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Capítulo II: Acção da Direcção dos Estudos Menores e da Real Mesa Censória

3.4. Acesso à instrução em Portugal e no Brasil

Até à implementação das reformas dos estudos menores por Sebastião de Carvalho e Melo, a educação nas primeiras letras não era encarada muito a sério tanto pela Igreja como pela Coroa, muito embora fosse condição sine qua non para que um indivíduo ingressasse no ensino médio. Assim, aprender Gramática Latina pressupunha que o aprendente detivesse já um bom conhecimento linguístico do idioma luso. Existiam, não obstante, aulas ministradas nos colégios de ler, escrever e contar, ainda que em número bastante inferior se compararmos com as restantes disciplinas aí leccionadas. Por outro lado, os próprios mosteiros e conventos proporcionavam, não raro, um ensino dos rudimentos da língua materna. Por fim, não esqueçamos a existência de mestres que, a título particular, se encarregavam da educação daqueles cujas famílias podiam garantir o pagamento de um preceptor, além de que as próprias mães poderiam facultar essa aprendizagem mais elementar, com base inclusivamente em cartilhas-catecismos.

Não sendo uma prerrogativa no plano da formação académica de um indivíduo, o espaço físico consagrado a tais lições nem sempre era o mais desejável, restando-nos diversos testemunhos de várias épocas. No século XVI, por exemplo, as aulas de ler e escrever junto dos ameríndios aldeados decorriam em instalações «polivalentes», podendo ser, a um tempo, cantina, hospício, residência, escola e igreja, daí podendo advir todo o género de interferências no decorrer das actividades lectivas, prejudicando substancialmente a concentração dos alunos e a gestão da aula por parte do mestre. Era ainda frequente que estas aulas decorressem no alpendre da igreja ou em outros espaços improvisados para o efeito. Tal facto prender-se-ia ainda com a frequência com que as mesmas eram leccionadas, sendo que, por falta de recursos humanos, muitas vezes se cingia a uma vez por semana, não existindo portanto a necessidade de ter um espaço inteiramente reservado para o efeito.

Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, nos meios urbanos onde existisse colégio, as aulas de ler e escrever podiam ser ministradas no pátio do mesmo, contando por vezes com centenas de alunos por turma. “Em 1722, conta o P.e António Franco que «as escolas de ler e escrever ficam à porta do pátio (da Universidade), da parte de fora, à

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mão direita de quem entra»”313. Embora Banha de Andrade aluda aqui ao caso de Évora, o mesmo assevera que o mesmo sucedia em Coimbra.

No caso do Brasil, sabemos, em grande parte graças à epistolografia jesuíta, que antes mesmo de se terminar a construção de um colégio, ainda nos primeiros tempos da instalação dos jesuítas numa dada localidade, começava-se desde logo por ensinar a doutrina cristã, assim como a ler, escrever e contar. Podemos avançar que a rede escolar implementada pela Companhia de Jesus, assente na edificação de colégios, garantia ainda o acesso à educação na língua e na doutrina mesmo em meios rurais. Cada colégio seria, de certo modo, um pólo difusor de meios de acção missionária e educativa, verdadeiras «direcções regionais de educação» ou «sedes de agrupamento escolar» - claro está, com as devidas aspas e com manifestas diferenças face ao que hoje conhecemos por tais designações.

Os governantes não se achavam sós. Além dos conselhos que os amparavam, e que em certos momentos até poderiam condicionar medidas legislativas a serem aprovadas, não raro buscaram o parecer da massa intelectual da sua confiança. O mesmo sucedeu com as reformas que Sebastião de Carvalho e Melo procurou implementar nas escolas do Reino e suas partes ultramarinas. Muito se ficou a dever ao labor de intelectuais lusos que colheram inspiração noutros espaços europeus, empenhados em trazer uma nova percepção da educação mediante as (novas) necessidades dos tempos modernos. É justo, portanto, afirmar que “[...] son los ilustrados quienes elaboran el diseño teórico de ese proceso, la teoría que se necesitaba para la acción política deseada por todo el Tercer Estado”314

.

