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Falar de estrutura dramática, ou de modo mais geral, de estrutura da obra teatral, é indicar, conforme Pavis, que “as partes constituintes do sistema são organizadas segundo um arranjo que produz o sentido do todo” (2005, p.149), o que no caso de uma representação teatral engloba vários outros sistemas que não estão apenas vinculados à dramaturgia. O que chamamos aqui de estrutura textual dramatúrgica se refere exatamente às “partes constituintes do sistema” de um texto teatral, partindo de concepções tradicionais do dramático e ampliando para discussões contemporâneas acerca de estudos de obras teatrais. Dentre todas as partes que compõe a estrutura de um texto teatral, faço um recorte para o estudo da fábula, do conflito e do desenlace de O rato no muro, Auto da barca de Camiri e As aves da noite. Embora o campo desta análise esteja restrito ao texto enquanto obra literária finalizada, deve- se levar em conta que por ser um texto teatral, a análise das estruturas textuais acabam por direcionar a uma leitura que engloba o representacional, através do estudo, por exemplo, das didascálias (que são o material para composição das cenas e dos personagens através de indicações próprias do autor), ou da descrição de cenário e figurino (que também apontam aquilo que poderá/deverá ser levado a cena), como também do jogo com os eixos de comunicação perceptíveis não só nas didascálias, mas também, por exemplo, em traços formais mais líricos e côricos do que dramáticos.Deste modo, faço uma abordagem que adere a relação texto-representação, discutida por Ubersfeld (2005), procurando entender aquilo que é próprio da representação e aquilo que é próprio do texto, partindo “do pressuposto de que há, no interior do texto de teatro, matrizes textuais de ‘representatividade’; que um texto de teatro pode ser analisado de acordo com procedimentos (relativamente) específicos que iluminam os núcleos de teatralidade no texto” (UBERSFELD, 2005, p.6). É o que veremos através deste estudo, a começar pela compreensão da fábula.

Para Aristóteles, em conformidade com seus princípios filosóficos e, particularmente, com sua teoria da mimese, o autor trágico é acima de tudo um ‘artífice de fábula’. Isso significa que sua preocupação principal é agenciar entre si as ações que compõem a peça. ‘Agenciá-las’ de maneira a que essa fábula tenha um começo, um meio e um fim, a que ela comporte trama e desenlace – através da peripécia e (eventualmente) reconhecimento – do conflito e permita assim a catarse. (...) Na Estética de Hegel, a unidade e a lógica da fábula ver-se-ão ainda mais fortalecidas em detrimento da dimensão puramente emocional. Por um lado, toda ação tende supostamente a um fim determinado, ou seja, é tributária de suas próprias consequências; por outro lado, o conflito (...) deve desembocar, no momento da catástrofe, num “apaziguamento final” em forma de resolução lógica (SARRAZAC, 2012, p.80).

A fábula, nestas concepções, é entendida como o próprio enredo da história, ou seja, a organização dos fatos numa sequência linear e progressiva, desenvolvendo para um determinado fim. Entretanto, uma das “dificuldades” ou “ambiguidades” referente ao vocábulo fábula (SARRAZAC, 2012), está na dupla definição já apontada por Pavis: “duas concepções opostas do lugar da fábula: - como material anterior à composição da peça; [e] como estrutura narrativa da história” (2005, p.157). Esta última definição é a concepção clássica; a primeira se refere mais precisamente à “fábula como matéria”, visto que “no teatro grego, a fábula é muitas vezes tomada de um mito conhecido, preexistente a obra dramática” (PAVIS, 2005, p.158). Outra concepção colocada por Ryngaert (1995) clarifica a distinção entre a fábula e o enredo (ou a trama) de uma história: este último seria visto como a “sequência das ações” de uma peça (ou de uma história) como são apresentadas pelo escritor de modo concreto; assim, a fabula envolveria um ponto de vista sobre essa história apresentada, ou seja, seria a narrativa que está por trás da estruturação do enredo, a história que pretende ser contada através deste. Esta diferenciação entre fábula e enredo se faz essencial para compreensão dos termos utilizados nas análises aqui realizadas.

