• Nenhum resultado encontrado

Pessoa jurídica: origem e natureza

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015 (páginas 48-54)

O Código Civil, em sua parte geral, apresenta os sujeitos de direito: as pessoas naturais no Título I; e as pessoas jurídicas, no Título II. Ao fazê-lo, reconhece como centro de imputação de direitos e deveres não apenas o ente individual, mas igualmente o ente coletivo.

Considerar a pessoa natural como universo de direitos e deveres parece decorrência lógica da própria finalidade do Direito, que é regular as relações humanas. Mas nem sempre foi assim. A escolha por quem figurará como sujeito de direito varia de acordo com a evolução da sociedade. O escravo, por exemplo, indiscutivelmente uma pessoa natural, já foi considerado objeto de direito de propriedade de seu senhor. Hodiernamente, por outro lado, consideram-se como titulares de direitos indivíduos ainda nem nascidos.

Se há escolha na qualificação de um indivíduo como sujeito de direito, há igualmente escolha em reconhecer uma entidade, sem existência física, como tal. As teorias criadas para buscar justificação jurídica para o reconhecimento da entidade coletiva como centro de imputação de direitos e deveres variam, mas nenhuma escapa à percepção de que o interesse individual e o interesse dos indivíduos unidos em um grupo não se confundem. E essa noção sempre existiu ao longo da História.

No Direito romano, já se verificava a formação de organizações de interesses, direitos e deveres transindividuais, apesar de a tais organizações não se conferir personalidade jurídica. Os collegia e os sodalites eram espécies do gênero universitates e, portanto, considerados como detentores de um patrimônio distinto daquele dos indivíduos que os integravam ou os gerenciavam. Com a evolução do Direito romano, passou-se a reconhecer juridicamente a universalidade de pessoas e a universitatis bonorum como um patrimônio a serviço de determinada causa, ao qual já

se admitia autonomia patrimonial, mas não se aceitava ainda constituísse um sujeito de direito propriamente dito.59

Se inicialmente os propósitos dessas estruturas patrimoniais estavam mais ligados a questões religiosas ou de benemerência, por volta do século XIII já se assiste à organização de entidades coletivas para atividades de comércio (terrestre e marítimo), bem como para atividades financeiras, v.g. as casas bancarias, na Itália.

Ainda no século XVII, com o forte desenvolvimento do comércio com as Índias, comerciantes e investidores ingleses e holandeses constituíram entidades coletivas com a finalidade de exploração marítima, formando o que seriam as primeiras companhias da História: a Companhia Britânica das Índias Orientais e a Companhia Holandesa das Índias Orientais.60

Ao longo da História, sempre foi possível constatar que a atividade humana, com maior ou menor complexidade, ocorre em duas dimensões: na individual e na coletiva. Não é difícil perceber que o interesse e o objetivo no plano individual são diversos do interesse e objetivo no nível coletivo.61 O mesmo ocorre com relação à

capacidade para desenvolvê-las. Há atividades que um indivíduo não está apto a realizar sozinho, seja por sua complexidade, seja pela demanda de investimentos, seja porque sua natureza exige que se mantenha ativa por mais tempo que uma vida humana. Tais razões não permitem que o Direito despreze essas duas facetas da atividade humana.

Em face desses motivos, assistiu-se a uma evolução – tanto do ponto de vista prático, quanto do jurídico – da forma de desenvolver a empresa, que teve seu início com a empresa individual, explorada pela pessoa natural do comerciante ou empresário individual, para a empresa explorada por uma pessoa jurídica (inicialmente a sociedade comercial) e o grupo empresarial, em que a empresa é explorada por meio de um conjunto de pessoas jurídicas.62

59 MORI, Celso Cintra. Pessoa jurídica: ficção e realidade. In: KUYVEN, Luiz Fernando Martins (Coord.). Temas essenciais de direito empresarial. Estudos em homenagem a Modesto Carvalhosa. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 97.

60 Idem,ibidem, p. 101. 61 Idem, p. 102.

62 ANTUNES, José Engrácia. Estrutura e responsabilidade da empresa: o moderno paradoxo regulatório. Revista Direito GV, v. 1, n. 2, p. 30, jun.-dez. 2005.

