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4 – Performance linguística: traços do performativo, do não dramático

Sendo o campo da performance uma área bastante abrangente, e diante da popularidade que este termo alcançou dentro das pesquisas e escritos teatrais recentes, trato aqui da dramaturgia de Hilda Hilst a partir da ideia de performance linguística, detalhada por Carlson em sua obra Performance: uma introdução crítica (2010); dialogando com o estudo de Rodrigues intitulado O teatro performático de Hilda Hilst (2010). O intuito é perceber possíveis imbricações entre os textos teatrais de Hilda Hilst, apontando para o performativo no campo textual, para ampliar os horizontes de análise da dramaturgia da autora.

Mas o que seria um texto teatral performativo?

Para tentar responder tal questão, partirei da concepção de que não há uma resposta única e definitiva para a pergunta colocada acima, até porque “a performance, por sua própria natureza, resiste a conclusões assim como resiste a definições, fronteiras e limites tão úteis à escrita acadêmica tradicional e às estruturas acadêmicas” (CARLSON, 2010, p.213). O que existem são especulações e visões que pretendem compreender os cruzamentos entre a performance e a literatura.

A performance emergiu primeiramente como um termo importante na teoria linguística nos escritos de Noam Chomsky, que, em seu Aspects of Theory of Sintax [Aspectos da Teoria da Sintaxe] (1965), distinguiu entre “competência”, conhecimento gramatical geral e ideal da linguagem que todo falante tem, e “performance”, aplicação específica desse conhecimento em situação de fala. De fato, essa distinção reflete a divisão, no início do estudo moderno da linguística, feito por Ferdinand de Saussure, entre la langue, princípios básicos da organização da língua, e la parole, atos de fala específicos (CARLSON, 2010, p.69).

A fusão entre performance e literatura surge então, num primeiro momento como a própria ação do autor no momento da escrita; a maneira com que ele organiza suas estruturas gramaticais, de modo a definir possivelmente o que podemos chamar de estilo pessoal, a partir das suas opções enquanto autor e artista. Podemos observar essa nota inicial dada pela autora, no momento da apresentação dos personagens de O visitante:

Notas: Ana e o marido da filha são figuras imediatamente atraentes.

O corcunda não deve ser tratado ostensivamente como um elemento mágico. Não deve ter tiques, apenas um certo sorriso, um certo olhar e alguns gestos perturbadores.

Ana e Maria estão vestidas exatamente iguais. Homem e corcunda estão vestidos exatamente iguais.

Ana nunca se movimenta rapidamente. É lenta, grave, composta e delicada. Não é uma formiguinha laboriosa, apesar da filha vê-la assim. Maria tem gestos duros. É disciplinada enquanto arruma os pães.

Pequena peça poética que deve ser tratada com delicadeza e paixão. Pausas, cumplicidades nada evidentes, silêncios esticados. Sobretudo é preciso não temer as pausas entre certas falas. São absoltamente necessárias (HILST, 2008, p.145).

Em Hilda Hilst, podemos identificar como alguns aspectos do estilo pessoal o próprio caráter lírico de seus textos, lidos como verdadeiros poemas para a cena; as didáscalias que denotam exatamente aquilo que a autora pensa sobre seus personagens, e como ela vê estes em ação, que podem ser observados na passagem acima; os diálogos que atuam no espaço entre o real e o não real e os espaços para os silêncios constantes em seus textos.

Entretanto, esta fusão de conceitos e teorias entre literatura e performance não permaneceu intacta. Quanto mais esmiuçado o estudo da performance, mais ele ultrapassa no campo literário a visão da performance como ação de escrita, tornando-se uma ação escrita: não somente refere-se ao estudo das estruturas e formas gramaticais, mas também ao estudo da escrita e da fala como agente em si mesma. Voltando à questão sobre o que seria um texto teatral performativo, vejo aqui um dos caminhos possíveis para uma resposta: seria performático um texto que não descrevesse uma ação, mas que ele fosse a ação em si através das palavras, dos jogos com os significantes e os significados, modificando o horizonte de expectativa do espectador para com o texto “dramático”. As falas ganham proporções performativas à medida com que se expõem enquanto falas, não visando a construção de uma ação ficcional, mas enfatizando a própria forma com que as falas são construídas e organizadas.

