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3 – Alegorização, símbolo e qualidades políticas dos textos teatrais

Como vimos observando no decorrer deste estudo, os textos teatrais de Hilda Hilst como um todo se caracterizam por uma linguagem lírica predominante, ao tratar de modo poético sobre assuntos que giram em torno de questões políticas, e que podem ser lidas como manifestos à repressão instaurada no Brasil na década de 1960, bem como a diversas outras situações repressoras e ditatoriais ocorridas no mundo. Entretanto, a opção da autora pela utilização de metáforas e símbolos, que não se referem imediatamente ao contexto social da época (como veremos neste subcapítulo), deslocam seus textos para outro espaço-tempo, e possibilitam uma leitura tanto associada quanto dissociada do momento histórico, de tal modo que não sejam classificadas como peças documentais. Assim, ao retirar o fato histórico do seu contexto original e transpô-lo para outro contexto, resignificando seu sentido primeiro e fazendo-o adquirir um novo sentido, a autora nos possibilita enxergar esse fazer artístico- literário como um processo de alegorização do objeto:

a noção de alegoria não é exterior às obras [de arte], como um universal abstrato que seria ou não adequado às singularidades. O conceito de alegoria – como procedimento artístico e, sobretudo, crítico – tem o mérito de poder dar conta do modus operandi tanto do caráter formal das obras de arte e de sua inserção histórica, quanto do seu caráter de conteúdo. (...) A alegoria permite evidenciar aquilo que na obra de arte simultaneamente se apresenta: o seu conteúdo de verdade [aquilo que a obra de arte é] (...) e o seu conteúdo material [aquilo que ela possui de material de composição, do qual se originou] (MURICY, 2008, p. 47).

Compreendemos aqui a alegoria como um “processo de constituição de sentido”, à luz da noção desta por Walter Benjamin (1892-1940), em que é exigida uma interpretação por parte do leitor para ser apreendida; o que a diferencia da ideia do símbolo o qual “tende a negar a presença e a participação de qualquer sujeito constituidor do sentido, tendo tomado o seu sentido no ‘interior’, ou seja, tem ele sentido intrínseco, extinguindo-se a subjetividade (do criador)” (JUNKES, 1994, p.127-128). Em Teorias do símbolo (1996), Todorov realiza um estudo bastante esclarecedor para a compreensão do conceito de alegoria, mais precisamente no sexto capítulo intitulado A crise romântica, quando abre um subcapítulo para tratar especificamente da oposição entre símbolo e alegoria já realizada por Benjamin. Neste, Todorov clarifica e sintetiza tal distinção examinando “as principais exposições dessa oposição” (1996, p.251), a partir das ideias de pensadores e teóricos antecessores de

Benjamin; dentre eles está Friedrich Creuzer (1771-1858), filósofo e arqueólogo alemão cujas ideias e princípios serviram de suporte e ponto de partida para as teorizações de Benjamin. Para Creuzer:

a diferença entre essas duas formas [símbolo e alegoria] deve ser situada na instantaneidade, que está ausente na alegoria. Uma idéia se manifesta no símbolo num momento e integralmente, e atinge todas as forças de nossa alma. É um raio que cai diretamente das profundezas obscuras do ser e do pensamento em nossos olhos e que atravessa toda a nossa natureza. A alegoria nos obriga a respeitar e a seguir a evolução que toma o pensamento oculto na imagem. Aquela é a progressão instantânea; esta, a progressão numa série de momentos (CREUZER apud TODOROV, 1996, p.272).

Creuzer aponta a distinção entre símbolo e alegoria a partir da relação destes com a categoria tempo, destacando a “breviedade” do símbolo com relação à alegoria (BENJAMIN, 2004). O símbolo possui uma característica de imediatismo, uma relação com o tempo diferente da alegoria, que não é apreendida instantaneamente, uma vez que em sua estrutura referencial o símbolo representa o objeto de modo direto, não mediado, reflexões que se encontram presentes na concepção de Benjamin (2004). Já a alegoria evoca um processo de recontextualização do objeto que depende fundamentalmente da criação de um significado deste por parte do leitor, em que se expressa a “arbitrariedade” e há “participação da subjetividade” (FICHER-LICHTE, 1997). Oalegorista

investe-o [objeto] desse significado, e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele, não em sentido psicológico, mas ontológico. Nas suas mãos, a coisa transforma-se em algo de diverso, através dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe dá acesso a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema. É nisto que reside o carácter escritural da alegoria. Ela é um esquema, e como um esquema, um objecto do saber; mas o alegorista só não a perderá se a transformar num objecto fixo: a um tempo imagem fixada e signo fixante (BENJAMIN, 2004, p.199-200).

