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CAPÍTULO 2 – INFLAÇÃO E DESINFLAÇÃO: HISTÓRIA E MARCO ANALÍTICO

2.2 Moeda, inflação, desinflação, conflito e coalizão

2.2.3 As abordagens monetarista, keynesiana e regulacionista

As duas principais teorias econômicas que se enfrentam para explicar as causas da inflação são a monetarista e a keynesiana. A abordagem regulacionista também está presente, embora sua influência seja mais circunscrita.

Para a teoria monetarista, a inflação é sempre um fenômeno monetário, ou seja, é o resultado do crescimento da oferta monetária, que, normalmente, é utilizado para financiar o déficit público. Além disso, é o pior dos males que pode acontecer em uma economia83, “um desastre mundial84”.

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Sobre os efeitos negativos da inflação a partir da perspectiva do mainstream, consultar Fischer (1986).

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Apesar da melhora no nível de vida da população mundial, “o século vinte tem sido o Século da Inflação” (Friedman, 1975, p. 155) e isto teve conseqüências danosas para a harmonia social, pois “a inflação fomenta

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Aqueles que se situam no campo monetarista afirmam que choques de oferta causam o aumento da inflação, mas, mais importante ainda, é a maneira pela qual o Estado se comporta frente a esses choques, pois é a adoção de políticas monetária e fiscal expansionistas que sanciona a inflação e a sua manutenção está relacionada ao grau de rigidez do mercado de trabalho no caso das “economias avançadas” (IMF, 1996, p. 100- 103). Já para os “mercados emergentes”, a inflação é causada pela emissão de moeda para financiar o déficit público e pela utilização de “políticas econômicas inconsistentes” (IMF, 2001, p. 117).

Segundo a perspectiva das expectativas racionais:

Empresas e trabalhadores chegaram agora a esperar altas taxas de inflação no futuro e que fazem barganhas inflacionárias à luz destas expectativas. No entanto, sustenta- se que as pessoas esperam altas taxas de inflação no futuro exatamente porque as políticas monetária e fiscal do governo, atual e em perspectiva, convalidam essas expectativas. [...] Assim, a inflação apenas parece ter uma inércia própria; é, na verdade, a política a longo prazo do governo de manter grandes déficits e criar moeda a taxas elevadas que dá impulso à taxa de inflação (Sargent, 1988, p. 46-47). Ainda no interior do campo monetarista, há uma visão que procura destacar o elemento político relacionado à inflação. Aqui, a inflação pode ser provocada pela democracia, compreendida como um processo de seleção de elites as quais, para se manterem no poder, não tomam medidas impopulares (corte nos gastos e/ou elevação da tributação) e acabam caindo na “tentação” do financiamento inflacionário. A democracia permite também que os sindicatos pressionem os governos a praticarem políticas de pleno emprego, que levam à emissão monetária excessiva (Brittan, 1978). Acrescente-se ainda o fim do padrão-ouro e o abandono da doutrina do orçamento equilibrado, que eliminaram os constrangimentos institucionais à expansão monetária. Assim, para este autor, o diagnóstico monetarista é correto, mas insuficiente, pois é preciso analisar as “forças que estão por trás das injeções excessivas de moeda no sistema econômico” (Brittan, 1978, p. 161).

A teoria keynesiana, por sua vez, permite várias interpretações. A primeira – destacada pelos manuais de Economia – aponta como a causa da inflação o aumento da demanda efetiva sem o correspondente aumento da produção. A segunda relaciona a

as dificuldades sociais [e produz] efeitos prejudiciais sobre a distribuição da renda [constituindo-se em] um elemento comum em quase todos os principais casos de sublevação política no pós-guerra” (Friedman, 1975, p. 160).

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inflação a variações no curto prazo como: o aumento do salário monetário vis-à-vis os incrementos de produtividade; os rendimentos decrescentes; e os aumentos das margens de lucro (Davidson, 1978, p. 341). A terceira destaca o conflito distributivo85 (Davidson, 1978, p. 347; Davidson, 2002, p. 254). A quarta – desenvolvida pela escola pós-keynesiana – apresenta uma interpretação original a partir de uma releitura da obra de Keynes, cujo âmago é exposto a seguir.

A economia capitalista é definida por Keynes como uma “economia monetária de produção” que visa o lucro. Ou seja, Keynes enfatiza a natureza monetária do capitalismo (a moeda importa), e ressalta que a criação e a valorização da riqueza derivam de uma atividade produtiva real. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936) tinha o objetivo de apresentar uma nova explicação do capitalismo centrada nas decisões de gasto, sobretudo o investimento dos capitalistas. Essa decisão é determinante para o nível de renda e de emprego na sociedade capitalista.

