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Podemos considerar neste primeiro momento, que a produção em teatro da escritora é dramática, partindo da definição presente no “Dicionário de Teatro” por Pavis: “O dramático é um princípio de construção do texto dramático e da representação teatral que dá conta da tensão* das cenas e dos episódios da fábula rumo a um desenlace” (2005, p.110). Embora esta questão do desenlace seja questionável em algumas peças da autora, fica evidente (durante a leitura de seus textos) a linearidade temporal com que elabora suas peças. Hilda Hilst parte de um ponto específico e desenvolve a narrativa através de cenas definidas numa sequência lógica e conduzidas por personagens em um tempo e espaço construídos (ou reconstruídos) pela autora.

O teatro dramático se tornou “a forma canônica do teatro ocidental, desde a célebre definição de tragédia pela Poética de Aristóteles: (...), imitação que é feita pelas personagens em ação” (PAVIS, 2005, p.110). Contudo, a partir de Denis Diderot (1713-1784) é que um novo gênero – o “gênero sério”, o drama burguês do século XVIII é impulsionado; neste, o critério da verossimilhança é estabelecido, no qual impera a ideia de que o teatro fornece uma imagem de uma vida reconhecida pela consciência cotidiana do espectador. Nas teorizações do drama burguês por Diderot, “a pantomima é colocada a serviço da reprodução da diversidade empírica, ela é um meio artístico do realismo” (SZONDI, 2004, p.107); as peças procuram mostrar a realidade das famílias burguesas daquele século, de modo a gerar a identificação do público com o tableau (o quadro cênico) representado. Estas conceituações tornaram Diderot o “pioneiro do realismo teatral” (SZONDI, 2004, p.114); é, pois, a este drama burguês, uma “forma histórica criada por e para a burguesia” (COSTA, 1998, p.59), da mimese representativa ilusionista e realista, ao qual nos referimos aqui como teatro dramático tradicional. A forma canônica deste drama16, que inclui a estrutura de fábula pautada em conflito e desenlace ficcional, é encontrada de modo bastante claro na peça O visitante17, por

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“O drama [burguês] é a forma teatral que tem por objeto a configuração de relações intersubjetivas através do diálogo. O produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática e esta pressupõe uma liberdade individual (o nome filosófico da livre iniciativa), os vínculos que os indivíduos têm ou estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade de decisão de cada um. Através do diálogo, as relações vão se criando e entrelaçando de modo a produzir uma espécie de tecido, por isso mesmo chamado enredo ou entrecho, devendo ter claramente começo, meio e fim, com direito a nó dramático, nó cego, desenlace, etc” (COSTA, 1998, p.56).

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A peça O visitante foi escrita em 1968, e apresentada no mesmo ano em São Paulo sob direção de Terezinha Aguiar, no âmbito estudantil da Escola De Arte Dramática. Após outras apresentações universitárias, foi realizada em 1978 uma montagem do texto para a televisão. Um dos atores, Rofran Fernandes, fala sobre este acontecimento: “O visitante em suas apresentações resultou tão bem, que a TV Cultura resolveu inserir a peça de Hilda Hilst na nova fase do Teatro 2, com o mesmo elenco e direção. Agora Hilda Hilst vai ter seu texto na TV,

exemplo, única peça de Hilda Hilst que tem como centro um drama familiar, envolvendo a Ana (mãe), a Maria (filha), o Homem (marido da Filha) e o Corcunda. Nesta peça, as duas personagens mulheres enfrentam, desde o princípio, diálogos de tensão e repulsa em uma relação conflituosa que também envolve o Homem; Maria suspeita da gravidez da mãe ter sido consumada com o seu próprio marido. A figura do Corcunda, também chamado Meia- Verdade, representa o visitante que chega à casa da família e entra em cena como aquele que soluciona o problema posto até então: Maria deduz ser ele mesmo o pai do filho de Ana. Mas um olhar no final da peça entre Ana e o Homem sugerem que as coisas ainda não foram resolvidas. Neste caso, o desenlace do conflito principal ocorre e podemos perceber a curva dramática bem definida.

Há peças, entretanto, que o desenlace não é aquele que aponta para uma resolução do conflito, como é comum no teatro dramático. Isto porque o próprio conflito é colocado em questão; as situações são expostas e desenvolvidas de tal modo que não há uma revelação a ser feita ao fim da peça ou uma conclusão resultando em um desfecho. É o caso da peça A morte do patriarca1 8, por exemplo: a narrativa é constituída basicamente por diálogos, discussões e perguntas acerca do universo religioso, sustentadas por um clima constante de tensão através de barulhos de metralhadoras indicados nas didascálias.

