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Abuso da personalidade jurídica

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015 (páginas 90-107)

2.3 Responsabilidade limitada

2.3.2 Ataques à responsabilidade limitada

2.3.2.1 Abuso da personalidade jurídica

O Direito não andou pouco para admitir que o exercício de uma atividade, com aplicação de patrimônio especial para um objetivo e destinação específicos e finalidades diversas das daqueles que o formaram, pudesse ser personificado. A personificação da empresa e de seu correlato patrimônio admite o reconhecimento da autonomia jurídica de um ente ideal – a pessoa jurídica – aceitando-a como legítimo sujeito de direito, que detém patrimônio e apresenta interesses específicos, não se confundindo com o patrimônio e o interesse daquele ou daqueles que a constituíram.

Mesmo sem se admitir que há limitação da responsabilidade do indivíduo que destinou parte de seu patrimônio pessoal para o exercício de determinada atividade, a especialização do patrimônio, em si, já determina que seja usado para uma dada finalidade. Essa afetação do patrimônio para cumprir sua finalidade já seria suficiente para coibir qualquer confusão entre os interesses envolvidos.

Mas o Direito foi além e, como ferramenta de fortalecimento do instituto da pessoa jurídica e da autonomia patrimonial, passou a admitir fossem as obrigações contraídas pela pessoa jurídica garantidas exclusivamente pelos bens e direitos de sua propriedade, limitando a responsabilidade daqueles que aplicaram capital pessoal em meios de produção organizados na pessoa jurídica.

Como sempre ocorre quando um instituto revolucionário adentra um sistema, há um tratamento rigoroso de suas premissas. Não foi diferente com a pessoa jurídica. Do seu reconhecimento pelo Direito até meados do século XX era inadmissível a flexibilização da autonomia patrimonial e da responsabilidade limitada. Nesse sentido,

145 E, inclusive, há pouquíssimo tempo, fortaleceu-se a ideia do incentivo ao empreendedorismo por meio da responsabilidade limitada com a introdução das Eirelis, em alternativa ao exercício da empresa como empresário individual, cuja responsabilidade é ilimitada.

não se admitia que, por qualquer razão, avançasse-se no patrimônio dos sócios para saldar dívidas da pessoa jurídica.146

Com o decorrer do tempo e o uso (e abuso) do instituto, passou-se a observar situações em que o formalismo contido no conceito de pessoa jurídica e sua consequente separação patrimonial poderia servir a outras finalidades que não àquelas que o fizeram nascer para o Direito.

Como visto anteriormente, o ordenamento não admite o exercício de um direito de forma absoluta, ilimitada. Igualmente, a forma não pode superar a substância.

A finalidade de instituir personalidade jurídica para o exercício de uma atividade, concedendo autonomia patrimonial a seus bens e direitos, nunca foi a de criar subterfúgios a seus fundadores para se beneficiarem pessoalmente de qualquer situação que não fosse, exclusivamente, aquela decorrente de sua qualidade de sócio: o recebimento de lucros e de eventual acervo em caso de liquidação.

O uso da personalidade jurídica sem respeito à sua funcionalidade faz nascer a crise da pessoa jurídica. Momento em que doutrina e jurisprudência se debruçam sobre mecanismos necessários para, em face de certas situações, permitir seja a personalidade jurídica desconsiderada pontualmente. Trata-se, aqui, de averiguar o uso fraudulento ou abusivo da autonomia patrimonial, i.e., situações em que a pessoa jurídica se presta exclusivamente para permitir a fuga do cumprimento de obrigações e não à alocação de patrimônio para o desenvolvimento de uma atividade específica.