Auto da barca de Camiri é uma peça em ato único, cujo enredo inicia com a chegada de dois juízes (o Juiz Jovem e o Juiz Velho) à cidade para ouvir as testemunhas (o Passarinheiro, o Trapezista, o Agente e o Prelado) e determinar a existência ou a não existência de um homem. A peça, que traz no título a designação de auto, faz uma referência quase imediata aos Autos Sacramentais da Idade Média, que consiste basicamente em “peças religiosas alegóricas representadas na Espanha ou em Portugal por ocasião do Corpus Christi e que tratam de problemas morais e teológicos (o sacramento da eucaristia)” (PAVIS, 2005, p. 31), caracterizadas por representar o mundo dos homens e o divino, mesclando figuras mundanas com figuras mítico-religiosas. Camiri é uma região de Bolívia onde Ernesto Rafael Guevara de la Serna, conhecido como Che Guevara (1928-1967) foi executado. Consagrado como um “mito heróico do nosso tempo” (VINCENZO, 1992, p.52), sua imagem e história são veneradas principalmente em Cuba e com grande força por toda a América Latina, atualmente, com um caráter religioso e mítico; outros aspectos como as didascálias mais próximas ao final do texto que suscitam slides com imagens de Cristo, e as associações que surgem no decorrer do enredo ao homem que faz milagres, denotam questões ligadas à religiosidade presente na narrativa e podem designar a opção de Hilda Hilst por caracterizar esta narrativa como um auto.

Embora o nome do guerrilheiro Che Guevara não apareça na peça, as alusões a este contexto podem ser percebidas primeiramente através do título que comporta o local onde ocorreu o assassinato e em seguida por meio das menções feitas ao homem que está sendo procurado na cidade pelos Juízes, o ambiente de rebelião e guerrilha no qual a narrativa se desenvolve.

Trapezista (no trapézio): Senhores:

No nosso tempo de desamor e lamento É raro ser bom prelado

Ser passarinheiro Ou trapezista.

Escurecimento. Ruído de metralhadoras. Silêncio. Uma voz (tom de comando, em tensão):

No coração! No coração!

Logo em seguida, estampido de revólver. Luz.

Juiz Jovem: Que lugar, santo Deus! Que lugar! Isso é uma injustiça. Juiz Velho: Social?

Juiz Jovem: Não, não! Obrigarem-nos a fazer esta visita (HILST, 2008, p.187).

No caso de Auto da barca de Camiri, a autora partiu de um fato real (que pode ser visto como a matéria para a fábula) para desenvolver um texto dramatúrgico a partir deste material, aproximando da primeira ideia da fábula apresentada anteriormente. Se desconsiderarmos os acontecimentos históricos, e procurarmos desvendar o texto dissociado deste contexto, o que vemos é uma peça que trata de questões como a justiça, liberdade e hipocrisia; entretanto, no momento em que percebemos os direcionamentos contextuais dados pela autora, conseguimos adentrar com maior clareza ao universo desta fábula, concordando com a afirmativa de que “nenhum texto se deixa sondar em profundidade sem o auxílio da historiografia. É que, a rigor, toda análise textual é contextual. (...) Quer dizer que não é o contexto que importa, é o texto, mas este, sem aquele, corre o risco de permanecer impermeável às sondas analíticas” (MASSAUD, 1977, p.17). Ou seja: o contexto (histórico, social, cultural) não prevalece sobre o texto, mas integra-o e permite uma amplitude e um adensamento da análise em questões mais específicas inerentes ao objeto de estudo (no nosso caso, a peça teatral).

Escrita em versos, entrecortada por canções entoadas pelo Povo e também pelo Trapezista, Auto da barca de Camiri aproxima-se de uma linguagem farsesca, com um humor dirigido principalmente pelos Juízes, figuras cômicas, dotadas de tom irônico e detentoras do poder (o poder da decisão e do julgamento) na história.

Juiz Velho: Mas com esse calor eu não vejo nada. Com esse calor todos fedem. Os homens fedem.

Juiz Jovem: Tem razão, tem razão. Os homens são seres escatológicos. Esse tema é ótimo para discorrer. Veja. (vira-se para a platéia) Escatologia, certamente os senhores saberão o que é: nossas duas ou três ou mais porções matinais expelidas quase sempre naquilo que convencionalmente chamamos de bacia. Enfim, (curva a mão em direção à boca e estende em direção ao traseiro) esse entra e sai. Para vencer o ócio dos senhores que dia a dia é mais freqüente, não bastará falar sobre o poder, a conduta social, a memória abissal, o renascer. É preciso agora um outro prato para o vosso paladar tão delicado. (vira-se para o velho) E se pensássemos num trabalho de escatologia comparada? Nada mais atual e mais premente.