Demônio: Falava... o rosto abrasado... as mãos fechadas... (Estende os braços para o alto, com violência. Voz possante) “Eu não quero! Eu sou igual a qualquer outro homem, eu amo a vida! Não quero!”

Papa (muito contrariado): Cale-se!

Silêncio constrangedor. O Demônio acaricia lentamente a estátua de Jesus. Comovido.

Demônio: Era carpinteiro.

Papa: Todo mundo sabe disso. (pausa) Demônio: Fazia cruzes com perfeição. Cardeal (perplexo): Fazia cruzes? Para quê?

Monsenhor: Ele não fazia cruz alguma. Fazia objetos. Papa: Delicados. Delicados. (pausa)

Demônio (sorrindo): É verdade. Ele esculpia na madeira uns pequenos cordeiros tão perfeitos que à noite os lobos carregavam. E José O repreendia assim... sorrindo: “Meu filho, pare de enganar os lobos” (HILST, 2008, p.454-455).

com um texto que o crítico Rosenfeld considerava uma ‘pequena obra prima, completamente genial e sem nenhum paralelo na literatura dramática brasileira’” (É DIFÍCIL,1978, 18 maio). Nos arquivos pessoais de Hilda Hilst pesquisados no CEDAE (UNICAMP), encontrei um arquivo não datado identificado como rascunhos da proposta poética de Hilda Hilst para a peça O visitante (ANEXO J).

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A morte do patriarca foi a última peça escrita por Hilda Hilst, datada de 1969. A primeira montagem ocorreu em 1991, com o grupo Oficina de Estudos Teatrais, sob direção de Adolfo Mazzarini (ANEXO K). Sobre esta encenação: “O tema é a decadência. Hilda faz elegia do dionisíaco em vitória contra o apolíneo: o demônio triunfará, inaugurando um novo tempo. O tom é de tragicomédia. Com uma narrativa em dois planos de ação, o espaço cênico extrapola o palco e ocupa também o espaço entre ele e a platéia” (SILVEIRA, 1991, 8 jul).

O sarcasmo predomina em A morte do patriarca, evidenciado nas falas do Demônio, que inclusive é descrito pela autora como “de aspecto muito agradável” (HILST, 2008, p.433), em uma narrativa que põe em jogo (aliás, o próprio cenário é indicado como a representação de um tabuleiro de xadrez) as crenças e os dogmas que predominam na civilização ocidental.

Ao considerarmos a concepção de teatro dramático por Lehmann, (vislumbrando o “drama como um modelo”) encontramos também estruturas e aspectos que dialogam com a dramaturgia de Hilda Hilst:

o teatro é pensado tacitamente como teatro do drama. Incluem-se entre seus fatores teóricos conscientes as categorias “imitação” e “ação”, assim como a concomitância quase que automática das duas categorias. Pode-se destacar como tema inconsciente, associado à compreensão teatral clássica, a tentativa de formar ou fortalecer por meio do teatro um contexto social, uma comunidade que una emocional e mentalmente o público e o palco (LEHMANN, 2007, p.25).

Esta tentativa de formação ou fortalecimento por meio do teatro, com um caráter até mesmo didático, pode ser vista como um dos pontos chaves dos textos teatrais da autora. Alguns de seus personagens tendem a educar para um posicionamento face às questões humanas e existenciais, deixando claro “de que lado” está cada personagem; qual o seu pensamento e a sua posição naquele mundo (fictício). Há uma pretensão de modificação do ser humano através do seu teatro, uma entre outras características que norteia as teorias sobre o drama clássico que origina a forma dramática:

a semântica fundamental da forma do drama também pode ser evidenciada nos seguintes aspectos: personificação de personagens ou figuras alegóricas por atores; representação de um conflito em “colisão dramática”; maior abstração na representação do mundo em comparação com o romance e a epopeia; articulação de conteúdos políticos, morais e religiosos da vida social por meio da dramatização da sua colisão; representação de um mundo ainda que mediante uma ação real mínima (LEHMANN, 2007, p.79).

Não são todos estes aspectos que encontramos na dramaturgia de Hilda Hilst, mas diante desta citação, podemos afirmar que o seu teatro é essencialmente baseado no drama tradicional. O modelo do drama, como uma fábula a ser contada por meio de interações e de personagens, permanece praticamente intacto na dramaturgia da autora. O que há, são pequenas interferências que podem ser lidas como possíveis quebras do dramático, sem que se afaste totalmente deste. São, pois, estas interferências que nos permitem chamar alguns momentos da escrita de Hilda Hilst como não dramáticos: quando há um rompimento claro

com a estrutura tradicional do drama, quando não acontece o desenlace na fábula ou quando aparecem personagens que se afastam do personagem figurativo do ilusionismo realista, pontos que serão aprofundados na análise específica das peças da escritora.

