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CAPÍTULO 2 – INFLAÇÃO E DESINFLAÇÃO: HISTÓRIA E MARCO ANALÍTICO

2.2 Moeda, inflação, desinflação, conflito e coalizão

2.2.9 Explicitando o marco analítico

As mudanças na estrutura da economia internacional120 e na própria ordem econômica internacional são um elemento importante para compreender o que ocorre internamente nos países. Nesse sentido, Gourevitch (1986) é quem mais se aproxima da

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A análise realizada a partir das coalizões [e dos conflitos] é amplamente utilizada nos estudos de relações internacionais e no campo da economia política internacional. Partindo do modelo de três fatores (capital, trabalho e terra), mais especificamente, da fartura ou escassez de terra e trabalho (nenhum país pode ter ambos em abundância), e da constatação de que nas economias avançadas o capital existe em grande quantidade, Rogowski (1989), em um estudo comparativo, mostra como o comércio internacional resulta em conflitos de classe e em conflitos entre os setores urbano e rural. As coalizões se formam a partir da estrutura social e econômica e dos ganhos e perdas em relação ao comércio internacional. Em outras palavras: as mudanças na economia política internacional alteram os interesses econômicos das principais classes sociais, o que encoraja a formação de novas coalizões.

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perspectiva adotada por esta pesquisa, pois entende que os países não ficam imunes a essas mudanças, que não são vistas simplesmente como um pano de fundo para a formação das coalizões.

No entanto, chama atenção o fato de Gourevitch (1986) não incorporar na sua análise os atores internacionais. No caso da pesquisa, FMI, Banco Mundial, governos dos Estados Unidos, etc. pressionam por mudanças – o que não pode ser nem desconsiderado, nem minimizado –, mas estas somente ocorrem se encontrarem eco no plano interno.

Mas voltando à formação específica das coalizões inflacionárias. Quais são as coalizões que Maier (1978) identifica ao longo do século XX? São as inflacionárias, que se estabelecem a partir de três situações: inflação rastejante (até 10% a.a.); inflação latina (de 10 à 1.000% a.a.); e hiperinflação (acima de 1.000% a.a.).

No primeiro tipo de coalizão inflacionária prevalece o consenso entre as classes em relação à manutenção do emprego em altos níveis e em relação e ao bem-estar social o que acaba por amenizar o conflito distributivo. O segundo caso caracteriza-se pelo forte conflito de classe (burguesia x classe trabalhadora) e pela resistência da classe média e da classe alta em relação à redistribuição de recursos para as classes trabalhadoras. A hiperinflação caracteriza-se por uma coalizão de facto entre industriais e sindicatos representada pela espiral preço-salário, que penaliza assalariados desorganizados, rentistas e pequenos empresários (Maier, 1978, p. 42-43).

A taxionomia de Maier (1978) tem pontos fortes e fracos. Entre os fortes estão tanto a utilização do próprio conceito de coalizão para a análise da inflação – que, efetivamente, é o mais adequado tanto para a análise desse fenômeno, quanto para a indicação das diferenças na composição das coalizões inflacionárias, apesar da divisão arbitrária dos tipos de inflação. Em relação aos pontos fracos estão, em primeiro lugar, a ambição da própria taxionomia, que não é capaz de expressar as prováveis diferenças na composição das coalizões – em razão da diversidade da estrutura econômica e social – dentro de um mesmo tipo de inflação; em segundo lugar, o papel do conflito na explicação. Por exemplo, o conflito de classe parece desaparecer ao passar da inflação latina para hiperinflação. Para a pesquisa, diferentemente, a coalizão calcada na colaboração entre industriais e sindicatos não significa que o conflito de classe desapareceu, pois ele pode ser latente. Em terceiro

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lugar, não seria o argumento de Maier (1978) economicista, já que as coalizões se formam segundo um tipo de inflação que, no limite, é dado por uma variação anual da taxa de inflação? Ou, ao contrário, a dinâmica das coalizões não poderia ser dada pelo conflito121?