Assim, a alegoria é concretizada através de uma forma, no caso de Hilda Hilst é a escrita teatral, e está ligada intimamente com uma historicidade: a alegoria fala de uma linguagem histórica, ao mesmo tempo em que foge da completude e do caráter totalizante, refazendo-se constantemente, de tal modo que “a história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio. Com isso, a alegoria coloca-se declaradamente para lá da beleza” (BENJAMIN, 2004, p.193), formada por fragmentos e ruínas. Lima, em seu estudo intitulado Alegoria de Benjamin: saltos da cena barroca ao pós- dramático (2010), coloca que o conceito de alegoria por Benjamin se refere a

uma produção dramatúrgica que “revela um tempo violento protagonizado pelos eventos históricos da Reforma e da Contra-Reforma34 em que qualquer expressão direta de desacordo com o poder dominante significava, quase certamente, a tortura e a morte” (LIMA, 2010, p.4). Deste modo, o conceito de alegoria encontra-se “vinculado à noção de política que, especialmente no período barroco, descreve as ações cruéis de um poder hegemônico expresso na figura do soberano e da temática do luto” (LIMA, 2010, p.4), presentes nas manifestações artísticas da época. Este aspecto é fundamental para estabelecer o diálogo da alegoria, como um conceito datado, mas possível de utilização nos estudos atuais, com a dramaturgia de Hilda Hilst. “Nascido do estudo sobre o drama barroco alemão, [o conceito de alegoria] sempre teve a intenção mais ampla de se apresentar como idéia (...) [de modo que] continua válida ainda quando o contexto que a viu nascer já pereceu” (MURICY, 2008, p.47- 48). Sobre seu contexto:

o mundo barroco é o mundo das correspondências que objetiva mostrar a fragilidade do destino humano. A alegoria se opõe ao conceito de símbolo, este sinônimo de totalidade, de clareza e de harmonia desde Goethe até o romantismo alemão. A alegoria, ao contrário, é em si obscura. ‘Na relação simbólica, o elo entre a imagem e a sua significação (...) é natural, transparente, imediato (...) na relação alegórica o elo é arbitrário, fruto de uma laboriosa construção intelectual (...). A alegoria foi sempre criticada por pretender uma tradução sensível do conceito ao invés de fazer ver o sentido em sua imediaticidade.’35 A alegoria fala de uma outra coisa enquanto o símbolo liga dois aspectos da realidade em uma unidade bem-sucedida. Na era moderna, a reabilitação da alegoria terá o significado de afirmar a existência de uma obra de arte que não se enquadra na ‘harmonia clássica’ (GERALDO, 1992, p.99).

Pensando as peças de Hilda Hilst em análise a partir desta compreensão sobre alegoria, podemos perceber que há uma série de aspectos extremamente válidos para o estudo desta dramaturgia sob esta ótica. Quando Geraldo na citação acima aponta a “reabilitação da alegoria” na modernidade, que possui o significado de “afirmar a existência de uma obra de arte que não se enquadra na ‘harmonia clássica’” (1992, p.99), nos remete diretamente às peças de Hilda Hilst que são “desarmônicas”, não se encaixam em um gênero teatral específico, transitam por linguagens diferentes, permitindo leituras múltiplas que caminham

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A Reforma Protestante foi, em resumo, um movimento cristão iniciado no século XVI que exigia “mudanças no próprio cristianismo (...). Ao tentar interpretar a religião de maneira nova, os cristãos se dividiram, contestando a autoridade tradicional dos bispos e do papa” (MARANHÃO, 1999, p.154). Na Contra-Reforma foi a própria Igreja Católica que “mobilizou seus membros e fiéis no combate ao protestantismo e na tentativa de reunificar os cristãos” (MARANHÃO, 1999, p.162). “A Reforma do século XVI teve um duplo caráter de revolução social e revolução religiosa. As classes populares não se subelevaram somente contra a corrupção do dogma e os abusos do clero. Também o fizeram contra a miséria e a injustiça” (HAUSER apud ALVES, 2000).

