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A dramaturgia de Hilda Hilst tem uma ligação estreita com a linguagem simbolista, em virtude da utilização constante de símbolos que remetem principalmente ao universo religioso, presentes tanto na descrição de cenário quanto na caracterização dos personagens (aspectos que veremos detalhadamente no terceiro capítulo, ao tratar da alegorização, do símbolo e das qualidades políticas dos textos teatrais); e também em função da aproximação temática de suas peças com o que norteou o movimento simbolista. Podemos dizer, observando a trajetória literária da escritora, que todo o seu percurso em poesia, e mais tarde em prosa, possui raízes desta mesma linguagem.

O movimento simbolista, cujo princípio é anunciado nos poemas e pensamentos de Stéphane Mallarmé (1842-1898) foi uma linguagem trabalhada pelos poetas no século XIX que repercutiu nas artes como um todo. Segundo Balakian, “nas histórias do movimento simbolista, não se deu muita atenção ao teatro que se originou dele” (1985, p.97), e algumas hipóteses que justificam esta causa é a falta de ação na narrativa, falta de conflito e a predominância da palavra poética: aspectos que podem ser facilmente identificados nos textos teatrais de Hilda Hilst.

No teatro, Maurice Maeterlinck (1862-1949) concretizou o movimento simbolista em cena. A sua afirmativa de que “a peça de teatro deve ser antes de tudo um poema” (MAETERLINCK apud LEHMANN, 2007, p.94) traduz uma vertente lírica e bastante profunda no que diz respeito aos sentimentos e às reflexões humanas. O que interessa para o poeta simbolista é a expressão da poesia na obra, antes de qualquer tipo de ação, de narrativa, ou de conflito que conduza o enredo.

Inquisidor: Levante-se.

América (calma): Eu vou morrer, senhor?

Inquisidor: Ofereça-nos uma grande vantagem para que isso não aconteça.

América (lentamente): Ofereço-vos minha mão aberta. Queimada de uma luz tão viva como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível a mão que se queimou de coisas limpas. E se souberdes o que em vós é justiça, podereis refazê-la à imagem de vossa mão. E depois igualada, aproveitá-la a cada hora. A cada hora e...

Inquisidor (interrompe, com alguma insegurança): Aproveitá-la... será mesmo uma boa idéia?

Bispo: Pois eu não sugeri, senhor Inquisidor?

Inquisidor (desanimado): Mas de que forma aproveitá-la, de que forma? Com as asas que tem (HILST, 2008, p.87-88).

Nesta passagem de A empresa (A possessa)24, a utilização do poema dito pela personagem central da narrativa, América, é bastante evidente; é um recurso retomado pela autora em outros momentos da peça. Inclusive encontramos um longo trecho de um poema escrito por Hilda Hilst antes da escrita da peça e que compõe a estrutura da mesma:

América (sem ouvir o Inquisidor): Pai, tocaram-te nas tardes brandamente, assim como tocaste, adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos a pequena raiz, a fibra delicada que a si se construía em solidão?

Inquisidor: Não. Ele não tinha mais nada nas mãos.

América (tom anterior): Assim somos tocados sempre. Pai, este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto, te empobrecem de afeto. E no gesto te consomem.

Inquisidor (hostil): Você mesma é que se consome.

América (voz mais alta, mais comovida): Pai, este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as vestes, um suor invisível toma corpo e, na morte, nosso corpo de medo é que floresce. Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados, uns espaços de luz rompem a treva. (abaixa a cabeça como se soubesse a inutilidade de todas as confissões) (HILST, 2008, p.72-73).

Toda a fala de América nesta passagem é composta por trechos do poema Odes Maiores ao pai, escrito entre os anos 1963 e 1966, com pequenas modificações. A presença da poesia na dramaturgia de Hilda Hilst é constante, como no teatro simbolista de Materlinck.

A autora realiza, através deste recurso, uma quebra na comunicação do texto ao colocar o poema dito por América como uma voz interior da mesma, que não se refere diretamente ao Inquisidor, deixando aberto para ser interpretado como uma confissão de América ao público, ou como um desabafo.

Szondi, referindo-se às primeiras peças de teatro de Maeterlinck, afirma que estas “procuram representar dramaticamente o homem em sua impotência existencial, em seu estado de entrega a um destino imperscrutável” (2001, p.70), característica que é evidenciada na proposta de Hilda Hilst enquanto poeta e dramaturga, reforçando a aproximação temática entre ambos os poetas.