Nesta escrita performativa, o foco na língua enquanto habitat e ferramenta do discurso, enquanto fenômeno processual e meio de interpelação, faz com que a estrutura do texto teatral tome a língua como seu próprio material. Esta linguagem textual não descreve mais predominantemente personagens, mas o funcionamento produtivo da língua, ou seja, a relação dinâmica entre língua e consciência humana, entre discurso e percepção (BAUMGÄRTEL, 2010, p.114).

Embora na dramaturgia de Hilda Hilst estas proporções performativas da língua sejam “tímidas”, se comparadas às dimensões linguísticas na dramaturgia de Novarina (1947-)29

, por

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Ver mais sobre a dramaturgia de Novarina e suas relações com a performatividade textual em BAUMGÄRTEL, Stephan. O sujeito da língua sujeito à língua: reflexões sobre a dramaturgia performativa contemporânea. In: Revista VIS – Revista do Programa de Pós Graduação em Arte da UnB. Volume 9. N°2. julho/dezembro 2010. Brasília: Programa de Pós Graduação em Arte, 2010; no subtítulo A estética da

exemplo, são interessantes de serem apontadas para o estudo de suas obras, visto que a intenção não é situar sua dramaturgia no performativo como definição, mas perceber possíveis intersecções entre a estrutura dramática que adota em suas peças e as lacunas que podem ser percebidas como traços performativos. O jogo com a linguagem é encontrado principalmente através das metáforas e alegorias presentes na escrita de Hilda Hilst; na brincadeira com as formas do diálogo, que não necessariamente respondem ou interpelam um ao outro, mas que se entrelaçam e se complementam, propondo dimensões à língua que diferem do teatro dramático tradicional, como podemos observar nessa passagem de O rato no muro:

Irmã G: Olhe o rato!

Superiora (para a Irmã H, severa): O rato é você! (tom crescente, procurando tensão) Que deseja subir e ver.

Irmã D: No entanto, no entanto. Superiora: Ainda que tu subisses... Irmã D: Aquela pedra lisa... Superiora: E assistisses...

Irmã D: Ao mais fundo, ao mais alegre. Superiora: O mais triste...

Irmã D: Ainda que tocasses... Superiora: Aquela pedra rara... Irmã D: E deixasses o vestígio... Superiora: De uma mancha... Irmã D: Escura ou clara...

Superiora e Irmã D: Ainda... ainda Superiora: Não seria o suficiente.

Irmã D: Para o teu desejo de ser mais (HILST, 2008, p.140).

Ao mesmo tempo em que mantém uma estutura de drama, com personagens, conflitos, rubricas, há um espaço de significações que não se completam, que estão abertas e que podem ser percebidos como não dramáticos, ou poderíamos dizer, performativos. Isto porque as falas da Irmã D e da Superiora, em si, “performam” no sentido de que criam uma nova dimensão para essas figuras que, neste momento, parecem ser uma só. Elas deixam de ser duas vozes e passam a ser um coro quase musical, ao entoar frases poéticas que seguem uma métrica, um ritmo próprio que modificam o olhar do espectador-leitor para com as figuras e a história. Para compreender melhor estas relações, cabe citar o estudo de Birkenhauer (2007), ao apontar os termos dramático e pós-dramático (este último podemos compreender também como performativo), tanto no plano da encenação como no plano textual: o primeiro enquanto lugar de personagens que falam no contexto das ações ficcionais e o segundo enquanto lugar de discursos polifônicos e de significantes soltos – ambos presentes na dramaturgia de Hilda Hilst.