As decisões de investimento dos capitalistas não são tomadas unicamente olhando para as possibilidades futuras de valorização do seu capital no mercado em que atuam, mas levando-se em conta outras alternativas de valorização em outros mercados, como o financeiro. Além disso, a precariedade do conhecimento sobre o futuro faz com que essas decisões sejam tomadas em um ambiente de incerteza. Assim, as expectativas de renda futuras dos capitalistas são baseadas na “confiança” do seu prognóstico e na suposição de que “a situação existente dos negócios” se manterá, a não ser que haja elementos concretos para se esperar uma mudança86. Outro elemento importante, bastante subjetivo, é uma espécie de impulso do empresário que o leva a investir (animal spirit).

A incerteza quanto ao futuro pode fazer com que o capitalista prefira permanecer na posse de moeda (entesouramento), que tenha uma “preferência pela liquidez”. A taxa de juros é o preço pago ao capitalista para que ele abra mão dessa liquidez. Mas o capitalista pode também investir o seu capital em uma atividade própria a fim de alcançar uma taxa de

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Mas aqui o conflito distributivo é resultado da inflação: “Cada processo, inflação ou deflação, impôs grandes danos. Cada um produz um efeito que altera a distribuição da riqueza entre as diferentes classes, mas neste aspecto a inflação é a pior das duas. Cada um produz também o efeito de estimular exageradamente ou de retardar a produção da riqueza, e aqui a deflação é a mais nociva” (Keynes, 1971, p. 3).

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O conceito keynesiano de convenção pode muito bem ser interpretado e apropriado pelo cientista político como o conceito de instituição.

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lucro superior à taxa de juros (eficiência marginal do capital). Mas se o capitalista resolve aplicar diretamente no mercado financeiro e se a especulação se desenvolver em um determinado país, a situação se assemelhará à de um cassino. A luta contra a economia- cassino foi um dos inúmeros combates travados por Keynes.

Keynes defendia também que os setores real e monetário da economia capitalista são interdependentes. A moeda importa e não é neutra: há uma relação entre ela e o gasto, pois os capitalistas levam-na em conta quando tomam suas decisões de gasto.

Na “economia monetária de produção” o dinheiro ocupa um lugar estratégico: é “um elo entre o presente e o futuro” (Keynes, 1983a, p. 204). Mas o que é o dinheiro? É o ativo monetário criado pelo Estado ou pela comunidade e aceito por ambos. A moeda é um ativo criado e reconhecido pelo Estado, que pode ser recusado pela comunidade. Mas se a moeda for aceita, torna-se dinheiro e, portanto, desempenha as funções de unidade de conta, meio de circulação e reserva de valor87. Assim, “no mundo real – nosso mundo – incerteza, crescimento e dinheiro estão inextricavelmente relacionados” (Davidson, 1978, p. 17). Em outras palavras: “a moeda é uma garantia contra a incerteza” (Andrade, et al, 1998, p. 98).

Uma outra característica da “economia monetária de produção” é a utilização de contratos (monetários, a prazo) para organizar a atividade econômica. A abordagem keynesiana concede grande importância aos contratos e, em razão disso, destaca outras duas funções do dinheiro: seu poder liberatório (capacidade de quitar as dívidas) e sua capacidade de possibilitar os pagamentos diferidos (ao longo do tempo).

Em resumo, o Estado ou a comunidade podem estabelecer, pela lei ou pelo costume, o que será aceito para liquidar as obrigações contratuais. Entretanto, somente o Estado tem a autoridade para legalmente determinar e declarar (ou até mudar) o nome daquilo que será

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Keynes (1983a) dá grande importância para a função reserva de valor, pois como o futuro é incerto, a moeda é um ativo, como qualquer outro, para reter a riqueza, mas é o que apresenta maior liquidez.

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aceito para por fim às obrigações contratais (Keynes, 1979, p. 4)88. A moeda criada pelo Estado tem o seu curso forçado, e seu pagamento é garantido por lei89.

Portanto, há uma intensa relação entre contratos, instituições90, dinheiro e tempo91. Assim,

Quando o futuro não confirma o presente, o dinheiro que servia de mero veículo para a valorização do estoque de riqueza e liquidação dos contratos pelo valor antecipado – por intermédio da produção e da venda de mercadorias – torna-se um objeto perturbador. As crises monetárias podem ser interpretadas sempre como crises motivadas pela ruptura da avaliação da riqueza sob um dado padrão monetário. Ou podem ainda ser vistas como decorrentes da incapacidade do Estado de impor limites à acumulação monetária privada ou de regular os critérios de avaliação de riqueza dos centros privados da decisão (Belluzzo & Almeida, 2002, p. 88-89).