Desde já se note que a teoria da desconsideração nasceu para aprimorar o instituto da pessoa jurídica, e não para o negar, interferindo determinantemente na teoria da pessoa jurídica.147

Rolf Serick foi responsável pela sistematização do que se traduziu internamente como teoria da desconsideração da personalidade jurídica. O doutrinador alemão debruçou-se sobre a jurisprudência norte-americana para descrever em quais situações se admitia descobrir o manto da personalidade jurídica para atingir o

146 ANTUNES, José Engrácia. Estrutura e responsabilidade da empresa: o moderno paradoxo regulatório. Revista Direito GV, v. 1, n. 2, p. 51, jun.-dez. 2005.

patrimônio de seu sócio. A teoria designada como “disregard of legal entity” ou “lifting the corporate veil” elencou os princípios sob os quais o Direito norte-americano aceitava desconsiderar a forma da pessoa jurídica e seus efeitos externos para alcançar os bens daqueles que sob seu véu se protegem.

O trabalho de Serick conclui que a estrutura formal da pessoa jurídica pode ser desconsiderada em dois casos: quando é utilizada abusivamente para fins ilícitos e para vincular determinadas normas à pessoa jurídica. Em ambos os casos “se penetra hasta alcanzar el substrato personal o real que la constituye, ya sea para evitar el abuso, ya se procure la realización del sentido contenido en la norma de cuya aplicación se trata”.148

A sistematização da teoria resultou em quatro proposições, adiante descritas e pormenorizadas.

Si la estructura formal de la persona jurídica se utiliza de manera abusiva, el juez podrá descartarla para que fracase el resultado contrario a Derecho que se persigue, para lo cual prescindirá de la regla fundamental que establece una radical separación entre la sociedad y los socios.

Existe un abuso cuando con ayuda de la persona jurídica se trata de burlar una ley, de quebrantar obligaciones contractuales o de perjudicar fraudulentamente a terceros.

Por tanto, sólo procederá invocar que existe un atentado contra la buena fe, como razón justificativa de que se prescinda de la forma de la persona jurídica, cuando concurren los supuestos del abuso que han sido señalados.149

O abuso de forma da pessoa jurídica, com intuito de burlar a lei, infringir obrigações contratuais ou prejudicar fraudulentamente terceiros, atenta contra a boa fé, levando ao descrédito do instituto, e, por isso, autoriza seja ela desconsiderada. A separação entre a sociedade e seus sócios somente se justifica se esta atua dentro dos propósitos para que foi criada pelo ordenamento. Fora disso, essa separação deixa de fazer sentido. Há três observações importantes que decorrem dessa proposição: (1) para justificar a desconsideração, deve haver a intenção de se esquivar de obrigação (legal ou

148 SERICK, Rolf. Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por medio de la persona jurídica. Trad. de Jose Puig Brutau. Barcelona: Ariel, 1958. p. 241.

contratual) ou prejudicar terceiro; (2) aquele que abusa da forma da pessoa jurídica está em posição de a dominar à vontade, o que na grande maioria dos casos é decorrência do exercício de direito de sócio; e (3) a decisão da desconsideração deve dar-se de maneira que fique frustrada a finalidade ilegítima perseguida com o abuso de forma da pessoa jurídica, portanto, as consequências variam caso a caso.

No basta alegar que si no se descarta la forma de la persona jurídica no podrá lograrse la finalidad de una norma o de un negocio jurídico. Sin embargo, cuando se trate de la eficacia de una regla del Derecho de sociedades de valor tan fundamental que no deba encontrar obstáculos ni de manera indirecta, la regla general formulada en el párrafo anterior debe sufrir una excepción.150

Há, nesta segunda proposição, uma reafirmação da primeira, pois expressa que o simples fato de a finalidade de uma dada norma não poder ser alcançada em função da forma da pessoa jurídica não é suficiente para desconsiderá-la. Sem a verificação da ilicitude (presente no uso abusivo da pessoa jurídica, descrito na primeira proposição) não há fundamento para agredir o princípio da autonomia da pessoa jurídica (reforçando que a teoria condena o mau uso da pessoa jurídica, mas não nega sua validade).

