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CAPÍTULO 2 – INFLAÇÃO E DESINFLAÇÃO: HISTÓRIA E MARCO ANALÍTICO

2.2 Moeda, inflação, desinflação, conflito e coalizão

2.2.7 Acerca das coalizões e dos conflitos

A análise das coalizões que se formam na sociedade é fundamental para compreender tanto a dinâmica dos processos inflacionário e desinflacionário quanto a manutenção da estabilidade de preços (extensão e duração). Como se pode observar, este recurso analítico é utilizado desde o nascimento da Ciência Política:

Alguns príncipes, para manter seguramente o Estado, desarmaram os seus súditos,

outros dividiram as cidades conquistadas conservando facções para combater-se mutuamente, outros alimentaram inimizades contra si mesmos, outros dedicaram-se

à conquista do apoio daqueles que lhes eram suspeitos no início de seu governo,

alguns edificaram fortalezas, outros ainda, se arruinaram. E, se bem que todas essas

coisas não se possam julgar em definitivo se não se examinarem as particularidades dos Estados onde se tivesse que tomar qualquer destas deliberações [...] (Maquiavel, 1979, p. 87 – grifos meu).

Se se depura o léxico do maquiavelismo, fica claro que Maquiavel está se referindo às coalizões que o “príncipe” constrói ou destrói a fim de assegurar a manutenção do poder

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Essa importância também foi destacada, por outro autor, mas não com a mesma ênfase: “as mudanças ocorridas no início dos anos 1970 nos regimes internacionais da moeda e do petróleo tiveram um efeito profundo na subseqüente inflação global [... ao ...] criar incertezas e reduzir incentivos para um comportamento não inflacionário da parte dos governos” (Keohane, 1985, p. 80-97). Além disso, este autor concorda com a “teoria sociológica da inflação” de Hirschman: “a política da inflação gira em torno de questões distributivas” (Keohane, 1985, p. 81). Consultar também Thorp & Whitehead (1984).

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político. Além disso, a formação e o funcionamento das coalizões devem ser analisados empiricamente, pois não há análise “definitiva”. Ao contrário, é preciso, “examinar as particularidades dos Estados” levando-se em conta as “inimizades” e os “apoios”. Em outras palavras, é necessário elaborar uma análise concreta de um caso concreto.

No “campo da política”, diferentes teorias utilizam o conceito de coalizões. O objetivo aqui é se apropriar daquelas que procuram responder às seguintes questões: o desenho institucional do Estado facilita ou dificulta a formação de coalizões? A estrutura econômica e social favorece ou inibe a constituição de coalizões? As idéias econômicas ajudam ou impedem a construção de coalizões117?

Marx, por exemplo, nunca se preocupou em elaborar uma “teoria das coalizões”, mas utilizou exaustivamente o conceito de “aliança”118 para analisar a dinâmica política da luta de classes na França da metade do século XIX ou da Inglaterra do século XVII. Mas como explicar a ausência de uma “teoria das coalizões” em Marx? Com efeito, o conceito fundamental para a análise política marxiana é o de luta de classes. Ao analisar empiricamente as lutas de classes – a ação concreta das classes e frações de classe –, Marx identificou a formação das mais diversas coalizões na “cena política”.

As lutas de classes em França de 1848 a 1850 (1984a) e O 18 de brumário de Louis Bonaparte (1984b) são as obras mais representativas da análise política marxiana. Neste

último, vale destacar, as coalizões se expressam através dos partidos políticos e na formação dos blocos parlamentares no interior do parlamento francês. O vínculo classista entre as coalizões sociais e as coalizões políticas não era evidente para as interpretações do período, e essa é a grande novidade introduzida por Marx.

Em um outro artigo, publicado no mesmo período em que realizava suas análises políticas sobre a França da II República, Marx volta os olhos para a Inglaterra e polemiza com François Guizot:

[A] natureza conservadora da revolução inglesa [...] deve ser encontrada na aliança

duradoura entre a burguesia e a grande parte dos proprietários fundiários, uma

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Registre-se que boa parte da literatura sobre a construção das coalizões, que tem como ponto de partida a teoria econômica neoclássica, foi deixada de lado.

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Aqui cabe uma observação: para a pesquisa, os conceitos de aliança e de coalizão são sinônimos. Por questão de uniformidade do texto, optou-se pela última.

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aliança que constitui a diferença maior entre a revolução inglesa e a revolução francesa, a qual destruiu as grandes propriedades fundiárias com a sua política de

parcelização. A classe dos grandes proprietários de terra ingleses, aliada com a burguesia [...] não se encontrava em oposição – como estavam os proprietários de terra feudais franceses em 1789 – mas na mais completa harmonia com os requisitos vitais da burguesia. De fato, suas terras não eram feudais, mas propriedade burguesa. [... Além disso, tinham...] interesses comuns com a burguesia [o que explica] sua aliança com ela (Marx, 1850, p. 4-6 – grifos meu).

Marx afirma explicitamente que a diferença na natureza das revoluções burguesas na Inglaterra e na França reside nas coalizões que se formaram na sociedade. Na Inglaterra, realizou-se uma coalizão entre a burguesia e a propriedade fundiária que explica a “natureza conservadora da revolução”, ou seja, uma revolução “pelo alto”. Já na França, a incapacidade da propriedade fundiária de construir uma coalizão com a burguesia resultou no desaparecimento da primeira. Neste caso, a coalizão tem sempre como referência a classe social.