Em suma, ao mesmo tempo em que Keynes afirma que “o futuro é incerto”, o que leva as decisões empresariais a serem tomadas com base nas expectativas, no estado de confiança, na convenção e no animal spirit, constata-se que a produção se dispersa ao longo do tempo. Por conseguinte, é necessário algum mecanismo que faça a ligação entre o passado e o futuro; os pós-keynesianos destacam o papel dos contratos e da moeda92.

O desenvolvimento desse sistema de contratos entre agentes privados e o funcionamento da “economia monetária de produção” dependem da estabilidade monetária, pois “a inflação corrói esse sistema, a alta inflação o transforma, a hiperinflação o destrói” (Carvalho, 1992, p. 207).

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Sobre Estado e soberania monetária, consultar: Dodd (1997, p. 67-88); Gilbert & Helleiner (1999); e Kelsey (2003).

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“Por esta razão a história da moeda começa com Solon, o primeiro estadista que a história registra ter usado a força da lei” com este objetivo (Keynes, 1982, p. 226).

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Os economistas preferem a expressão “institucionalidade”. Chama-se, novamente, atenção para a proximidade entre a abordagem (pós-)keynesiana e neo-institucional.

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“A existência de incerteza e o reconhecimento humano que a economia está se movendo de um passado irrevogável para um futuro incerto levou a humanidade ao desenvolvimento de certas instituições e das regras do jogo, como: (i) moeda, (ii) contratos monetários e um sistema legal de cumprimento das leis, (iii) taxas de salário nominal rígidas [sticky money-wage rates], e (iv) mercados à vista e a futuro” (Davidson, 1978, p. 360). Além disso, os pós-keynesianos dão grande importância ao desenho institucional do mercado financeiro e do mercado monetário.

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“[É] o sistema de contratos em moeda que serve para estabelecer entre os agentes os elos necessários à sua interação material [...]. Contratos em moeda, em suma, conectam os agentes entre si no tempo, criando perfis de obrigações que organizam e refletem os fluxos materiais necessários à operação da economia” (Carvalho, 1992, p. 207-209).

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O objetivo da abordagem pós-keynesiana é de buscar na obra de Keynes elementos para explicar a presença “sistêmica” da inflação após a Segunda Guerra Mundial. A intervenção do Estado na economia – políticas de pleno emprego e de sustentação da demanda agregada – fortaleceu os trabalhadores, mas sobretudo os capitalistas, especialmente o capital financeiro93. “O enfrentamento dos grupos sociais encontr[ou] sua solução na inflação” (Carvalho, 1992, p. 213).

Já para os regulacionistas, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se uma “regulação monopolista ou administrada” caracterizada pelo maior peso do trabalho, pela concentração de capital e pela existência de crédito de longo prazo, cujo resultado foi o surgimento de uma inflação de custo (Benassy et al, 1979)94.

Outro grupo de regulacionistas bastante influenciado pelas perspectivas sociológica (a luta pela repartição da riqueza) e keynesiana entende que a moeda exerce “o papel fundador da coesão social” (Aglietta & Orléan, 1990, p. 13). De fato, Aglietta & Orléan (1990) afirmam que a moeda é “um princípio de soberania”, isto é, “define uma lógica específica das relações sociais, particularmente da dominação, de efeitos desiguais [... e ...] representa um procedimento social coercitivo que regula, freqüentemente, de forma violenta, o trabalho dos produtores privados” (Aglietta & Orléan, 1990, p. 17); e também é ambivalente: “a mesma relação social, a soberania, assume, simultaneamente, a forma resplandecente da instância normalizadora da instituição monetária, unanimemente reconhecida, e a forma obscura da riqueza, da temível e vã promessa de auto-suficiência que obceca os indivíduos das sociedades modernas” (Aglietta & Orléan, 1990, p. 15)95.

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“[O] poder de reação de firmas a pressões inflacionárias é sempre superior ao dos trabalhadores. Estes estabelecem suas demandas a partir de suas expectativas de preços. Já para as firmas, os salários acordados são um dado a partir do qual sua política de preços é estabelecida [...]. Em uma economia aberta, o setor financeiro tem condições de reagir mais rapidamente a variações nas expectativas da inflação quanto menores os prazos para os quais os recursos financeiros forem contratados” (Carvalho, 1992, p. 215).

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Seria possível apenas a consecução simultânea de duas das três variáveis seguintes: pleno emprego, sindicatos fortes e estabilidade de preços (Flamant, 1990, p. 62).

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“A moeda e a confiança nela são fenômenos coletivos, sociais. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção, dos pagamentos, depende do grau de confiança na preservação da forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente. A reprodução da sociedade fundada no enriquecimento privado depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores independentes. [...] [Se] o processo de socialização dos proprietários privados é visto como o resultado da institucionalização de uma rivalidade

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