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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. In: Obras escolhidas. Volume 1. Trad Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.47.

para uma dramaturgia performativa, ambígua e não dramática. O caráter político da alegoria relacionado a uma historicidade, citado anteriormente por Lima (2010), está presente em O rato no muro, Auto da barca de Camiri e As aves da noite, que, assim como na obra artística do período barroco em que o conceito de alegoria por Benjamin começa a ser decupado, também carregam em si todo o sofrimento, a descrença pela vida, o sentimento de luto, de perda, de indignação decorrente do contexto social. No caso de Hilda Hilst, a luta contra a ditadura militar, a desilusão com o mundo, com o homem e com Deus; no caso dos artistas barrocos, a luta contra o poder da Igreja, a revolta, o sentimento de buscar algo novo espiritual e socialmente.

Outro aspecto fundamental da alegoria é o seu caráter fragmentário:

a alegoria é essencialmente fragmentária, distante de qualquer perspectiva harmônica, totalizante do símbolo, ou de uma estética do belo. O gesto crítico por excelência é, para Benjamin, o do alegorista que arranca uma parte, fragmenta o todo, desrealiza o mundo das coisas, destituindo-as de sua função original. Com este gesto destrutivo torna-se possível uma libertação da hegemonia totalizante, para a construção, nas ruínas, nos fragmentos, de novas linguagens e novos sentidos (MURICY, 2008, p.48).

É por meio da fragmentação que o alegorista permite outras leituras do objeto à parte de uma compreensão totalizante, possibilitando uma quebra com o contexto original para colocá-lo em um novo contexto (FISCHER-LICHTE, 1997), privilegiando “o fragmentário frente à totalidade” (BENJAMIN, 2004, p.203) e a instantaneidade do símbolo. Deste modo, “a ambiguidade, a plurivalência de sentidos, é o traço essencial da alegoria” (BENJAMIN, 2004, p.191) que justamente a contrapõe ao símbolo. O diálogo do conceito de alegoria com as dramaturgias contemporâneas reside principalmente nesses aspectos tanto da historicidade quanto da fragmentação e da ambiguidade de sentidos que tais aspectos evocam; a alegoria, portanto, pode ser vista como uma categoria que “se utilizada dentro de uma operação que envolve a leitura da obra e a crítica de arte, [pode] desvelar enigmas sem invalidá-los, mantendo sua tensão e (...) dando continuidade à sua produtividade enquanto mistério da arte que opera para manter o espaço produtor de sentidos” (LIMA, 2010, p.3-4). Por esse viés, concordo com Lima (2010) no sentido de que é possível pensar “possibilidades de usos do conceito de ‘alegoria’” na cena contemporânea, e para esse estudo, na dramaturgia de Hilda Hilst, como veremos a partir de agora.

Em As aves da noite, Hilda Hilst parte de um fato histórico bem específico para desenvolver uma história ficcional a partir de fragmentos desta realidade, sobre a história do

Padre Maximilian Kolbe no campo de concentração nazista, Auschwitz. É uma peça que apresenta uma cenografia e uma proposta de cena em que o público é parte integral da proposta poética, como ela mesma explica: “idealizei o cenário de As aves da noite de forma a conseguir do espectador uma participação completa com o que se passa no interior da cela” (HILST, 2008, p.231). As cenas acontecem dentro de um “cilindro de altura variável, dependendo da altura do teatro”, com “cadeiras individuais à volta do cilindro, isoladas uma das outras por divisões” (HILST, 2008, p.231). Deste modo, a autora realiza um jogo com o eixo extraficcional, proporcionando ao público uma recepção sensorial de isolamento e de prisão, que é a situação em que se encontram as figuras da peça. Não há outras identificações cenográficas através de símbolos, por exemplo. Aqui há um vazio preenchido somente pelas palavras e pela presença das figuras em cena.