Anterior à distinção entre o dramático e o pós-dramático, é a discussão existente entre o poético e o dramático. Birkenhauer afirma que, segundo Poschmann (1997), “as teorias mais recentes do drama (...) atestam aos textos teatrais um ‘uso poético da linguagem’, na medida em que esses não se definem pelo representado, mas se referem ao seu próprio acabamento formal e ao processo teatral de representação e da percepção”(2007, p.3)30. A poesia, então, constituiria uma performatividade textual ao criar uma camada meta-textual implícita na construção do texto teatral. Neste caso, a performatividade está na própria forma de escrita utilizada por Hilst, mesclada aos diálogos e situações entre personagens e mundo. É uma característica que pode ser observada na leitura do próprio texto; prescinde à encenação do mesmo para existir. A pluralidade de vozes nas peças de Hilst é uma característica que aparece constantemente, através de personagens que não possuem identidades particulares, ou que representam uma camada social específica, ou mesmo as já citadas figuras simbólicas, o que também pode ser identificado como um traço de caráter performativo:

qualquer fala, quando é estudada em grande profundidade sob condições concretas do discurso, revela nas palavras escondidas ou meio escondidas de outros falantes com vários graus de estrangeiridade. Em consequência, a fala parece estar enfeitada com ecos distantes e dificilmente audíveis nas mudanças de sujeitos da fala e sobretons dialógicos, limites de elocução altamente enfraquecidos que são completamente permeáveis à expressão do autor (BAHKTIN apud CARLSON, 2010, p.71).

Percebo que esta pluralidade não se refere somente a várias vozes que ecoam de um mesmo personagem, mas sim ao fato de tais vozes assumirem relações e sentidos que diferem umas das outras, multiplicando os significados e entoando discursos que algumas vezes se complementam, outras vezes se contrapõem aos outros discursos, ou enveredam para outro caminho abruptamente, como podemos identificar na seguinte passagem de As aves da noite:

Joalheiro (enfraquecido, mas desesperado): Eu estou aqui, não é? Não é verdade? Você me vê, não é?

Maximilian (comovido, começando a sorrir): Eu não só te vejo... sabe, eu... eu sou você. Você me entende? Eu sou você.

Estudante: Eu sou você. Joalheiro: Eu sou você. Mulher: Eu sou você. (pausa)

Estudante: Sabem, havia um rei que tinha três filhos (HILST, 2008, p.290).

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Tradução de Stephan Arnulf Baumgärtel. No original: “In den neuren Dramentheorien wird auch Theatertexten eine poetische Verwendung der Sprache attestiert, insofern sie sich nicht durch das Dargestellte definieren, sondern sich auf ihre eigene sprachliche Verfasstheit und auf den theatralen Representations – und Wahrnehmungsprozess beziehen”.

Nesta passagem há uma quebra da lógica discursiva dos personagens, soando como um eco da voz de Maximilian, e aproximando-se da ideia de coro comentada anteriormente em O rato no muro. A narrativa de As aves da noite se configura de um modo em que há os dois casos no discurso; embora haja o predomínio de uma forma dialógica, é constante a contraposição de vozes, de temáticas e de embates na sua escrita, entre os personagens e entre estes com o universo. Cabe destacar que a fala é também ação: os personagens configuram a narrativa através da ação da própria fala.

Falar no teatro pode ser, em suma, agir de fato, porque pode ser comunicar a outrem uma decisão irrecorrível e produtora de mudanças, mas também pode ter o objetivo de transmitir informação, convencer, pedir, perguntar, responder, argumentar, esclarecer e, até mesmo, esclarecer-se, entre outras funções (PALLOTTINI, 2008, p.498).

Embora Pallottini, na citação acima, não esteja se referindo diretamente a uma dramaturgia ou um evento teatral performativo, noto que esta passagem dialoga com o conceito de “ato da fala” que é comentado na obra de Carlson, sendo a “teoria da linguagem (...) parte de uma teoria da ação” (SEARLE apud CARLSON, 2010, p.75). O ato da fala está intimamente ligado às “intenções do falante, seus efeitos na audiência e a análise do contexto social específico de cada fala” (CARLSON, 2010, p.75). No caso particular das obras teatrais de Hilda Hilst, analisando a proposta poética da autora, percebo que os personagens não só agem através das próprias falas: a ação acontece também na forma com que os enunciados são colocados pela autora, na descrição detalhada do cenário, como por exemplo, essa descrição de O verdugo:

casa modesta, mas decente. Sala pequena. Mesa rústica. Dois bancos compridos junto à mesa. Um velho sofá. Uma velha poltrona. Uma porta de entrada. Outra porta dando para o quarto. Paredes brancas. Dois pequenos lampiões. Aspecto geral muito limpo. Nessa sala não deve haver mais nada, nada que identifique essa família particularmente. Moram numa vila do interior, em algum lugar triste do mundo. Mesa posta. O Verdugo, a mulher, a filha e o filho estão sentados à mesma. A mulher deve estar servindo sopa ao marido. É noite (HILST, 2008, p.367).