[O simbolismo] visava a predominância do discurso poético no palco. No entanto, não era mais o texto para os papéis que se considerava como a essência do texto teatral – como ocorria no teatro dramático -, e sim o texto como poesia, que por sua vez deveria corresponder à própria ‘poesia’ do teatro (LEHMANN, 2007, p.97).

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Escrita no ano de 1967, A empresa, também chamada de A possessa, foi a primeira peça de teatro escrita por Hilda Hiltst; à leitura de Rosenfeld sobre o texto, América é uma adolescente que “se revolta contra o mundo tradicional simbolizado pelo colégio de uma ordem religiosa. É bem característica a introdução nessa peça (...) de pequenos robôs eletrônicos. Embora aparentemente usados para outros fins, exercem a função de uma espécie de termômetros psíquicos. Medem as oscilações mentais das alunas (...) a fim de que os dirigentes do colégio, avessos à ‘transcendência’, possam aplacar o inconformismo anárquico do ‘coração ardente’ e do impulso juvenil, amoroso, humano”(ROSENFELD, 1968, 25 jan). Não consta nos arquivos pesquisados nenhuma montagem de A empresa (A Possessa).

Na dramaturgia de Hilda Hilst, a ação, os conflitos e os personagens nem sempre são o motor da narrativa: isto ocorre através da própria poesia presente no texto, colocada nas vozes dos personagens, algumas vezes na forma de diálogo, outras vezes em forma de poema ou de música no próprio corpo do texto. Como exemplo, podemos ver essa canção de Auto da Barca de Camiri:

Letra da terceira música (para ser cantada de início pelo Trapezista e em seguida pelo povo): Um arco íris pro homem lá no alto

Arco irisado feito um pedaço Do meu corpo alado. Sobe no meu dorso E vê se faz esforço Pra chegar ao alto. Ai, eu quero subir E abrir minha asa E te dar meu canto Que não é cantado Com palavras. É um canto de dentro. Que o que tem de alegria

Não tem de lamento (HILST, 2008, p.195).

O lirismo que é característico do teatro simbolista é parte fundamental dos escritos teatrais de Hilda Hilst, oriunda provavelmente do fato de a dramaturga ser, em primeiro lugar, um poeta; além da opção estilística e das influências de outros autores em sua criação.

Com relação ao temário em Maeterlinck:

é a morte que representa para ele o destino do homem; e isso sem qualquer personagem especial, sem qualquer vínculo trágico com a vida. Nenhum ato a provoca, ninguém tem de responder por ela. De uma perspectiva dramatúrgica, isso significa a substituição da categoria de ação pela de situação (SZONDI, 2001, p.70).

A morte é também um dos temas mais recorrentes no teatro de Hilda Hilst. Convém relembrar que é esta também que motiva grande parte da sua produção em poesia e em prosa, como visto no capítulo I, sobre sua trajetória poética, sempre atentando para o fato de que é trabalhado de modo diferente em cada gênero. O enredo de As aves da noite, por exemplo, envolve cinco homens à espera da morte, dentro da cela da fome, em Auschwitz (campo de concentração nazista, no contexto da Alemanha-Nazista 1933-1945). A peça é baseada no acontecimento verídico do Padre Maximilian Kolbe ter assumido o lugar de um outro prisioneiro na cela, e o que poderia ter acontecido – e principalmente o que poderia ter sido

dito – lá dentro. A maior parte da narrativa se desenvolve através de diálogos em torno de questões sobre a vida fora da cela, o corpo, Deus, a morte e as memórias de cada personagem:

Poeta (lentamente): O corpo é uma esplêndida organização.

Maximilian (brando, mas com firmeza): O corpo é o envoltório daquilo que está mais fundo, por isso...

Carcereiro (interrompe irritado): O que é mais fundo, Maximilian? Maximilian: A al... (pretendia dizer a alma, mas corrige-se) a tua vontade.

Poeta (para o estudante, febril): Então a tua amiga estava certa? Ela não disse que o corpo parece uma coisa independente da nossa vontade? E se o corpo é só um envoltório da vontade... o corpo não é nada, hein? (voz alta) Maximilian, eu não quero mais esse meu corpo, eu não quero mais! Faz alguma coisa para que ele se acabe depressa, faz alguma coisa pra que eu não saiba dele mais, maldito corpo. (soluça)

Maximilian (comovido): Ele se acabará, meu amigo, logo, logo... se fosse possível não pensar tanto nele agora... não pensar tanto (HILST, 2008, p.255-256).

