas.

Juiz Velho: Ora bolas! Que tumulto! O Trapezista entra esbaforido.

Trapezista (ofegante): Senhores, o homem está morto. Tudo o mais é suposto! Juiz Jovem: Morto? O homem do milagre?

Não era tão milagroso? Juiz Velho (para o trapezista):

Acalmai-vos! Acalmai-vos!

Os homens quando ficam nervosos Fedem mais (HILST, 2008, p.222).

A relação de poder que os Juízes exercem sob as testemunhas e a situação é evidenciada a todo o momento, demonstrada nas didascálias que afirmam, por exemplo, a “demonstração de desagrado em relação ao cheiro” (HILST, 2008, p.200) na entrada e na presença das testemunhas, exceto do Agente; mas também através de uma indiferença que perpassa os diálogos entre os dois Juízes, e destes com as testemunhas. O Agente é a única testemunha que joga com a questão da superioridade perante as demais figuras, a começar pela sua roupa, descrita pela autora à sua entrada em cena: “o Agente está vestido como um militar. Farda negra. Botas altas” (HILST, 2008, p.207). Sendo um agente funerário, sua preocupação no enredo é como ficará o seu trabalho, uma vez que o tal Homem que faz milagres começou a ressuscitar os outros, ameaçando o seu serviço.

Agente (ameaçando os juízes): Se acreditardes no homem Na sua tola existência

Tenho uma ordem, Excelência: Que uma nova lei se faça: É preciso declarar

Que os pássaros ressuscitados Têm a mesma consistência Dos mortos e enterrados. Os juízes: Por quê?

Agente: Porque se o pássaro morreu uma vez, está morto, não é? (...) (bate na mesa onde estão os juízes):

A consistência dos mortos! Eu exijo!

E outra coisa eu proponho E me permito:

Todo aquele que morrer Definitivo ou não Seja uma, seja três Seja pássaro ou indivíduo

Deve comprar um caixão (HILST, 2008, p.207-208-209).

Nota-se nesta passagem que o Agente exerce uma superioridade até mesmo sob os Juízes, impondo a execução de uma nova lei que o favoreça. A discussão sobre a consistência do que está morto e do que está vivo fica ainda mais intensa com a chegada do Passarinheiro (nome que identifica um caçador de pássaros), mas não tem um ponto final. Eles saem brigando de cena com essa discussão, e não retornam mais. É um embate que não se encerra no enredo, aliás, como ocorre comumente nas peças de Hilda Hilst. Esta lacuna que fica

aberta no discurso textual é formalmente realizada através da justaposição dos discursos das figuras, em que não há um discurso predominante, mas sim a soma de discursos paralelos filosóficos e, até mesmo, intermináveis.

Em As aves da noite, a figura central do Padre Maximilian, é formada “por meio de um efeito de real de sua individualidade concreta” (UBERSFELD, 2005, p. 81) que é a utilização do nome próprio, historicamente verídico, do Padre. Além disso, a situação estabelecida no porão da fome (como já foi dito na explicitação da fábula desta peça no subcapítulo anterior) parte de um caso real ocorrido no campo de concentração nazista. O Padre é na peça uma figura apaziguadora entre todas as outras, mas também pode ser visto como um símbolo da grande questão mundana sobre a vida e a morte. É ele também o alvo central das perguntas feitas pelas outras figuras, principalmente com relação ao seu posicionamento em ocupar o lugar do outro prisioneiro para morrer. As figuras que dividem a cela, o Carcereiro (que também é um dos prisioneiros judeus), o Joalheiro, o Estudante e o Poeta, são questionadas e interrogam durante toda a narrativa em relação a sua própria vida, e ao que faziam antes de serem aprisionados. Os discursos são interrompidos por cortes e entradas bruscas em cena do SS (sigla da tropa militar nazista de elite que comandou os campos de concentração) e do Hans (ajudante do SS). Novamente, duas figuras detentoras do poder na peça, fortemente evidenciado através dos discursos e da nomenclatura. No início da peça a autora se refere à “Voz de um SS”, ou seja: há indicação de que existem outros personagens com esta nomenclatura que aparecem no princípio da peça, identificados pela mesma sigla, representando o mesmo status. A autora utiliza a sigla de um coletivo de pessoas para determinar uma figura naquela dada situação. É semelhante ao que ocorre com o Estudante, que pode ser lido como a representação de um coletivo de pessoas que estão num mesmo patamar, acreditando talvez nas mesmas coisas, buscando conhecimento e respostas; ou com o Poeta, que discursa sobre o corpo, a nostalgia, a existência, muitas vezes na forma de versos, em um discurso quase sempre filosófico.

A entrada da Mulher em cena causa uma ruptura no eixo intraficcional, pois ela mesma é a figura que representa através do seu discurso, a morte. Ela sabe como é a morte, ela mesma quem limpa os corpos, as fezes, e que desde pequena, gosta de estar entre os mortos para sentir-se viva. Descrita por Hilda Hilst como “forte”, ela é empurrada para dentro da cela por SS para passar a noite com os prisioneiros. Com a saída de SS e Hans, ela participa das conversas com as outras figuras contando sobre as torturas que ocorrem no campo de concentração, e explicando a função que exerce ali, dentre outras falas sobre seu

passado. Ela os aproxima da morte que em breve eles enfrentarão, por meio das suas narrações, ampliando, para o leitor, o clima de tensão da peça. Além disso, ela é um objeto praticamente jogado para dentro da cela, para divertimento dos prisioneiros, mas que entra na mesma linha dialógica das outras figuras; a sua presença traz novos elementos para os discursos dos outros personagens, como do Estudante que enxerga, na Mulher, a semelhança de uma mulher do seu passado; a peça segue uma linha intraficcional, entretanto, o movimento interno destes personagens é alterado, pois através do próprio discurso, modificam suas relações, transportando até mesmo para outras situações fora da cela, e resignificando estas figuras.