Reconhece-se que vários intelectuais do seu tempo influenciaram de forma particularmente óbvia as políticas reformistas de Pombal, nomeadamente Ribeiro Sanches e Verney315. Quanto a este último, importa destacar que era particularmente próximo da Congregação do Oratório, dado que um dos seus irmãos professara nessa ordem, além do próprio Verney ter feito os seus estudos no Colégio dos Oratorianos da Rua Nova do Almada. Gozara igualmente de formação jesuíta, tendo cursado no

313

ANDRADE, A. A. Banha de, A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários no Brasil, São Paulo, Universidade de São Paulo / Saraiva, 1978, p. 3.

314

RODRÍGUEZ, Herminio Barreiro et BAÑUELOS, Aída Terrón, op. cit., p. 47.

315

Cf. ainda Verney e a cultura do seu tempo, de Banha de Andrade, O Marquês de Pombal, por Veríssimo Serrão, e “Pombalismo e projecto político”, in História e Filosofia, vol. II, 1983, pp. 185-318.

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Colégio de Santo Antão e na Universidade de Évora. Publicado em 1746, o Verdadeiro Método de Estudar abarcava toda uma série de temas, parecendo-nos relevante a 1ª carta, que respeita em concreto à Língua Portuguesa, e a 16ª, onde alude, entre outros aspectos, aos estudos elementares.

Se atendermos às Instruções para os Professores, publicadas a 28 de Junho de 1759, os princípios orientadores para o ensino da Ortografia eram precisamente os de Verney. Defende ainda Banha de Andrade que as Instruções são da autoria de oratorianos da Casa de Nossa Senhora das Necessidades e do P.e José Caetano de Mesquista.

Até que ponto seria útil ao Estado e ao progresso do Reino a instrução do povo? Ribeiro Sanches, nas suas Cartas sobre a educação da mocidade (1760), defendia a existência de mestres de primeiras letras nos povoados acima de duzentos fogos, com vista a serem instruídos os filhos dos grandes lavradores. Quanto à «plebe», interessaria muito mais que se aperfeiçoasse no domínio das artes e ofícios, bastando-lhes aprender, junto do pároco da aldeia, a doutrina cristã. Defendia, portanto, um ensino elitista, contrariamente à posição assumida por Diderot e Verney - que, além disso, considerava igualmente indispensável uma educação que não fosse exclusiva do sexo masculino.

Sanches não era uma voz isolada. Com efeito, e como recorda Adolfo Coelho, Voltaire e Louis-René de la Chalotais, este último contrário à intervenção dos jesuítas no plano pedagógico, evidenciaram precisamente o mesmo:

“O bem da sociedade exige que os conhecimentos do povo não se estendam mais longe que as suas ocupações. Os irmãos da doutrina cristã (aliás das escolas cristãs) que chamam «ignorantinos», aparecem para acabar de deitar tudo a perder: ensinam a ler e escrever gente que nunca deveria aprender senão a desenhar e a manejar a plaina e a lima, mas que não querem fazê-lo. São os rivais ou sucessores dos jesuítas.”316

De qualquer modo, parece-nos evidente a influência da obra de Ribeiro Sanches nas medidas pombalinas, pelo menos no que se refere ao modo como passa a ser encarada a figura do professor, mesmo no ensino elementar:

“O Mestre que ensina a ler e a escrever, he hum cargo publico, não de tão pouca consequencia para a Republica como vulgarmente se considera: ordinariamente são empregados neste ministerio homens ignorantes, muitas vezes com vicios notorios, que escandalizão. Para exercitar este oficio basta hũa informação de vita & moribus, e com

316

CHALOTAIS, Louis René, Essai d’éducation nationale (Du Plan d’études pour la jeunesse), p. 25 [segundo citação do autor], apud COELHO, F. Adolfo, Para a história da instrução popular: seguido dos artigos «Portugal», «Colónias Portuguesas» e «Ensino do Grego», Lisboa, Gulbenkian, 1973, p. 141.