O enunciado da autora revela aspectos do cenário que não são somente ilustrativos, funcionam muito mais como provocadores ao espectador, convidam o leitor a entrar na ambientação proposta pela escritora de modo sensível; aqui, o texto já está agindo no leitor, “performando” através das palavras que exprimem aspectos sensitivos deste contexto, com objetos velhos, em um lugar triste, ainda que ela deixe a entender que não é a representação

de uma família em particular. Estes “atos da fala” também podem ser observados em didascálias minuciosas, na caracterização dos personagens e na organização formal dos diálogos, que certas vezes remetem até mesmo a monólogos ou poemas de imenso lirismo, como é o caso dessa fala de América em A empresa (a possessa):

América (grave e comovida): Sendo quem sou, em nada me pareço. Sendo quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter olhos a mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e de duende? (pausa. Escuro total. Voz muito alta e apaixonada) Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso de sangue. Se pudésseis abri-la para cantar meu canto (HILST, 2008, p.89).

Segundo Rodrigues,“o teatro de Hilda Hilst envereda-se por uma tessitura ambígua, onde as interpretações múltiplas possíveis são determinadas na sua própria construção” (2010, p.51), o que resulta em um texto aberto a significações. A atenção nos traços performativos do texto teatral permite identificar como a forma da escrita de Hilda Hilst constrói não só o mundo ficcional, mas o qualifica de modo implícito e não explícito. Compreender de que modo interpretações múltiplas são possíveis, questionar qual o grau e a intensidade desta multiplicidade de forma mais específica, são algumas das etapas para o próximo capítulo desse trabalho.

CAPÍTULO III

O RATO NO MURO, O AUTO DA BARCA DE CAMIRI E AS AVES DA NOITE: DECUPANDO ELEMENTOS DRAMATÚRGICOS

A verdade é que diante da morte a gente nunca está realmente conformada. É por isso que penso que o que me leva a escrever é uma vontade de ultrapassar-me, ir além da mesquinha condição de finitude. Hilda Hilst

Ao ler as peças teatrais escritas por Hilda Hilst entre os anos 1967 e 1969, podemos encontrar diversos pontos de convergência tanto em questões temáticas quanto em questões estruturais, no que diz respeito ao modo de organização e de composição textual. Alguns destes pontos foram vistos no capítulo anterior, quando identificamos diálogos possíveis da dramaturgia de Hilda Hilst com as linguagens teatrais do dramático, do simbolismo, do absurdo e dos diferentes modos de acentuar as dimensões performativas da linguagem, que considerei úteis para uma compreensão mais ampla da obra da autora. Na trajetória poética apresentada no primeiro capítulo, foi possível identificar traços da sua poesia que reverberaram posteriormente no seu teatro, mostrando o percurso anterior e concomitante à escrita dramatúrgica de Hilda Hilst: um percurso que revelou muitos aspectos das opções estilísticas da autora, suas influências e estímulos.

Neste terceiro capítulo procuro fazer uma leitura minuciosa de três peças da autora: O rato no muro, Auto da barca de Camiri e As aves da noite, com a finalidade de imergir nestas dramaturgias para uma análise mais profunda de suas estruturas textuais, partindo do pressuposto de Massaud de que “sempre que um objeto, um conceito, uma equação matemática, uma idéia, um sentimento, um problema, etc., é decomposto em suas partes fundamentais, está-se praticando a análise” (1977, p.13). Para isto, dividi este capítulo em três subcapítulos que tem por objetivo orientar um trajeto para a leitura dos textos teatrais de Hilda Hilst, organizados do seguinte modo: Estrutura textual dramatúrgica, A construção da

figura teatral, Alegorização, símbolo e qualidades políticas dos textos teatrais. Dentro

disto, seguiremos na análise destas três peças com os diálogos iniciados nos capítulos anteriores, sempre relacionando, na medida do possível e quando necessário, com o contexto social histórico em que as peças foram escritas.