De acordo com Vincenzo, “do ponto de vista da estrutura dramática propriamente dita, porém, não há dúvida de que algumas peças são, digamos, mais consistentes que outras” (1992, p.37). A consistência a que se refere Vincenzo pode ser lida como a pertinência e “obediência” aos padrões do dramático. O novo sistema1 9, por exemplo, possui um grau de relação com a forma do drama maior do que A morte do patriarca, se observarmos que a primeira é construída por sucessivos desencadeamentos de ações, diferente da segunda, elaborada em um plano mais abstrato neste sentido.

A escrita de Hilda Hilst apresenta uma particularidade que considero essencial para o estudo de suas obras teatrais, na forma com que trabalha o conflito: ele está presente, mas o que prevalece é um conflito muito mais interno, que envolve pensamentos, sensações e desejos dos personagens, do que um conflito externo. Deste modo, o que vemos aqui é um jogo de aproximação e distanciamento da dramaturgia de Hilda Hilst com a forma dramática: ao mesmo tempo em que mantém a estrutura, sinaliza uma ruptura com a forma tradicional, como o fez o teatro épico.

Mas então por que não falar de um teatro épico de Hilda Hilst?

Em primeiro lugar, o teatro épico pressupõe uma quebra da ilusão em oposição ao modelo dramático que não é recorrente nos textos teatrais de Hilda Hilst; a imersão do leitor no plano da ficção é praticamente constante. Em segundo lugar, a intenção do teatro épico preconizado por Bertolt Brecht (1898-1956) é uma análise social que parte do princípio de um público ativo, argumentativo e reflexivo.20 Não que isto não possa ocorrer nas peças de Hilda Hilst, o leitor também é incitado a refletir sobre a sua realidade, mas não é estimulado à ação direta como no teatro épico. O que podemos verificar, na dramaturgia de Hilda Hilst, é uma relação com o que Wirth (1984) chama de “brechtianismo sem Brecht”, em que o “impacto

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Segundo Rosenfeld, O novo sistema, uma peça “de forte cunho didático, se propõe como advertência: O Novo Sistema racionalista é o resultado da miséria e das contradições do Velho Sistema irracional que não teria oferecido outra saída” (ROSENFELD, 1969, 25 jan). Nos arquivos pessoais de Hilda Hilst pesquisados no CEDAE (UNICAMP), encontrei um arquivo não datado identificado como pensamentos da autora sobre a nova peça (ANEXO L). Escrita no ano de 1968, a peça foi montada no mesmo ano sob direção de Terezinha Aguiar pelo Teatro Rotunda, grupo de Campinas – SP.

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“Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto” (BRECHT, 2005, p.142).

formal” da obra de Brecht sobre outras obras pós brechtianas tomou uma proporção até mesmo mais “radical do que nas próprias peças de Brecht” (WIRTH, 1984, p.8). O didatismo presente na obra de Hilda Hilst, sua relação com o político, a forma dramática como uma mensagem para o público, bem como as quebras dialógicas, são elementos que abrem o dramático para outras formas literárias e teatrais e que, em sua maioria, fortalecem os eixos intraficcional e extraficcional; porém com abordagens e intenções políticas que, por vezes, divergem das propostas por Brecht.

Ao tratar sobre a questão da epicização colocada por Szondi (em Teoria do drama moderno, 2001), em que o épico é visto como uma “espécie de chave mestra” para o novo teatro, Lehmann afirma:

o processo de decomposição do drama no campo do texto, que é delineado por Szondi, corresponde ao desenvolvimento em direção a um teatro que não mais se baseia de modo algum no “drama”, seja ele (nas caracterizações da teoria do drama) aberto ou fechado, de tipo piramidal ou como um carrossel, épico ou lírico, mais centrado no caráter ou na ação. Há teatro sem drama. A questão que se põe com o novo desenvolvimento do teatro é saber de que modo e com que consequências a ideia do teatro como representação de um cosmos fictício foi efetivamente rompida ou mesmo abandonada – um cosmos cujo encerramento foi assegurado pelo drama e pela estética teatral a ele correspondente (LEHMANN, 2007, p.47).