Contudo, Serick apresenta uma exceção a esta regra, dizendo haver uma situação em que, mesmo sem a ocorrência do abuso, pode aplicar-se a desconsideração: sempre que necessária para aplicar norma relevante de Direito Societário. A importância da norma societária é a chave para aplicação da desconsideração neste caso, o que dificulta sua compreensão objetiva. Fábio Ulhoa Coelho, ao analisá-la, conclui ser mais seguro limitar a aplicação dessa possibilidade de desconsideração exclusivamente para quando haja hipótese de expressa previsão normativa.151

Las normas que se fundan en cualidades o capacidades humanas o que consideran valores humanos también deben aplicarse a las personas jurídicas cuando la finalidad de la norma corresponda a la de esta clase de personas. En este caso podrá penetrarse hasta los hombres

150 SERICK, Rolf. Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por medio de la persona jurídica cit., p. 246.

situados detrás de la persona jurídica para comprobar si concurre la hipótesis de que depende la eficacia de la norma.152

O Direito adotou a pessoa jurídica como sujeito de direito com valor equiparável ao indivíduo, de forma que todas as normas aplicáveis ao indivíduo são igualmente aplicáveis à pessoa jurídica. Essa é a regra. Mas, como toda regra, tem exceções – para se configurar como exceção (e permitir a penetração da pessoa jurídica para sua aplicação) requer-se especial fundamentação e análise da norma, buscando compreender a vontade do legislador e a função da norma no ordenamento.

Si la forma de la persona jurídica se utiliza para ocultar que de hecho existe identidad entre las personas que intervienen en un acto determinado, podrá quedar descartada la forma de dicha persona cuando la norma que se deba aplicar presuponga que la identidad o diversidad de los sujetos interesados no es puramente nominal, sino verdaderamente efectiva.153

Para se admitir o levantamento do véu que cobre a pessoa jurídica na forma dessa quarta proposição, deve-se estar diante de uma situação em que o pressuposto de uma dada norma é que determinado negócio jurídico seja realizado por pessoas distintas; mas que, por meio da pessoa jurídica, oculta-se esta diversidade jurídica das partes, de maneira que há uma efetiva unidade de pessoa.

Inegável a contribuição de Serick para o estudo do tema, pois por meio da sistematização apresentada fez com que um instituto até então aplicável no sistema da common law, que permite com maior abertura o desenvolvimento de regras jurídicas por meio da análise concreta dos casos, pudesse adentrar ao sistema da civil law, que pressupõe a existência prévia da teoria sistematizada no ordenamento.154

À visão subjetivista de Serick, opuseram-se diversos autores. Na Alemanha, em contraponto a sua posição regra/exceção (personalidade jurídica como fenômeno unitário, cuja exceção é a desconsideração), nasceu a teoria dos centros de imputação. Calixto Salomão Filho resume-a de maneira didática: para esta teoria, a desconsideração

152 SERICK, Rolf. Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por medio de la persona jurídica cit., p. 251.

153 Idem, ibidem, p. 257.

não lida apenas com casos de fraude, mas deve atender igualmente situações em que se torne conveniente não considerar a existência da personalidade jurídica em razão da importância e do objetivo de certa regra do ordenamento.155 Assim, a desconsideração

deixa de ser vista exclusivamente como uma reação a comportamentos antijurídicos, para ser tratada como uma técnica para aplicação de certas normas. No caso de sua aplicação em decorrência de fraude, a desconsideração tem caráter sancionatório. Quando utilizada como técnica para a imputação de certas normas, tem caráter regulamentar.