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ella alcança do Bispo a permissão de ensinar; algas vezes ouvi que se requerem as inquiziçoens de sangue para o mesmo emprego.”317

Datado de 1760, o seu ensaio acabou por reproduzir o estado em que se encontrava a instrução, numa altura em que poucos meses haviam passado sobre a reforma dos estudos menores em Portugal. O processo de angariação de professores, aqui retratado, coincide efectivamente com o que se processou durante largo tempo. Mais adiante, aos exames a que os candidatos eram sujeitos, propondo se deveria processar:

“Este Mestre para ser admitido a ter escola publica, tendo as qualidades e requisitos referidos, devia fazer petição ao Director dos Estudos e das Escolas da Provincia para ser examinado: e no exame havia de constar:

1.º Que sabia a Lingua Latina, e a Materna, com propriedade; 2.º Que sabia bem escrever;

[...]

Constando pelo exame proposto, que satisfizesse ao que se pretendia delle, o Director lhe passaria provisão para exercitar o emprego de Mestre de Escola, com obrigação de alcançar outra do Bispo, por cuja ordem seria examinado no Cathecismo da Religião Christaã: e munido com estas duas provisoens se presentaria, no lugar adonde havia de ensinar, ao Delegado do Direitor dos Estudos e Escolas, para exercitar o seu cargo.”318 Não estranhemos semelhante observação. Muito embora se houvesse já criado a Direcção Geral dos Estudos, sabemos que, inicialmente, para que se fizesse face às necessidades mais imediatas, o processo de admissão dos professores concretizou-se sem recurso a uma avaliação dos seus conhecimentos. De qualquer modo, a exigência era bem menor face a quem pretendesse ministrar as primeiras letras. Com a expulsão dos jesuítas, o retrocesso é imenso, pois não se implementara desde logo um organismo que conseguisse, na prática, tutelar todas as questões relativas à administração dos estudos – para mais com um raio de acção tão amplo:

“Nem as Camaras das Villas, nem das Cidades, nem as Justiças Reais, tem mando ou inspecção nestas Escolas; e com razão, porque não tem nenhum sallario publico; o proveito destes Mestres he tão tenue que a penas os tira fora do estado da miseria.”319

Se tivermos em consideração certas designações dadas pelo autor, apercebemo- nos que, embora parecesse acompanhar de perto a situação educativa em Portugal, não estaria inteiramente a par de tudo: em vez de Director Geral dos Estudos Menores, alude

317

SANCHES, Ribeiro, Cartas sobre a educação da mocidade, [1760], [ed. rev. por Maximiano de Lemos], Coimbra, Imp. da Universidade, 1922, pp. 115-116.

318

Idem, ibidem., pp. 117-118.

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ao «Director dos Estudos e Escolas»; alude a «Mestre de Escola», uma designação habitual sobretudo em território germano e não português; refere-se às «Direçoens» ao invés de Instruções. Quando se refere a estas últimas, dá a entender que, muito embora acompanhassem desde logo o alvará de 28 de Junho de 1759, na verdade os mestres não as teriam em seu poder.

“Seria necessario que estivessem compostas e impressas as Direçoens, às quais cada Mestre de Escola se devia conformar no seu emprego: e na visita que se devia fazer hũa ou duas vezes por anno nestas Escolas pelos Delegados dos lugares, onde estavão estabelecidas, se tomaria conta se o Mestre satisfazia as dittas instrucçoens.”320

Se atendermos ao exposto no Directório dos Índios, verificamos que se institui a criação de duas escolas públicas em cada antiga aldeia missionada. Como é óbvio, tal não aconteceu em todos os povoados ameríndios, até porque, com a expulsão dos jesuítas, muitos indígenas tornaram à selva, temendo os desmandos dos brancos. Dali por diante, o ensino junto dos índios deixava de agrupar ambos os sexos nas aulas, passando a existir inclusivamente diferenças em termos de conteúdos curriculares: se os rapazes aprenderiam a ler, escrever e contar, já às raparigas furtava-se a área da matemática, acrescentando-se o saber fiar e fazer renda, sendo contudo comum a ambos o ensino da doutrina cristã. Constitui disso prova os testemunhos físicos destes seus dotes patentes no Arquivo Histórico Ultramarino. Com efeito, por tais documentos atesta-se que em 1760 existiam efectivamente diversas escolas de ler, escrever e contar em Pernambuco, mais concretamente nas Vilas de Soure, Estremoz, Mercejana (ou Merceana), Arez, Montemor, Vila Viçosa, e Arrondes321.