Analisando a dramaturgia de Hilda Hilst, percebemos que ele se afasta daquilo que seria este novo drama apontado na citação acima, pois além de estar fundamentalmente enraizada no drama (como apontado anteriormente), mantém o “cosmos fictício” assegurado em grande parte dos textos. Embora algumas peças sejam escritas a partir de temas e fatos históricos reais (como é o caso de As aves da noite21 e Auto da Barca de Camiri2 2), ou mesclando histórias e situações vividas pela própria autora (por exemplo, o colégio religioso

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As aves da noite, datada de 1968, estreou nos palcos no ano de 1980, no Teatro Ruth Escobar em São Paulo, idealizada e dirigida por Antonio do Valle, formado em direção na Escola de Arte Dramática de São Paulo: “O diretor explica que o espetáculo mostra o homem diante da morte, sem saída, e que, em situações dessa natureza, quando suas necessidades básicas não são preenchidas, ‘resta o coração, resta rasgar o peito e mostrar os sentimentos’” (HILDA, 1980, 13 nov). Nos arquivos pessoais de Hilda Hilst pesquisados no CEDAE (UNICAMP), encontrei um arquivo não datado que se reconhece como uma carta destinada à Anatol Rosenfeld da própria autora, sobre As aves da noite (ANEXO M).

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A peça Auto da Barca de Camiri foi escrita também em 1968, e teve sua primeira montagem registrada em 1987, sob direção de Tom Santos, com o grupo Teatro Aplicado, em São Paulo, recebendo críticas negativas à montagem (ANEXO N). Sobre esta apresentação, um crítico escreveu que “o Aplicado merecia mais. (...) Não pelo texto de Hilda Hilst. A maneira de seus trabalhos anteriores como O Verdugo, o Rato no Muro e Aves da Noite, a nova peça dessa poeta (...) é um denso discurso metafórico sobre a rebeldia e a liberdade. Não interessam a Hilda Hilst os fatos históricos, mas a possível leitura transfiguradora com que a obra de arte ilumina a realidade (...). A direção de Santos usa clichês de maneirismos dos anos 60, ressuscitados sem brilho. (...) Hilda Hilst merecia mais ousadia” (GUSIK, 1987, 17 dez).

de O rato no muro2 3), os textos estão totalmente imersos no plano da ficção, por meio das relações estabelecidas entre os próprios personagens, e entre estes com a narrativa.

A questão do ficcional é um dos fatores fundamentais para a compreensão do porque a dramaturgia de Hilda Hilst está mais ligada a uma expressão do não dramático do que ao épico: “o teatro épico não mais poderia ser considerado um salto, porque nele os deslocamentos da dinâmica interpessoal – por meio de coros, apartes, narrativas, etc – não chegariam a subverter a vivência ficcional” (LEHMANN, 2007, p.10). Ou seja: no teatro não dramático, coloca-se em questão a quebra da ilusão por meio do épico, pois ainda faz prevalecer a comunicação intraficcional sobre a comunicação extraficcional; ou ainda: “fica cada vez mais claro que na teoria do teatro épico havia uma renovação e um aperfeiçoamento da dramaturgia clássica” (LEHMANN, 2007, p.51).

A irrupção de momentos narrativos, ou épicos, no gênero dramático é imemorial e tem sido constante (...). Mas não são somente os momentos épicos os responsáveis pela impureza do gênero dramático. O lírico, enquanto voz do íntimo, do subjetivo, da emoção e do irracional, enquanto fala do eu do poeta, também toma sua parte nessa penetração, quando o dramático ideal do teatro cede espaço às vozes do não- lógico, da sugestão e do sentimento (PALLOTTINI, 2008, p.494).

E é justamente o lírico e o subjetivo enquanto irrupção no dramático, que abordarei a partir de agora.

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A primeira encenação que se tem registro de O rato no muro é no ano de 1968, um ano após a sua escrita, pela Escola de Arte Dramática de São Paulo, novamente sob a direção de Terezinha Aguiar (mesmo ano da apresentação de O visitante). Esta peça foi levada para a rua no ano de 1969 com este mesmo grupo, no II Festival Latinoamericano de Teatro Universitário de Manizales, na Colômbia. Sobre esta experiência, a diretora comenta: “foi um dia inesquecível, tamanho o furor que fizemos. (...) Saímos pelas ruas, como numa procissão com trajes próprios e maquiados, deixando atônita a gente colombiana. Depois, a apresentação nas escadarias de Manizales. E ao final muitos aplausos” (EAD, 1969, 20 out). Nos arquivos pessoais de Hilda Hilst pesquisados no CEDAE (UNICAMP), encontrei um arquivo não datado escrito pela própria autora sobre sua peça (ANEXO O).