Com relação ao tema da responsabilidade civil, na fase inicial do desenvolvimento da empresa, quando ainda era realizada pelo empresário individual (então, comerciante), o Direito não se deparava com questões de grande complexidade. Não obstante já houvesse uma especialização do patrimônio do indivíduo para o exercício da atividade da empresa, os riscos decorrentes desta atividade estavam todos centrados em sua pessoa. Nela se concentravam o capital, o trabalho e as responsabilidades inerentes à exploração de dada atividade. Como lembra José Engrácia Antunes, nesse regime

estava ainda em linha com um fundamental ‘standard’ jusprivativista em sede de responsabilidade: o nexo entre poder e responsabilidade (“Herrschaft und Haftung”), de acordo com o qual quem pratica em proveito próprio uma determinada acção ou omissão deverá suportar os encargos ou as consequências negativas daquelas decorrentes (“ubi commoda ibi incommoda”).63

Na passagem da economia artesanal e mercantil para aquela de produção industrial, assiste-se a uma revolução não apenas econômica, mas igualmente jurídica. A concentração do capital e do trabalho no exercício da empresa, não mais advindo aqueles de um único indivíduo, mas de um grupo de investidores, torna imprescindível para o desenvolvimento econômico a formação de um ente com capacidade de organizar os esforços e interesses coletivos para o atendimento de uma finalidade.

A sociedade comercial (hoje, sociedade empresária) nasce nesse momento para atender à nova demanda econômica. Diante da exigência de volume expressivo de capital fornecido por mais de um indivíduo, da força de trabalho e da organização dos meios de produção, a empresa em nome individual não podia ser mais a única possibilidade jurídica.

O Direito não ignorou (nem poderia) essa demanda pela institucionalização dos meios de produção. A autonomia patrimonial, princípio tão caro ao Direito Societário, nasce então com o que José Engrácia Antunes chama de “duas vacas

63 ANTUNES, José Engrácia. Estrutura e responsabilidade da empresa: o moderno paradoxo regulatório. Revista Direito GV, v. 1, n. 2, p. 31, jun.-dez. 2005.

sagradas do direito societário tradicional”: o reconhecimento da personalidade jurídica própria à empresa e a concessão da responsabilidade limitada a seus sócios.64

Os pressupostos para aceitação da pessoa jurídica como sujeito de direito foram sendo construídos a partir do século XIX. Rachel Sztajn apresenta-as em sucinta, mas igualmente precisa, descrição, adotada adiante.65

Na Alemanha, Savigny acolhe a pessoa jurídica como criação do legislador em sua teoria da ficção ou da entidade. Nesse sentido, por opção legal, a capacidade jurídica pode ser estendida a pessoas fictícias, mas para fins jurídicos exclusivamente patrimoniais – e, portanto, não plenamente. Por tal razão, de acordo com essa teoria, não seria possível admitir que a pessoa jurídica tivesse capacidade e vontade própria para atuar, precisando, para tanto, de representação.

Jhering desenvolve a teoria individualista, de acordo com a qual os sujeitos são sempre pessoas naturais, reduzindo as pessoas jurídicas a seus sócios, administradores ou destinatários.

A teoria do patrimônio de afetação, por sua vez, não toma a pessoa jurídica como sujeito, mas como um conjunto de bens destinados a um fim específico, aceitando, inclusive, a existência de patrimônio sem sujeito, sendo relevante para a realidade jurídica em razão da sua destinação específica.

Calixto Salomão Filho expõe as duas vertentes da teoria do patrimônio de afetação, uma defendida por Brinz e outra por Bekker. Para o primeiro, o patrimônio não está relacionado a um conjunto de bens apenas, mas a uma atribuição dada a estes bens. Não se coloca contrário à ideia de personificação deste patrimônio, mas entende que as coisas não pertencem a um ente, mas sim a uma finalidade.66 Já para Bekker, a

personalidade jurídica se encontra na capacidade de dispor e fruir de direitos relativos ao patrimônio. Os sujeitos que constituem o patrimônio de afetação renunciam a parte

64 ANTUNES, José Engrácia. Estrutura e responsabilidade da empresa: o moderno paradoxo regulatório. Revista Direito GV, v. 1, n. 2, p. 34, jun.-dez. 2005.

65 SZTAJN, Rachel. Sobre a desconsideração da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais, ano 88, v. 762, p. 84, abr. 1999.

66 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 204.

de seus direitos de disposição sobre tais bens. A finalidade a que se destina tal patrimônio é exatamente a restrição do poder dos fundadores da pessoa jurídica.67

A teoria institucional ou da organização aceita a pessoa jurídica como uma instituição voltada para a consecução de uma atividade, que opera a combinação da vontade de várias pessoas. A organização em si é um sujeito, não como um patrimônio de afetação, mas sim com uma administração que tem um escopo definido.