Acrescia ainda o problema da circulação dos livros didácticos no Brasil. Com a ausência de uma tipografia naquela colónia, exigia-se o envio das obras a partir do Reino. Além de todas as despesas relativas à sua impressão, encadernação e envio, uma vez na colónia, colocava-se a dificuldade da sua venda, passando muitas vezes os livros de mão em mão, vendendo os estudantes os seus cartapácios322 a preços reduzidos ou concorrendo ainda os livreiros com alguns desvios desta tão preciosa e ambicionada mercadoria.

320

Idem, ibidem, p. 118.

321

AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod. 1823. ROLO 230. A este respeito, conviria averiguar com mais detalhe até que ponto se respeitara nas diversas capitanias estas disposições.

322

AINCM, Carta de António José Brandão a Bernardo Agostinho de Mesquita. Pernambuco, 3 de Junho de 1764. AINCM , Directoria Geral dos Estudos, cx. 4.

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Tanto quanto nos foi dado a entender pelo confronto com as fontes documentais da época, terá certamente existido uma grande circulação de práticas, propostas, planos e projectos com vista a uma reforma da educação. As ideias são comuns, a sua adaptação poderá divergir um pouco, mas tudo de facto corresponde ao espírito da época, enraizado no espírito das Luzes.

Nesta medida, e notando o avanço de Portugal em relação aos restantes Estados Europeus, no que respeita à sua implementação, observamos que essa dianteira não chega a ser de cinco anos, por exemplo, no que respeita à França. Esta poderá, é certo, ter beneficiado da experimentação entretanto iniciada no reino luso, mas não o avanço suficiente para se perceber as fragilidades das reformas intentadas.

O ódio, ou ao menos a suspeição face aos Jesuítas era algo que vinha adquirindo dimensões cada vez mais difíceis de contornar. Detentores de um monopólio educativo à escala global, também em termos económicos detinham destacado poder, além da sua estratégica influência junto de várias cortes. Acresce ainda o facto de, pedagogicamente, os seus colégios apostarem numa metodologia e em conteúdos programáticos que já não serviam aos tempos modernos, na medida em que, para o «bem das Nações», e na génese do desenvolvimento industrial, importa antes a formação técnica do indivíduo. Por outro lado, assistindo-se à desvalorização do latim enquanto língua de cultura em favor das línguas ditas «vulgares» - sobressaindo o francês - e apostando-se num ensino mais prático, as línguas nacionais conquistam uma crescente importância nos currículos. Neste ponto, a contestação dos colégios jesuítas era algo já bastante generalizado. Com a tensão existente face às missões do Paraguai, com os jesuítas portugueses a incorrerem em crime de lesa-majestade, com os sucessivos incumprimentos das ordens régias e os desacatos com a administração local das capitanias do Brasil, a tentativa de assassinato de D. José I foi a gota de água, daí resultando a expulsão em 1759. Ora, com a sua expulsão, uma das questões a que urgia uma resposta imediata era precisamente a educação. Não que a mudança não houvesse sido preconizada décadas antes, com Verney e Ribeiro Sanches. Foi precisamente nos seus projectos – entre outros, à escala europeia - que Sebastião de Carvalho e Melo se terá apoiado para, logo em 1759, emitir uma série de providências com vista à implementação de um sistema de ensino estatal.

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Notámos ainda, pelo confronto com alguns autores contemporâneos deste ministro português, que as medidas implementadas, assim como os projectos e planos redigidos muito se assemelham. Não poderemos olvidar, para além da circulação do livro e da discussão de ideias nas Academias entretanto criadas, a presença de embaixadores ou ministros portugueses nas cortes europeias e vice-versa, o que certamente proporcionou um acesso privilegiado a autores e seus escritos, assim como às medidas governativas que se procuravam implementar.

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