Esta substituição da categoria de ação pela de situação, comentada acima por Szondi, é o que resulta na leitura generalizada de uma falta de conflito e de ação da obra simbolista e da obra teatral de Hilda Hilst. Em As aves da noite os personagens encontram-se à beira da morte, diante de uma situação imutável: a narrativa gira em torno da situação do aprisionamento, do cotidiano estático, da espera incessante, que não se esgota, e que não parece chegar ao fim.

À sua produção teatral, Maeterlinck denominou drama estático, justamente em virtude da inação presente nas obras, que está intimamente ligado a uma linguagem lírica e subjetiva, demonstrando uma “virada para o interior” em termos de teatro. Renata Pallottini, no posfácio que encerra o livro Teatro Completo de Hilda Hilst, coloca que

o lírico no drama é, muitas vezes, a voz da impotência humana. Outras vezes é a expressão de uma profunda perplexidade diante de um deus absurdo, ou do Absurdo simplesmente como tal, ou de uma das constantes do Absurdo, a incomunicação. Expressão, talvez, da impossibilidade do amor, da impossibilidade do entendimento, da impossibilidade, finalmente, da ação. O uso da linguagem de inação corresponde, claramente, à certeza de que a ação humana é impossível, ou inútil, ou redundante e improdutiva (PALLOTTINI, 2008, p.475).

Este lirismo presente na linguagem de Hilda Hilst, juntamente com a subjetividade25 e o teor metafísico empregado nos enredos, característicos do teatro simbolista, não só sinaliza

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Quando falo da subjetividade na obra de Hilda Hilst, refiro-me a “qualidade do que é subjetivo, indicando uma relação essencial ao sujeito. Daí a sua contraposição à objetividade. Trata-se da propriedade constitutiva do fenômeno psíquico do sujeito autoconsciente e pensante, que só pode ser experimentado por ele. Caracteriza pois a interioridade da pessoa, o seu caráter de individualidade irredutível a qualquer conceito geral.Por isso se usa

novamente para uma ruptura com o teatro dramático tradicional como vai além: nos mostra a dimensão da escrita teatral de Hilda Hilst que pode ter sido uma das chaves para o seu teatro ter sido considerado difícil e demasiadamente poético. Alguns apontamentos (irônicos) de Balakian sobre os possíveis defeitos do teatro simbolista, do ponto de vista do teatro convencional, ajudam a esclarecer os aspectos que dificultam a compreensão de um teatro essencialmente lírico (o simbolista) como o de Hilda Hilst:

existe um certo anulamento do ator exigido pelo dramaturgo-poeta, que está em todas as suas personagens e está procurando um médium em vez de um intérprete, alguém para comunicar apenas suas palavras [...] Aqui está, pois, o ‘primeiro defeito’ do teatro simbolista: nenhuma caracterização e nenhuma oportunidade de interpretação. O segundo defeito ou falha do ponto de vista do teatro convencional era a falta de crise ou conflito [...]. O terceiro defeito [...] foi que este tipo de teatro não continha nenhuma mensagem ideológica, numa época em que o teatro se tornara uma tribuna para a discussão de questões morais. [...] [As peças simbolistas] avaliadas como “teatro”, falham em todos os pontos; e até hoje permanecem [...] propriedade do mesmo reduzido público leitor que gosta de poesia. Porque, na verdade, seu significado verdadeiro se evidencia apenas como um ramo ou parte da poesia, que por sua vez se tornou em nossa época um ramo da metafísica e da filosofia (BALAKIAN, 1985, p.99-100).

Estes “defeitos” que Balakian esmiúça no decorrer do seu livro sobre o simbolismo, mais precisamente no capítulo que trata do teatro simbolista, são os aspectos principais desta produção artística, que dialogam diretamente com a concepção dramatúrgica de Hilda Hilst: os personagens muitas vezes assumem posturas e discursos que, após um estudo biográfico, podemos relacionar às reflexões pessoais da própria escritora; a já comentada falta de crise ou conflito, situada em um patamar diferenciado daquele que predomina no teatro dramático convencional, o interior; e a ausência de uma mensagem ideológica, visto que não exprime claramente uma ideologia moral ou política; este último aspecto pode ser questionado em Hilda Hilst, pois muito embora ela não queira ser panfletária, ela deixa pistas claras do seu posicionamento frente a questões éticas e sociais, o que podemos identificar como um certo didatismo presente na construção dos seus personagens.

Outra linguagem que podemos compreender como força formadora da obra teatral de Hilda Hilst, é o teatro do absurdo, do qual falaremos a seguir.

também numa acepção concreta para indicar o campo das realidades subjetivas”(MORAIS apud MIRANDA, 2005, p.32).