Finalmente, a teoria orgânica ou da realidade, sustentada por Gierke, entende ser a pessoa jurídica uma unidade social viva. Não apenas os homens são sujeitos de direitos, mas igualmente os organismos sociais, pois seriam estes capazes de vontade e de ação, perseguindo seus próprios fins, distintos dos de seus membros, por isso aptos a gozar de personalidade jurídica. A premissa é que o conjunto de vontades individuais forma uma nova vontade, como se as pessoas atribuíssem uma parte de sua personalidade para a constituição de uma nova pessoa, agora coletiva. Como constata Calixto Salomão Filho, “a principal característica destacada na teoria de Gierke é o retorno da concepção do fenômeno associativo como ‘realidade social’”.68

A teoria da ficção de Savigny e a orgânica de Gierke foram aquelas sobre as quais a doutrina nacional mais se debruçou. Calixto Salomão Filho as compara de maneira curiosa e esclarecedora, ao dizer que a diferença entre a teoria apresentada por Savigny e aquela apresentada por Gierke está na diferença daquilo que cada uma “finge”, pois ambas reconhecem a realidade do fenômeno associativo. Assim, afirma que “Savigny finge que esses fenômenos são iguais aos homens, os únicos que, por natureza, são sujeitos de direito; Gierke finge que a capacidade de ter vontade própria atribui realidade ao fenômeno associativo, segundo ele o único parâmetro para atribuição de personalidade jurídica”.69

Na análise das diversas teorias sobre a pessoa jurídica, Fábio Ulhoa Coelho agrupa-as em dois segmentos: aquelas que defendem ser a pessoa jurídica uma realidade

67 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário cit., p. 205. 68 Idem, ibidem, p. 207.

anterior ao reconhecimento de sua personalidade pelo Direito e aquelas que entendem ser a pessoa jurídica uma criação do Direito.70 Expõe o ilustre Professor que

A pessoa jurídica não é um ser pré-jurídico, que o direito se obriga a reconhecer, mas, antes, uma idéia, acerca de relações de interesses humanos, que uma parcela da sociedade, a comunidade jurídica, tem, para atribuir certas conseqüências a essas relações. Na essência, as diversas concepções que entendem a pessoa jurídica como realidade exclusivamente jurídica se identificam, faltando-lhes, contudo, a percepção de que o elemento comum de aproximação é a redução da pessoa jurídica a uma idéia, compartilhada pela comunidade jurídica. Como de resto são todas as ‘realidades’ jurídicas, inclusiva a pessoa física.71

Para o autor, a conceituação de pessoa jurídica deve nascer da constatação de tratar-se de um tipo de sujeito de direito, i.e., algo ou alguém detentor ou destinatário de um interesse considerado pelo Direito. Essa qualidade – de deter ou ser destinatário de interesses – não é intrínseca ao ente, mas decorre da “interpretação jurídica da realidade social”. Os sujeitos de direito podem ou não ser personalizados. O efeito da personificação de um sujeito de direito é submetê-lo a um regime jurídico próprio, qual seja, “enquanto os sujeitos de direito personalizados podem praticar quaisquer atos para os quais não estejam, expressamente, proibidos, os sujeitos de direito despersonalizados, por sua vez, só podem praticar os atos jurídicos para os quais estejam expressamente habilitados”. A personalização, portanto, consiste “em uma autorização genérica à prática de atos jurídicos”.72

No Brasil, o Código Civil de 1916 adotou a teoria de Savigny, reconhecendo no gênero pessoa duas espécies: as naturais e as jurídicas.

A compreensão do fenômeno como decorrente de uma ficção legal não resulta em prejuízo à finalidade de sua aceitação no universo jurídico, qual seja, o tratamento igualitário concedido à pessoa natural e à jurídica. O objetivo da ficção é justamente adequar o arcabouço jurídico existente a uma necessidade da evolução social, trazendo situações novas a demandar tutela legal.73 Pela ficção, faz-se possível,

70 COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 66.

71 Idem, ibidem, p. 73. 72 Idem, p. 75-86.

73 SZTAJN, Rachel. Sobre a desconsideração da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais, ano 88, v. 762, p. 87, abr. 1999.

para fins de atingir determinados efeitos jurídicos, que atos ou fatos diferentes possam ser tratados de maneira idêntica. A identidade entre pessoas naturais e jurídicas se dá no plano dos efeitos, de maneira a possibilitar a ação conjunta dos indivíduos. Conforme Rachel Sztajn, “o instituto da personificação oferece instrumento jurídico mais idôneo, a um tempo muito eficiente e simples, para que se possa prover à satisfação de certos interesses humanos, garantindo a necessária coordenação e permanência dos meios econômicos e das atividades pessoais destinadas a servi-los.”74

Não há como negar a importante contribuição do Direito para a atividade econômica ao reconhecer legalmente a personalidade jurídica da empresa, tornando-a capaz do exercício de direitos e deveres. Proteger seus interesses – não como soma ou extensão de interesses individuais, mas como próprios, autônomos, designados ao cumprimento de uma finalidade predefinida é imprescindível em um contexto econômico ávido pelo estímulo à atividade empresarial, para fomentar a geração de riquezas, a criação de empregos e a produção de bens e serviços diversificados a serem ofertados à sociedade.

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2015 (páginas 48-54)