As coalizões podem variar de acordo com o seu grau de formalização e de visibilidade, podendo ter: alta visibilidade e formalização (“coalizões formais públicas”); alta visibilidade e baixa formalização (“coalizões informais públicas”); baixa visibilidade e alta formalização (“coalizões formais reservadas”); e baixa visibilidade e formalização (“coalizões informais implícitas”) (Abranches, 1993, p. 70). É esta última que caracteriza as coalizões inflacionárias, pois “resultam da coordenação no tempo e no espaço, freqüentemente involuntária, de ações que isoladamente teriam pequeno impacto macroeconômico, mas quando articuladas e cumulativas provocam ou realimentam a inflação” (Abranches, 1993, p. 72). Ou seja, a espiral preços-salários diz respeito à

dinâmica da coalizão inflacionária, mas não necessariamente à dinâmica da inflação122. Com efeito, aceitou-se a premissa segundo a qual é difícil imaginar as pessoas estabelecendo acordos formais e informais para produzir inflação. Mas, o oposto – a

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“Nos países desenvolvidos, a existência de estruturas oligopolísticas, de trabalhadores coletivamente organizados e de uma regulação social [...] teve por conseqüência uma existência, depois da Segunda Guerra Mundial, de uma inflação permanente. Mas um certo consenso social, devido notadamente ao fato de que a grande elevação da produtividade nos anos 50 e 60 permitiu o aumento sensível simultaneamente dos lucros e dos salários reais, teve por conseqüência [...] um movimento de elevação de preços relativamente lento” (Salama & Valier, 1992, p. 84). No caso dos países subdesenvolvidos, em especial dos latino-americanos: “Antes mesmo da entrada na fase de aceleração da inflação dos anos 80, as especificidades dos conflitos distributivos exerciam aí cronicamente, conforme veremos, fortes pressões inflacionárias. É nessas condições que, nos anos 80, a importância da transferência externa, as políticas de ajustamento adotadas, a redução da oferta interna e a aceleração da inflação que elas provocarão irão agudizar os conflitos distributivos, o que, no quadro de certos limites, acelera novamente a inflação. Mais precisamente, é a consideração conjunta de duas

características – a ação de grupos sociais organizados e uma grande desigualdade de renda – o que permite

explicar a intensidade das lutas e a existência de pressões inflacionárias nascidas de conflitos distributivos mais fortes que nos países capitalistas desenvolvidos” (Salama & Valier, 1992, p. 85). Como a distribuição de renda é menos concentrada nas sociedades capitalistas avançadas, o conflito ocorre pelo acréscimo da riqueza gerada, enquanto nos países em desenvolvimento, onde há concentração de renda, o conflito é pela própria divisão da riqueza (Jackson et al, 1975, p. 37).

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“É razoável imaginar-se que dificilmente as pessoas entrariam em acordos formais ou informais para

produzir inflação. [...] O caso típico é o da coordenação de aumentos não sustentáveis de salários e de preços:

as empresas, buscando alívio das tensões capital-trabalho, que aumentam no quadro inflacionário, concedem reajustes acima do permitido pelo nível de preços então praticado e pelos índices em produtividade. Em seguida, elevam os preços para não sofrerem redução de suas margens de lucro. A correção salarial sanciona o novo nível de preços, pois recompõe relativamente e de imediato o poder de compra dos trabalhadores. No momento seguinte, a inflação resultante volta a erodir os salários, e os sindicatos reiniciam a pressão por novo reajuste. Toda vez que se reajustam os salários, mesmo que em seguida se elevem os preços, reduz-se o desconforto resultante da perda do poder aquisitivo” (Abranches, 1993, p. 72) (grifo meu).

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necessidade de entabular acordos visíveis, formais ou não – parece condição indispensável para combater a inflação:

As coalizões formais e públicas [alta formalização e alta visibilidade] são definidas por instrumento com validade legal, geralmente de natureza contratual, e são de conhecimento público. [...] A formação de blocos partidários, alianças eleitorais, blocos políticos mistos, reunindo partidos e sindicatos, assume, na maioria dos casos, caráter público e formal. [...] Os acordos informais e públicos [baixa formalização e alta visibilidade] constituem o modo mais usual e simples de acertar determinadas ações conjuntas. Ocorrem cotidianamente entre empresas, lideranças parlamentares, Executivo e Legislativo, e assim por diante (Abranches, 1993, p. 71)123.