Carcereiro (interrompe violento, tom crescente): Não! Não! Ela vai contar até o fim, eu tenho direito de saber, eu tenho direito, de qualquer jeito eu vou morrer, conta, vamos, vamos, aí vocês entram...

Mulher (medrosa): Primeiro a gente... limpa o sangue... as fezes.

Maximilian (interrompe com delicadeza): Não diz mais nada, filha, não diz mais nada.

Carcereiro (sôfrego): E depois? E depois? (pausa) Mulher (agoniada): Depois separamos os corpos. (pausa) Joalheiro (com horror): Eles ficam agarrados?

Mulher: Difícil de separar... mas com cordas... com ganchos... Joalheiro (abobalhado): Você é forte, tem força. (pausa)

Estudante (tentando cortar definitivamente o relato da Mulher, rápido): Eu tive um amigo muito inteligente, muito inteligente mesmo, ele se chamava Isaac, ele queria ser biologista como eu, ele dizia: um dia eu vou escrever isso, veja se não é verdade, ele dizia para mim, olha, se um consumidor servir de alimento a um outro organismo, um segundo consumidor, o consumidor...

Poeta (interrompe desesperado): Não adianta, não adianta.

Estudante (rapidamente): Olhe, ele dava um exemplo bem simples, ele dizia: é bem simples, veja: se um leão vive de zebras e as duas espécies são mantidas estáveis na população, então deve existir cerca de dez quilos de zebra para cada quilo de leão. Simples, ele dizia, simples. Este é um exemplo de cadeia de alimento e invariavelmente cresce como uma pirâmide. (está exausto. Pausa) (HILST, 2008, p.264-265).

As aves da noite é um texto entrecortado por falas que podemos identificar como pequenos monólogos (conforme verificamos na fala do Estudante, na citação acima), em que cada figura discursa sobre seu pensamento, sua crença, em um momento que propicia o reconhecimento do leitor com um pouco do universo interno da figura de modo narrativo. Estes monólogos também são pontos chaves para reconhecer uma dramaturgia que explora uma dimensão da linguagem e do discurso que ultrapassa a noção mais simplória do diálogo como uma “conversa entre duas ou mais personagens” (PAVIS, 2005, p.92) para adentrar um campo mais amplo, em que os discursos dos personagens não produzem um movimento

externo na peça, mas um movimento interno, um ritmo, uma literalidade que conduzem o leitor por entre o enredo, deixando vácuos e lacunas a serem preenchidos.

Isto também ocorre em O rato no muro. As figuras, embora não possuam nomes próprios (como dito anteriormente), são caracterizadas por letras que, a princípio, não determinam as particularidades de cada uma, com exceção da Superiora. A autora opta por discernir os aspectos de algumas figuras de antemão ao texto dramático: “Irmã A: tem os olhos arregalados. (...) Irmã C: tem manchas de sangue na roupa. (...) Irmã G: muito velha. Come o tempo inteiro. Mastiga. (...) Irmã I: irmã de sangue da irmã H” (HILST, 2008, p.103). As outras Irmãs e algumas características das mesmas são reveladas durante o desenvolvimento do enredo. No entanto, as poucas qualidades que Hilst coloca àquelas Irmãs no momento da apresentação das figuras sugerem uma individualidade das mesmas, que é desconstruída algumas vezes durante a leitura da peça, quando as falas parecem se completar como uma voz uníssona, destacando a qualidade côrica do discurso.

Irmã H: Nunca! Eles deixaram as manchas... aqui. (aponta a parede)

Irmã I: E no pátio!

Irmã B: Eles tocaram o muro. Irmã A: Moveram os lábios. Irmã G: Tinham o hálito luminoso. Irmã C: Eles... sangravam.

Todas juntas: Sangravam?

Irmã C: Sim! Essas manchas na parede e aquelas outras no pátio são manchas de sangue.

Irmã H (em pânico): Mas não é possível... são tão escuras (HILST, 2008, p.126- 127).

Analisando o discurso das figuras teatrais, conforme sugere Ubersfeld, concordamos que “ele é também, sobretudo, uma mensagem que tem um emissor-personagem e um receptor (interlocutor e público), em relação com as demais funções de toda a mensagem, em particular com um contexto e um código” (2005, p.84). O contexto se refere à própria ambientação proposta pela autora: o convento, o julgamento, o cárcere, em uma situação de inação ou de rebelião; ou ainda o próprio contexto sociocultural ditatorial em que Hilda Hilst produziu sua dramaturgia, dentro de um código, que é a própria linguagem e os signos teatrais utilizados pela autora. As Irmãs de O rato no muro precisam confessar seus pecados à Irmã Superiora, mesmo que precisem inventá-los. A Irmã H é a mais resistente; é a figura questionadora e que pretende transformar as ideias das outras Irmãs, fazendo-as perceber que é preciso transpor o muro e enxergar o que não lhes é permitido ver. Ela insiste em dizer (logo

no início da peça) que não se recorda do seu pecado, contrariando a Superiora, uma vez que todas precisam ter ao menos um pecado diário do qual se redimir. Há, então, o momento em que as freiras se chicoteiam para se redimirem dos seus pecados. Os conflitos individuais que pertencem ao mundo de cada figura (como a procura incessante da Irmã E pelo gato, a obsessão da Irmã G por comida) são entrecortados por diálogos que se referem àqueles “seres”, e ao desejo de ultrapassar o muro que compõem o mundo real desta ficção.

Pensando a respeito dos conflitos inerentes a um estudo da figura teatral (ou do personagem) podemos verificar que há nas Irmãs um conflito interno, no qual “o maior