Também em contraposição à teoria subjetiva de Serick surgiu a teoria objetiva do abuso (também alemã), que, conforme Walfrido Jorge Warde Júnior,

tem como ponto de partida os fundamentos da pessoa jurídica como forma de organização invariavelmente condicionada às demandas de ordem econômica e às finalidades empresariais. Um defeito nesse contexto organizacional, i.e., a inobservância das condições de organização, determina a aplicação da Durchgriff.156

A diferença substancial nessa teoria em relação à teoria de Serick está no fato de que não se faz necessária a prova de culpa nas condutas de fraude e no abuso de direito. Conforme João Casillo explica, de acordo com a teoria objetiva, “toda vez que houver um conflito entre a pessoa jurídica e a finalidade dela, a desconsideração deve ser aplicada. Toda vez que houver abuso do instituto, e este abuso é verificado pelo critério objetivo (contradição entre a forma do ato e a finalidade do instituto), aplica-se a teoria da desconsideração”.157

No Brasil, a teoria foi apresentada por Rubens Requião na década de 70, que, no primeiro estudo nacional sobre o tema, traduziu-a como “desconsideração da personalidade jurídica” ou “levantamento ou descerramento do véu corporativo ou da personalidade jurídica”. À época, na ausência de qualquer texto legislativo a prever sua

155 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário cit., p. 242.

156 WARDE JÚNIOR, Walfrido Jorge. A crise da limitação de responsabilidade dos sócios e a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica cit., p. 153.

157 CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 528, p. 31, out. 1979.

aplicação, Requião defendeu a possibilidade de empregá-la, independentemente de dispositivo legal.158

Rubens Requião mantém, como Serick, elementos subjetivos como pressupostos para a aplicação da desconsideração, quais sejam a fraude e o abuso de direito no uso da personalidade jurídica.

A teoria da desconsideração se nacionaliza definitivamente com a contribuição de Fábio Konder Comparato. Após uma revisão crítica da evolução do conceito de pessoa jurídica, o autor entende estar na importância fundamental do objeto social a solução de interpretação da problemática societária, pois configura este a causa do negócio jurídico que faz nascer a sociedade.159 A personalização, para Comparato,

traduz uma técnica jurídica para atingir objetivos práticos, quais sejam, “autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais”.160 E conclui, a

respeito da pessoa jurídica,

A causa, na constituição de sociedades, deve, portanto, ser entendida de modo genérico e sob uma forma específica. Genericamente, ela equivale à separação patrimonial, à constituição de um patrimônio autônomo cujos ativo e passivo não se confundem com os direitos e as obrigações dos sócios. De modo específico, porém, essa separação patrimonial é estabelecida para a consecução do objeto social, expresso no contrato ou nos estatutos. A sua manutenção, por

158 “[...] diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos. [...]

É necessário convir que as pessoas jurídicas, sobretudo no que concerne ao direito brasileiro, constituem uma criação da lei. Como criação da vontade da lei refletem uma realidade, mas uma realidade do mundo jurídico, e não da vida sensível. Ensina, por isso, Cunha Gonçalves, que as pessoas jurídicas ‘são reais, como um contrato ou um testamento’. Daí a definição que o civilista lusitano nos empresta, de que as pessoas jurídicas são ‘associações ou instituições (fundações) formadas para a realização dum fim e reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direitos’. [...]

‘Ora, a doutrina da desconsideração nega precisamente o absolutismo do direito da personalidade jurídica. [...] Apresenta-se, por conseguinte, a concessão da personalidade jurídica com um significado ou um efeito relativo, e não absoluto [...].

Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado objetivando, como diz Cunha Gonçalves, ‘a realização de um fim’ nada mais procedente do que se reconhecer ao Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado” (REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). Revista dos Tribunais, ano 58, dez. 1969, p. 14, v. 410).