Juiz Velho: Comparada com o quê? Juiz Jovem: Com tudo! Com tudo!

Juiz Velho: Ah, talvez bem pensado porque...

Juiz Jovem: Porque tudo o que se compara, se estende. E se transforma em conflito sempre eminente.

Juiz Velho: Tudo isso é bom para o teatro. Fale merda para o povo e seja sempre novo. Ah, nossa boca de vento...(põe a mão na boca num gesto de desprezo) Blá, blá, blá (HILST, 2008, p.189-190).

Podemos observar na passagem acima de Auto da barca de Camiri um claro momento de irrupção na linguagem do dramático por meio do épico, através do aparte31 em que o Juiz Jovem direciona seu texto para a plateia, conforme indicado na didascália. A explosão do épico no dramático faz parte do jogo com os eixos comunicativos – intraficcional e extraficcional – não sendo um elemento integral do enredo. Além deste, há outros momentos em que ocorre esta mesma quebra de modo bastante evidente, agora através do Juiz Velho:

Juiz Velho (desanimado): É, não adianta. As testemunhas serão sempre infectas. (guarda o tampão)

Juiz Jovem: Infectas. (guarda o tampão)

Juiz Velho (para a plateia): E isso é teatro, senhores. Conflito iminente... nem sempre. Pois vêem que estamos de acordo (HILST, 2004, p.192).

Nas duas passagens acima, os apartes não funcionam como comentários da situação em cena, mas sim como provocações diretas ao público; na primeira, o Juiz Jovem afirma que não basta falar sobre assuntos “sérios”, ou “profundos”, pois (em outras palavras), o que aguça o povo é falar “merda”, porcaria, isto sim que é “bom para o teatro”. Ora, não estamos aqui diante de uma voz da própria autora, reflexo da sua visão sobre o povo ocioso, predisposto a fazer nada? Não seria este um convite da autora para que o público (o povo) tome uma posição, uma atitude, diante desta “ofensa”?

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APARTE: “Discurso da personagem que não é dirigido a um interlocutor, mas a si mesma (e conseqüentemente, ao público (...). Não se deve confundir a frase dirigida pela personagem como a si mesma e a frase dita intencionalmente ao público” (PAVIS, 2005, p.21).

Além destes exemplos, outro momento de explosão do épico na narrativa que merece ser destacado é a cena em que três músicas são cantadas pelo Povo e pelo Trapezista, cujas letras funcionam como esclarecedoras da situação ocorrida na cidade, além do deboche com a figura dos juízes, na fala do Trapezista que antecede as letras das canções:

Juiz Velho (para o Trapezista): Sai, sai. Pois estamos quase nus. Trapezista (desce do trapézio):

E o que isso importa? Um juiz é

E será sempre um juiz.

Da matriz (aponta o sexo do juiz) à morte.

Juiz Velho(empurrando o Trapezista para fora): Com licença, com licença. (começa a vestir a toga) Isso é demais. Isso é demais!

Risos do povo. Alguém pergunta: “Quem são esses homens?”. “São da cidade.” “E vêm fazer o quê?” “Eles vem dizer se o homem existe ou não.” “E a gente não sabe não?” Muitos risos. Música. O povo invade a sala dos juízes, homens e mulheres tentam fazê-los dançar. Os juízes estão muito aflitos, tapam as narinas, procuram as roupas etc. O povo canta (HILST, 2004, p.193).

Após este “prólogo”, entram três canções, identificadas por “letra da primeira música”, “letra da segunda música” e “letra da terceira música”. Observando as músicas, percebemos que através do seu conteúdo procuram introduzir o leitor na história, cantada pelo povo, em meio aos juízes, no tribunal: “Ai, coisa complicada/São os da cidade/Os que vêm dizer/Se o homem que a gente vê/É de verdade ou não/ É de verdade ou não” (HILST, 2008, p.194), funcionando como um alerta ao público sobre o que está acontecendo. A última letra é indicada para ser cantada primeiramente pelo Trapezista e depois pelo Povo: “Sobe no meu dorso/E vê se faz um esforço/ Pra chegar ao alto./Ai, eu quero subir/E abrir minha asa/E te dar meu canto” (HILST, 2008, p.195). Ao analisarmos a última música pensando na proposta poética da autora com essa peça, identificamos aqui vestígios da luta pela liberdade, do esforço para chegar aonde se almeja, presentes nesse momento de irrupção da fábula pelo Povo, que de certa forma entrega a história para o público logo no princípio da peça.