Outro elemento importante destacado por Marx é a diferença entre as estruturas econômicas da Inglaterra e da França. Enquanto na primeira a propriedade fundiária já era burguesa, isto é, voltada para a produção de excedente, na segunda ela ainda era feudal. Uma interpretação superficial poderia indicar que o argumento utilizado por Marx é economicista, pois a consolidação da coalizão é fruto da natureza burguesa da propriedade fundiária na Inglaterra, que possibilita a constituição de “interesses comuns” entre as classes dominantes e, conseqüentemente, facilita o surgimento de uma coalizão entre elas.

Porém, uma interpretação mais atenta permite afirmar que o argumento não é economicista, pois o sucesso da coalizão não pode ser creditado unicamente às características da estrutura econômica. A existência de “interesses comuns” pode até representar um “incentivo”, mas não redunda, automaticamente, na formação de uma coalizão. 0 18 de brumário contém uma variedade de situações nas quais os “interesses comuns”, isto é, burgueses, não se constituíram em uma coalizão, mas em ações políticas fratricidas e visões antagônicas, por exemplo, sobre a forma de Estado e o regime político (Boito Jr., 2002).

O uso do conceito de coalizão está presente em inúmeros textos de Lênin e também na teoria política marxista contemporânea. Apenas a título indicativo, Nicos Poulantzas

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(1986) dedica uma pequena parte do seu livro à análise das “alianças” e das “classes- apoio”. A presença é pequena, pois é notório que o conceito-chave para aquele autor é o de “bloco no poder”, mas suficientemente importante para merecer a sua atenção. Segundo o autor, “a aliança não funciona, regra geral, senão a um nível determinado do campo da luta de classes e combina-se freqüentemente com uma luta intensa aos outros níveis” (Poulantzas, 1986, p. 236).

O conceito de coalizão pode ser utilizado pelo cientista político ou pelo sociólogo político para a análise da luta política de classes, ou seja, de um “determinado campo da luta de classes”, mas deve, ao mesmo tempo, lançar um olhar para “uma luta intensa” que ocorre nos “outros níveis” da luta de classes, quais sejam, o econômico e o ideológico. As coalizões que se formam no “campo da política” devem ser relacionadas com os outros “campos”. A análise poulantziana procurou dar um tratamento teórico para algo que a análise marxiana, histórica e política, já havia decifrado.

A análise das coalizões também foi realizada pela literatura neo-institucionalista. Mas é preciso destacar que o neo-institucionalismo é uma abordagem que engloba diferentes correntes em seu interior e, portanto, o poder explicativo dado ao conceito de coalizão pode variar significativamente mesmo no interior de cada “escola”119.

Veja-se, por exemplo, a utilização do conceito de coalizão por dois representantes de uma mesma corrente neo-institucionalista, qual seja, o neo-institucionalismo histórico. Para Weir (1992), a organização das instituições políticas – sobretudo as características do sistema político para agregação de interesses, mais precisamente, do sistema partidário e da legislatura – estrutura a maneira pela qual os mais diversos grupos reconhecem seus interesses comuns e as possibilidades (e a necessidade) de forjar uma coalizão política.

No caso analisado por Weir (1992), o desenho institucional fragmentado do Estado norte-americano não permitia a implantação de políticas keynesianas de gasto público, e a sua adoção implicava uma reforma institucional a ser levada a cabo no Parlamento. Uma coalizão formada pelo empresariado e pela propriedade fundiária – representada no

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Em termos mais genéricos, pode-se afirmar que para os neo-institucionalistas “as instituições importam”. O objetivo dessa abordagem é de se contrapor à perspectiva behaviorista dominante nas Ciências Sociais norte-americanas. A esse respeito, consultar: Hall & Taylor (1996); Immergut (1998); Thelen (1999); e Peters (1999).

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Congresso por democratas sulistas e republicanos do centro-oeste – conseguiu reduzir o alcance e a institucionalização das políticas keynesianas no pós-guerra. Portanto, as coalizões são produto do processo político, e não de preferências preexistentes.

A outra análise neo-institucionalista enfatiza prioritariamente as coalizões (Gourevitch, 1986), mais especificamente, examina a formação de coalizões entre os atores sociais (empresas, agricultura e trabalho), em cinco países (Alemanha, França, Reino Unido, Suécia e Estados Unidos), como resposta a três crises internacionais (1873-1896, 1929-1949 e 1971-198?). Ou seja, as diferentes respostas que países diversos deram às mais graves crises econômicas internacionais são interpretadas à luz do conceito de coalizão.

Segundo Gourevitch (1986), vários elementos contribuem para a formação e a desarticulação das coalizões. O primeiro é a posição dos atores sociais na economia nacional vis-à-vis a economia internacional. Esses atores forjam uma coalizão quando buscam uma determinada política estatal. O segundo são os mecanismos de representação (partidos políticos e associações de grupos de interesse) que articulam as preferências dos atores sociais às instituições estatais. O terceiro elemento é a estrutura do Estado (normas e instituições), que pode facilitar ou dificultar a ação dos partidos e das associações. A ideologia econômica, o quarto fator, é a lente através da qual os atores sociais olham a política e a economia, informa seus interesses e guia suas ações. Finalmente, as rivalidades político-militares no sistema internacional produzem efeitos nas políticas adotadas internamente.