159 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade

anônima cit., p. 351.

conseguinte, só se justifica pela permanência desse escopo, de sua utilidade e da possibilidade de sua realização.161

Por isso afirma serem as pessoas jurídicas consideradas, no mundo jurídico, pelas funções que exercem, sendo estas gerais e especiais. A função geral está na criação de um centro de interesses autônomo. As específicas variam de acordo com as normas que regulam a pessoa jurídica, estando prescritas em lei e em seu contrato social ou estatuto. Para o autor, a disfunção societária (desvio de função, que pode decorrer de abuso ou fraude, mas não necessariamente constituir um ilícito) é o critério para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ligado de maneira íntima ao poder de controle societário.162

Uma vez que o pressuposto da separação patrimonial (exercício de sua função) não se verifique, dá-se causa à suspensão da eficácia do ato jurídico de constituição da sociedade e viabiliza-se a responsabilização daquele ou daqueles que deram causa ao desvio.

A todo poder correspondem deveres e responsabilidades. O ordenamento tem a expectativa de que a sociedade empresária cumpra sua função econômico-social. Desde o surgimento do Estado social, não é mais possível afirmar-se que o poder do empresário está a serviço exclusivo dos sócios; não há como negar a prevalência do interesse público. O desvio de poder, portanto, consiste em se afastar do espírito da lei, contrariando a expectativa do legislador em ver exercida aquela função econômico- social e atendido este interesse público. Os resultados do exercício da atividade empresária submetem-se, assim, ao atendimento dos interesses da pessoa jurídica e de seus sócios e também aos interesses comunitários (da comunidade local, regional ou nacional). Em caso de conflito, reconhece-se a supremacia dos interesses externos aos internos, pois é essa a consequência jurídica para as sociedades empresárias com a instituição do Estado social.163

161 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade

anônima cit., p. 351.

162 Idem, ibidem, p. 356. 163 Idem, p. 363 e ss.

Outra contribuição relevante ofertada à teoria da desconsideração da personalidade jurídica por Fábio Konder Comparato foi a demonstração de elementos objetivos como pressupostos para sua aplicação. Para sustentar sua compreensão de que a confusão patrimonial entre titular do controle e sociedade controlada faz surgir a responsabilidade externa corporis dos sócios, relembra as bases sobre as quais o Direito Societário anterior ao surgimento da responsabilidade limitada dos sócios firmava-se.

O princípio da correspondência entre poder de gestão e responsabilidade pelas dívidas sociais regia o Direito Societário anterior ao Direito Acionário.164 Nos

tipos societários existentes até então, aquele sócio que administrava a sociedade respondia subsidiariamente por suas dívidas. Havia, portanto, um cuidado genuíno do sócio administrador na tomada de decisões, tendo em vista o risco que uma má decisão poderia acarretar a seu patrimônio pessoal. As sociedades anônimas quebram esse princípio. Primeiro, por desvincular participação no capital de administração. Segundo, por limitar a responsabilidade dos sócios ao montante investido.

O caminho que se viu traçar na doutrina europeia, na tentativa de preencher o vazio causado pela irresponsabilidade dos acionistas pelas dívidas sociais, foi de transferir a responsabilidade decorrente do poder de gestão para o poder de controle. A tese do acionista “soberano”165 negava a limitação da responsabilidade do acionista pelo

simples fato de se tratar de um sócio com poder de controle. No entanto, é evidente que esse posicionamento vai de encontro à natureza do tipo societário, pois a sociedade anônima baseia-se na ideia de separação patrimonial e limitação de responsabilidade. A evolução a que se assistiu, então, levou a diferenciar o acionista soberano (aquele que exerce o poder de controle) do acionista “tirano”, que, além de exercer pleno controle, fazia confundir seu patrimônio pessoal com o da sociedade.

E daí conclui Fábio Konder Comparato: sendo a pessoa jurídica uma técnica de separação patrimonial, havendo um sócio controlador que não respeita o princípio da autonomia patrimonial – que, diga-se, é de seu próprio interesse –, misturando patrimônio pessoal com patrimônio social, pode-se aplicar a desconsideração da

164 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade

anônima cit., p. 431.

personalidade jurídica externa corporis. Seria, portanto, a confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada o critério fundamental para sua aplicação.166

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015 (páginas 90-107)