A outra peça de Hilda Hilst que carrega em si de modo bastante visível a concepção da fábula como matéria anterior à composição da peça, ponto de partida para a construção dramatúrgica, é As aves da noite. A fábula é baseada na figura real do Padre Maximilian Kolbe (1894-1941), e no fato do mesmo ter se voluntariado para morrer no lugar de um outro homem no campo de concentração nazista. As palavras de Hilda Hilst que antecedem o texto explicam o motivo e o anseio da autora em falar sobre este acontecimento:

com As aves da noite, pretendi ouvir o que foi dito na cela da fome, em AUSCHWITZ. Foi muito difícil. Se os meus personagens parecem demasiadamente poéticos é porque acredito que só em situações extremas é que a poesia pode eclodir VIVA, EM VERDADE. Só em situações extremas que interrogamos esse GRANDE OBSCURO que é Deus, com voracidade, desespero e poesia. “A tortura da fome faz descer o homem ao nível do animalesco, pois a resistência humana tem os seus limites – além dos quais só restam o desespero ou a santidade” M. Vinoswska, Pater Maximilian Kolbe. Friburgo, 1952 (HILST, 2008, p.235-236)32.

Esta introdução permite um mergulho no universo proposto pela autora que antecede o contato com a narrativa em si, algo que vejo também como um estímulo para o diretor/ator/leitor (público) e um preparo para recebê-lo enquanto literatura, e posteriormente, enquanto encenação, mas que se configura como observações da própria autora com relação a sua obra, mais do que como material textual para a cena.

Com relação ao desenvolvimento do enredo de As aves da noite, ele é muito mais centrado em uma estrutura dramática tradicional se comparada a de Auto da barca de Camiri; não há momentos em que os personagens se dirigem a plateia configurando um aparte, por exemplo, ou momentos em que há uma quebra da ilusão teatral, pelo contrário. Observemos a descrição de cenário de As aves da noite:

cilindro de altura variável, dependendo da altura do teatro. Altura do interior da cela, dentro do cilindro: 1,90 m. Na cela, porta de ferro baixa com pequeno visor.

Janela à volta do cilindro recoberta de material transparente (arame, acrílico, etc.). Cadeiras individuais à volta do cilindro, isoladas uma das outras por divisões. Nota

Idealizei o cenário de As aves da noite de forma a conseguir do espectador uma participação completa com o que se passa no interior da cela. Quis também que o espectador sentisse total isolamento, daí as cadeiras estarem separadas por divisões (HILST, 2008, p.231).

Podemos perceber que a descrição acima coloca o público totalmente imerso na ficção proposta, praticamente sem possibilidade de interação ou intervenção com a cena e os personagens. As quebras com o dramático ocorrem muito mais em função do caráter situacional em que o enredo está inserido: o maior conflito é dos homens à cela com a sua própria vida e morte, entre lembranças, desejos e medos.

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Esta percepção de Hilda Hilst encontra uma forte resistência no pensamento do filósofo Theodor W. Adorno (1903-1969): “Em uma parte da Dialética negativa [1966], Adorno trata de um dos seus temas mais caros, o impacto de Auschwitz no pensamento ocidental. Nesse aspecto, Adorno investiga a articulação direta entre estado de choque e filosofia, expondo que a interiorização da extrema violência de Auschwitz motiva a reelaboração do interesse filosófico” (GINZBURG, 2003, p.66), de modo que se repense o fazer literário- artístico-poético na “era das catástrofes”.

Estudante: Quando eu digo lá fora... é outro tempo, muito longe... tudo muito longe daqui. (pausa)

Carcereiro (para Maximilian que está ajoelhado fora do centro): Mas até quando você vai ficar assim?

Joalheiro (para o Carcereiro): Deixa ele sossegado.

Estudante: Uma certa ansiedade... vem sempre quando começa a noite (sem pausa) você sabe que tem gente que pega um gato...

Joalheiro (interrompendo): Que gente?