Ao colocar a figura do Padre Maximilian que é uma representação de um sujeito real, descrito com exatos 47 anos (a idade em que o Padre foi morto), ao lado de outras cinco figuras teatrais, Hilda Hilst retorna a um fato histórico ocorrido em 1941 por meio de um processo de alegorização, desenvolvendo o que poderia ter acontecido dentro da cela. Os questionamentos à vida e a espera pela morte, entretanto, são apresentados como questões indicativas do momento histórico (o nazismo) que a autora procurou retratar, destacando as marcas da historicidade presentes na forma como a peça foi elaborada, e não somente através do conteúdo explícito. A descrição da figura do Padre Maximilian, que “usa uma batina de aspecto grotesco, sem mangas” (HILST, 2008, p.239) remete a uma veste própria cristã. No entanto, o fato da batina possuir um aspecto “grotesco” e estar “sem mangas”, coloca esta figura em um “estado de debilidade”, próprio da situação em que o Padre, junto com as outras figuras, está vivendo. O Padre e o fato de ter se voluntariado para morrer no lugar de outro homem, são fragmentos retirados da realidade e colocados em uma estrutura teatral, na qual questões sobre a vida, Deus e o sofrimento de esperar a morte sem poder reagir, são expostas.

Cacereiro (colérico, de voz baixa): Maximilian, você quer me dizer que esses filhos da puta têm alma? O que é a alma então? O que é? Eu não posso ter nada que eles têm.

Poeta (apertando o estômago e o ventre): Minha mãe, eu não agüento. Eu não vou agüentar, eu não vou agüentar.

Joalheiro: Nenhum de nós vai agüentar. Vamos morrer.

Maximilian (indo de encontro ao Poeta): Filho, fala um pouco mais conosco, fala. Nós precisamos falar. (...) Então você escrevia versos... hein? (HILST, 2008, p.249- 250).

Somente retirar o fato histórico e transpô-lo para o texto teatral não é, em si, a completude do processo alegórico. O que torna possível enxergarmos este procedimento de Hilda Hilst como uma alegorização do objeto são os meios como ela desenvolve esta releitura, abrindo espaço para que o leitor/espectador faça uma interpretação dos fatos a partir da reapresentação dos mesmos em outra contextualização, que é a relação destes prisioneiros entre si e com as figuras que representam o poder, o SS e o Hans (ajudante do SS). Cada figura compartilha, no interior da cela, aquilo que traz de bagagem “da vida lá fora”, com os outros prisioneiros, em meio aos delírios e aos ataques de histeria provocados pela fome e pelo cansaço. As interrogações sobre a alma e sobre Deus, por exemplo, são praticamente ignoradas por Maximilian que recusa esse tipo de discussão, sempre voltando para outros assuntos que não o desespero existencial ou o fatalismo daquela situação; ele retoma assuntos que levam os outros prisioneiros para fora da cela, fazendo-os reviver o passado para que não sintam o presente. Maximilian, após o pedido do Poeta para matá-lo, faz um discurso que pode ser interpretado como um questionamento da sua própria fé (algo que, para um Padre, na realidade seria impensável), fazendo-nos enxergar outro lado desta figura cristã como um homem, como um ser humano, e não como uma santidade:

Maximilian: Filho, não será tão difícil, você vai ver, escute, quando eu entrei para o seminário (tentando ser natural) eu pensava que nas minhas orações... Deus se mostraria. Pensava que o ato de rezar seria acompanhado de infinito consolo, que eu teria sensações, sabe? Me sentiria leve, o coração ficaria inundado de luz, de calor, quem sabe... se até visões eu teria. Uma vez diante do Santíssimo exposto eu vi uma claridade... uma claridade... e depois sabe o que era? (ri) Tinham acendido a luz da sacristia. (ri) A luz, sabe, a luz lá dentro também clareou o altar, lógico. (ri) Lógico, lógico, a luz da sacristia (HILST, 2008, p.252).

Nesta fala com um tom de comicidade por Maximilian, o que vemos é a desconstrução da figura séria e plena do Padre, que aos poucos é desconstruída por Hilda Hilst no modo como constrói a presença cênica desta figura, por meio da própria caracterização e do discurso, afirmando a figura do Padre como portadora de uma função crítica no seu modo de apresentação e relação com as outras figuras e o contexto; Hilda Hilst reescreve Maximilian Kolbe como um Padre36, uma figura santa, mas dotada de características humanas, evidenciando a crítica à própria Igreja e às doutrinas estabelecidas.