Talvez fosse melhor adotar a hipótese de que a coalizão reformista124- desinflacionária apresenta sempre um alto grau de visibilidade, baseado sempre no seu

compromisso inequívoco com as reformas e com a estabilidade de preços mas, de acordo

com a situação concreta, sua formalização, as medidas efetivas a serem tomadas para realizar as reformas e se chegar à estabilização, pode ser alta ou baixa.

A longa convivência com a inflação – sobretudo quando ela é alta – produz interesses na sua manutenção e constrói coalizões:

Mas há os militantes ativos da coalizão pró-inflação, empresas e grupos políticos cuja sobrevivência econômica e/ou política não pode prescindir das vantagens que a inflação lhes traz. [...] A luta contra a inflação implica não apenas mudar hábitos inflacionários, mas sobretudo derrotar os interesse que se alimentam da inflação. Nessa medida, é uma luta política que afeta as relações de poder na sociedade (Kandir, 1990, p. 23) 125.

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“Com efeito, a estabilidade monetária constitui ela própria um poderoso fator de transformação das relações sociais, na medida em que ela cristaliza e torna mais visível os atores e os problemas” (Kessler & Sigal, 1997).

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De fato, a estabilização de preços é um momento intermediário que permite aprofundar as reformas já iniciadas. No entanto, um conjunto mínimo de reformas institucionais é essencial para que se consiga a estabilização. E para a realização dessas reformas prévias, há necessidade da constituição de uma coalizão. Corrales (1999) afirma que as crises não levam necessariamente à implantação de reformas pró-mercado. Mas, como ele demonstrou, as reformas podem levar a um aprofundamento da crise, o que não deixa de ter conseqüências importantes no cenário doméstico.

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De fato, os resultados da inflação não são neutros e produzem efeitos redistributivos. Portanto, não é correto afirmar “que todos perdem com a inflação”, pois a inflação gera “ganhadores” e “perdedores” (Keynes, 1983b; 1971); (Bach, 1975). Consultar Clerc (1988, p. 69), para verificar quem ganha e quem perde com a inflação na França no final dos anos 1970.

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A literatura, de uma maneira mais explícita ou não, afirma que uma nova coalizão precisa desarticular a coalizão dominante se quiser ocupar o seu lugar126. A afirmação parece óbvia, mas ela remete a um conceito fundamental na Ciência Política que é o de poder. As relações entre as coalizões e no seu interior são relações de poder127. Então como as coalizões se mantêm coesas? Para Gourevitch (1986) essa coesão é dada pela ideologia econômica; para Kwon (2003), sustentada por uma certa visão de mundo; e para Starr (1997), pelo objetivo da coalizão. Para Corrales (1998), Etchemendy (2001) e Treisman (2003) são os interesses econômicos dos componentes da coalizão que asseguram a referida coesão.

A análise aqui proposta incorpora as relações entre estrutura econômica e social, mas também a ação do Estado que – para implantar as reformas/políticas públicas – precisa do apoio de uma coalizão social, bem como de uma coalizão política no Parlamento. Neste caso, o tipo de regime político é relevante, pois no regime democrático há ainda a necessidade de se forjar uma coalizão eleitoral. No que se refere às coalizões sociais, a estrutura do capitalismo que se desenvolveu em uma determinada sociedade, muitas vezes, inibe ou facilita a formação de determinadas coalizões. Por isso, a análise aqui realizada é histórica.

Portanto, o estudo das coalizões é fundamental para a compreensão das reformas. É dessa perspectiva que se incorpora o artigo de Fanelli et al (1994). Qual é o objetivo do artigo? É duplo. Primeiramente, avaliar se propostas políticas de reformas orientadas para o mercado elaboradas pelo Consenso de Washington estão coerentemente relacionadas com a abordagem neoclássica – tanto do desenvolvimento (elaborada majoritariamente pelo Banco Mundial), quanto da estabilidade macroeconômica (elaborada majoritariamente pelo FMI) –, como forma de restaurar o crescimento com estabilidade na América Latina. Em segundo lugar, examinar e avançar em propostas políticas alternativas que têm por objetivo restabelecer o crescimento.

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No caso da desinflação na Rússia em 1995, a coalizão inflacionária foi dissolvida através da criação de “incentivos” para que os grupos sociais que se beneficiavam com inflação (stakeholders in inflation) apoiassem a estabilidade de preços. Era preciso “desorganizar os vencedores” (Treisman, 1998, p. 250).