Estudante:... e cria o gato num quarto escuro desde pequeno. Depois... um dia... solta o animal numa manhã...

Carcereiro (interrompendo): De sol? (pausa)

Estudante (lentamente): De sol, de sol, de muito sol, muito sol. Joalheiro (para o estudante): Que gente?

Maximilian (ainda ajoelhado): Há certas coisas absurdas... mas que talvez seja o medo... que faz com que as pessoas façam certas coisas absurdas (HILST, 2008, p.244-245).

Os diálogos são concebidos de modo que se constroem imagens e sensações para o leitor por meio de conflitos que estão profundamente ligados ao íntimo dos personagens, e não por conflitos entre personagens antagônicos, mas sim destes com forças ocultas ou com a própria situação de inação estabelecida. Aqui, a concepção de conflito dialoga bastante com aquela proposta no Léxico do drama moderno e contemporâneo (2012), no qual o sentido do termo conflito é ampliado e “não designa mais apenas o instante preciso da colisão [dramática], mas mais genericamente toda situação que coloque em cena duas entidades antagônicas – dois indivíduos, mas também dois países em guerra ou dois desejos no seio de uma mesma consciência” (SARRAZAC, 2012, p.54). É o que acontece em As aves da noite: a peça se desenvolve em torno das dúvidas e dos diálogos entre o Padre Maximilian, o Poeta, o Carcereiro, o Estudante, o Joalheiro, a Mulher, e em menor frequência, com o SS e Hans (ajudante do SS); estes dois últimos são os personagens que representam a esfera do poder, da tortura, da repressão vivida pelos personagens, não se encaixando nestes diálogos que movem a narrativa numa espécie de círculo de lamentos e indagações, em que já se sabe qual o ponto final: a morte.

Mulher (como uma confissão): Padre, eu quero dizer que... quando eu limpo aqueles corpos, eu sinto no fundo... (com espanto de si mesma) eu sinto tanta alegria de não estar ali daquele jeito, o senhor entende? Eu consigo sentir tanta alegria... é quase igual...quando eu era criança, a visita para os mortos era um passeio lindo para mim, lindo. Eu nunca ficava triste quando visitava os mortos, eu me dizia: eles não sentem mais nada, e eu estou aqui respirando e dentro de mim havia um frescor, eu respirava várias vezes, sempre repetindo: eu estou viva, eu estou viva. ... e tudo em volta de mim era vida... apesar dos mortos. Eu olhava para o céu e de vez em quando passava um bando de passarinhos e eu me lembro que um dia... quando eu era pequena... eu fiquei tão contente de estar ali, perto dos mortos, mas viva, fiquei tão contente de estar viva, eu era tão pequena... (HILST, 2008, p.280).

Nesta passagem, a fala da Mulher chama a atenção do público muito mais para uma confissão pessoal do que para um possível “andamento” da história, o que provoca uma tensão no eixo da comunicação intraficcional, pois ao mesmo tempo em que está endereçada ao padre, permite uma abertura para jogar com o eixo extraficcional, se pensarmos esta fala como uma possibilidade de “troca” com o público (no âmbito da representação). Assim, a comunicação extraficcional se dá em As aves da noite de modo diferenciado de Auto da barca de Camiri, por exemplo, em que há um jogo claro estabelecido pela autora entre estes eixos no decorrer do enredo.

A ideia do enredo como um círculo, apontada anteriormente, em que o conflito interno é predominante ao conflito externo, é muito semelhante ao que ocorre em O rato no muro. Em um convento, nove freiras denominadas Irmãs, identificadas por letras que vão de A a I se redimem dos seus pecados diariamente através de orações e castigos, além de confessá-los para a figura dominante da Irmã Superiora. Na capela, com a ausência da Superiora, essas Irmãs mantêm diálogos incessantes sobre seus pecados e memórias, além do desejo de saber quem são os seres misteriosos que tocam o muro que para elas é intransponível, ou como fazer para enxergar além do muro, além daquilo que se é permitido ver. São estes conflitos internos que formam a ação e o movimento do enredo, ao mesmo tempo em que se há um conflito externo, este pode ser identificado na figura da Irmã Superiora e do próprio muro que desperta o desejo das freiras de transcendê-lo:

Aparecem a Superiora e a Irmã B, destacadas junto a cerca. Superiora: Afaste-se daí.

Irmã B: Vim ver os girassóis.