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Cabe ressaltar que o Padre Maximilian Kolbe foi, inclusive, canonizado pela Igreja Católica, e lê-se que procurava dar palavras de consolo e amor para os outros prisioneiros. Ver mais sobre a história verídica do Padre Maximilian Kolbe em http://www.cancaonova.com/portal/canais/formacao/internas.php?e=11051; ou no filme

Auto da barca de Camiri é uma peça em que o alegórico pode ser identificado com clareza e em profundidade. O texto aborda a figura de Che Guevara em uma história ficcional sobre o dia de sua execução. Esta percepção não nos é fornecida de modo direto através do nome dele propriamente, mas a situação em que é colocado o personagem Homem, em um contexto de rebelião, onde há um julgamento em que algumas testemunhas afirmam tê-lo visto, inclusive visto seus milagres, enfim, tudo isto contribui para uma leitura da peça como a recontextualização da história de Che Guevara em uma situação ficcional. A autora realiza uma alegorização da figura e do fato histórico também no momento em que coloca o “mito” Guevara comparado à figura de Cristo, mais evidentemente ao final da peça, quando indica a utilização de slides com a imagem de Cristo após a morte do Homem:

Trapezista: Pelo meu Deus!

Não é o mesmo rosto? (slides do rosto de um dos cristos de Ticiano) Vêde! Não é o mesmo corpo?

Não é o mesmo corpo?

Slides com corpo de Cristo morto. Uma das posições parecida com a descida da cruz de Ticiano. Slides da descia da cruz; rápidos, simultaneamente.

Juiz Jovem: Mas o Cristo alimentou as gentes E não os cães.

Trapezista: Mas dizem que o homem Chegou a isso por imposições! Que quem o viu falar

Jamais o entendia. Que aqueles para quem Ele vivia

Tinham rostos de pedra. Olhavam-no com espanto!

Slides do Cristo sendo flagelado, entre as gentes, diante de Pilatos (HILST, 2008, p. 223-224).

Os slides de Cristo que surgem aqui na dramaturgia como proposta para a representação, podem ser interpretados como imagens do próprio Homem da narrativa, que até então, não esteve presente (fisicamente) em cena. Por sua vez, as imagens cristãs são (primeiramente) símbolos que remetem imediatamente ao cristianismo, mas dentro da alegorização realizada pela autora, ganham um significado distinto do tradicional, possibilitando uma leitura deste Homem como sendo o próprio Cristo. Assim, vislumbramos dentro desta alegorização, tanto a figura do Homem como o revolucionário Che Guevara, quanto do Homem como Cristo; e ainda uma terceira interpretação, que seria da proximidade dos “mitos” de Che Guevara e Cristo redentor. A autora realiza uma costura de diferentes que conta a história da sua vida intitulado “Maximilian Kolbe”, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=_JB8cOY4_hI.

visões sobre estes “mitos” que fazem parte da história mundial ocidental, por meio de um processo de fragmentação destes contextos colocando em cena, no mesmo patamar, a figura do revolucionário e do religioso. Este artefato de Hilda Hilst, através da sobreposição de camadas históricas, também pode ser compreendido como uma crítica ao próprio cristianismo e às verdades que a Igreja prega aos seus seguidores, problematizando suas crenças; uma tensão fundamental para o sentido dos slides na peça, e para seu projeto poético, colocando em questão verdadeiros dogmas da Igreja.

Na descrição de cenário em Auto da barca de Camiri são apresentados “símbolos enormes de justiça”, que embora não mostrados através de imagens visuais no texto, localizam o leitor em um tribunal de júri, reforçado pelas “duas cadeiras negras altíssimas” (HILST, 2008, p.185) e pelas togas que compõe o figurino dos Juízes. Entretanto, com a entrada do Trapezista em um trapézio, juntamente com a informação fornecida ainda na descrição de cenário que, neste momento, os Juízes “devem estar de ceroulas somente” (HILST, 2008, p.185), a imagem do tribunal do júri como um lugar de seriedade, julgamento, respeito, justiça, é desconstruída e transformada em um verdadeiro picadeiro. Novamente, a autora retira do seu contexto original um fragmento da realidade, que faz parte do imaginário do leitor, e a transporta para outro contexto, que também possui uma referência, tornando possível a interpretação do tribunal como um verdadeiro circo, em que atuam dois palhaços (que seriam os próprios juízes, de ceroulas). A meu ver, uma bela crítica da baderna que, até hoje, ocorre nos tribunais de justiça, a qual (do mesmo modo que a crítica ao cristianismo)