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Pode-se agora acrescentar que as coalizões “implicam em alguma forma de atividade política (como voto, lobby, protesto ou a ameaça do uso de alguns desses recursos), que tem por objetivo influenciar a política” (Hiscox, 2001, p. 6).

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Com relação ao primeiro ponto, o Consenso de Washington estabelece como prioridades, a criação de uma estrutura macroeconômica sadia e a geração de superávit fiscal. Posteriormente, deve-se implantar as reformas financeira e comercial, a desregulamentação do mercado de trabalho, etc., como o intuito de trazer “incentivos privados”. Fanelli et al (1994) encontram algumas “fraquezas” na argumentação do Consenso de Washington que podem ser assim sintetizadas: países que conquistaram crescimento com estabilidade não aplicaram as políticas da maneira como foram preconizadas pelo Consenso, o que pode ser empiricamente demonstrado; a tentativa de articular a abordagem neoclássica com as políticas de crescimento e com as de estabilização revelou-se teoricamente frouxa, sobretudo a relação entre as medidas de estabilização no curto prazo e as reformas estruturais; há uma crença de que a mera adoção de políticas sadias fará com que os países devedores garantam automaticamente o acesso ao mercado internacional de capitais; finalmente, os dados empíricos não permitem afirmar que o crescimento estará garantido bastando melhorar a alocação de recursos.

A análise de Fanelli et al (1994) para a retomada do crescimento leva em consideração quatro estratégias: estabilização; reforma fiscal; setor externo e comércio; e moeda e financiamento. Com relação à estabilização, os autores criticam o consenso que se construiu em torno da idéia de que a estabilização é precondição para a adoção das reformas estruturais, pois as políticas de estabilização são incapazes de corrigir os desequilíbrios estruturais que caracterizam as economias latino-americanas. Para eles, as reformas estruturais são imprescindíveis para fechar as brechas fiscal e externa e, portanto, condicionam o processo de estabilização. A diferença aqui está na definição de estabilização. Para Fanelli et al (1994), trata-se de estabilização macroeconômica, portanto, vai além da estabilidade monetária. Já para o Consenso de Washington a estabilização monetária parece se identificar com a estabilização macroeconômica.

Contudo, Fanelli et al (1994) chamam atenção para um ponto fundamental, qual seja, o da construção de coalizões:

Os governos devem construir um consenso a favor da reforma. Atingir esses objetivos, sem o apoio e o acordo externo será quase impossível. Para reduzir a

incerteza e para sinalizar estabilidade, o fechamento da brecha externa deveria ter a

forma de um extenso acordo com governos estrangeiros, emprestadores multilaterais e bancos comerciais (Fanelli et al, 1994, p. 109 – grifo meu).

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Nota-se que, para os autores, o Estado (“governo”) tem um papel crucial neste processo. Fanelli et al (1994) sustentam que os diferentes ajustes na América Latina dependiam das características estruturais de cada país; das condições prévias à implantação do ajuste; e do acesso ao financiamento internacional128. Nesse sentido, estão bastante próximos das análises marxistas e neo-institucionalistas, nas quais esses elementos são articulados à construção de coalizões.

Para fechar a brecha fiscal, Fanelli et al (1994) propõem uma reforma do setor público que tenha por objetivo aumentar o investimento público e a poupança pública. Novamente, os autores destacam a importância do papel do Estado. Já para fechar a brecha externa, os autores apontam para um conjunto de medidas que ultrapasse a visão unicamente centrada numa estratégia de crescimento orientada para fora (que pode significar apenas o aumento das exportações) incentivada através de isenção fiscal ao setor exportador. Uma visão mais equilibrada dessa estratégia deveria buscar um acordo de longo prazo entre os países devedores e seus credores; adotar um regime cambial flexível, taxas de câmbio múltiplas e algum tipo de controle cambial; selecionar setores líderes na promoção das exportações; e aumentar as importações, não através de uma liberalização indiscriminada, mas de uma política de liberalização comercial que preserve algum tipo de proteção e mantenha a arrecadação. Em resumo, os autores defendem que o crescimento com estabilidade não será atingido se deixado unicamente aos “mecanismos de mercado”.