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Capítulo II: Acção da Direcção dos Estudos Menores e da Real Mesa Censória

2.1. O investimento do Estado Moderno

Para Maquiavel, a «fortuna» dos governantes residia na aprovação de novas leis e na criação de instituições, facto que constituiria um dos principais lemas da teoria política da Modernidade. Encontrara-se uma nova chave para “glória dos governantes e a grandeza do Estado”88

, em alternativa às guerras. A administração vinha sofrendo várias mudanças, mercê da expansão das potências europeias rumo a novos quadrantes, da autoridade da Igreja católica colocada em causa, tanto nos seus princípios como ao nível do Saber, do florescimento económico numa lógica capitalista, do impulso da cultura escrita pela criação da Imprensa. Para que se restabelecesse a ordem e a disciplina social, o Estado recorria ao reforço da sua autoridade, com funções alargadas, “necessário para permitir aos cidadãos o exercício dos direitos e liberdades”89

. António Barbas Homem destaca ainda a presença de uma «ética das virtudes» na construção jurídica do Estado. Ao passo que os valores se assumiam como “ideais ou objectivos óptimos a prosseguir”, já as virtudes – justiça, prudência, temperança, fortaleza (cardeais), fé, esperança e caridade (teologais) - “são consideradas essenciais para a

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Cita-se M. D. Moreira de Azevedo, “A instrução pública nos tempos coloniais do Brasil,” in Revista do IHGB, V. 55, 2ª p., 1892, p. 141.

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Nas palavras deste autor novecentista existe uma clara intenção de mergulhar os tempos do Brasil- Colónia numas trevas semelhantes a um pretenso obscurantismo «medieval»., importando, pois, usar de algum cuidado na descrição dos factos por ele referidos.

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HOMEM, António Pedro Barbas, O Espírito das Instituições: um estudo de História do Estado, Coimbra, Almedina, 2006, p. 35.

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69 acção humana em favor do bem comum”90

. Sem elas, a decadência moral e a corrupção condenariam os Povos à ruína. Em termos genéricos,

“Este Absolutismo Real originó necesariamente la centralización del Estado, dando lugar a la organización de un conjunto múltiple de organismos y al reclutamiento de una amplia burocracia, formando oficiales que servían en la Administración Pública.”91 Em França, por exemplo, a centralização operada proporcionou uma vigilância e um contacto mais efectivo face aos poderes locais, o que, logicamente, veio a originar alguma contestação:

“Particulièrement efficaces, en correspondance directe avec les ministres, aidés de subdélégués et de nombreaux commis (les bureaux de l’Intendance), seuls à avoir une vue générale des choses, dotés de stabilité [...], ces technocrates modernes représentent la monarchie centralisatrice omnipotente qui va lentement et sûrement tuer les libertés locales. “92

Como veremos mais adiante, a administração escolar do Estado socorreu-se, em Portugal, de uma rede de comissários subdelegados com os quais se mantinha uma correspondência bastante regular. Também na instrução se verificou o alargamento das funções do Estado a áreas que até então eram do domínio privado - neste caso, de autoridades eclesiásticas, sobretudo por parte de ordens regulares, com particular destaque para a Companhia de Jesus. Ainda que se considere o início do século XIX como o período em que se assiste à génese de um sistema educativo nacional, por intervenção do Estado liberal, não poderemos contudo negar que no século anterior se ensaiara em alguns países europeus, e sob o auspício das Luzes, a institucionalização da educação. Foi precisamente a partir de meados do século XVIII que o Estado se impôs no domínio da cultura, chamando a si a regulação do ensino elementar, médio e superior, reformando os estudos, fundando instituições de cultura – e censura.

A escola, «instituição disciplinadora», modeladora dos costumes, da ética, era essencial para a formação e edificação não apenas do comum cidadão, mas do «funcionário moderno», o qual se via agora sujeito a todo um conjunto de “regras de

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Idem, ibidem, p. 39.

91

PEREZ-BUSTAMANTE, Rogelio, Historia de las Instituciones Publicas de España, Madrid, Universidad Complutense, 1995, p. 139. Não se alude, contudo, a um organismo público regulador da educação no Antigo Regime em Espanha.

92

SZRAMKIEWICZ, Romuald et BOUINEAU, Jacques, Histoire des Instituitions (1750-1914), Paris, Litec, 4ª ed., 1998, p. 40.

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etiqueta e de cortesia, de disciplina e de direito penal, pela imposição de horários e de hábitos de trabalho”93

– pelo menos em teoria.

Em termos de mecanismos de organização da educação, poderíamos recuar ainda mais no tempo e observar as estratégias utilizadas pelo clero secular e regular - nomeadamente o funcionamento da rede de colégios dos jesuítas – logo a partir do século XVI. Porém, como observa Luzuriaga, se pretendemos referir-nos a uma “intervención sistemática y continuada” por parte das autoridades públicas encarregues da tutela da educação, tal facto só será observável nos alvores da época moderna94. Importará, ainda, distinguir dois conceitos que, embora traduzam realidades relativamente equivalentes, têm uma carga histórica diferenciada: educação pública e sistema educativo. Ao passo que a primeira expressão surge logo no início da modernidade pré-ilustrada, já a segunda acepção transmite “una realidad político- pedagógica más estructurada, mejor conformada y tanto pública como privada”95.

Não se julgue, porém, que tais conceitos tenham surgido apenas na modernidade. Barreiro recorda que já Platão destacara o contributo da educação para o bom funcionamento do estado, afigurando-se em A República o esboço de “un modelo de inserción del sistema educativo en la estructura del Estado”, a que não fora alheio, séculos volvidos, Rousseau, encarando esta obra como um dos melhores tratados de educação que jamais se havia feito96. Defende o autor que, ao passo que as origens teóricas da educação pública remontavam à Antiguidade Clássica, já as origens institucionais, por seu turno, encontravam-se patentes nas práticas escolares medievais, tendo por «superestrutura dominante» não o Estado, mas a Igreja97. Baseando-se em Luzuriaga, adianta que é na Idade Média que a educação pública adquire contornos mais definidos, organizando-se mais solidamente.

Quanto a este aspecto, importa ter alguma cautela e não generalizar os factos. A existência de escolas paroquiais, em mosteiros e o funcionamento de aulas nas igrejas

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HOMEM, António Pedro Barbas, op.cit., p. 75.

94

LUZURIAGA, Lorenzo, Historia de la Educación Pública, Losada, Buenos Aires, 4.ª ed., 1964.

95

RODRÍGUEZ, Herminio Barreiro et BAÑUELOS, Aída Terrón, La institución escolar: una creación del estado moderno, [col. Recursos, n.º 71], Barcelona, OCTAEDRO-FIES, 2005, p. 16.

96

Idem, ibídem, p. 19.

97

Cf. DURKHEIM, Émile, Historia de la educación y de las doctrinas pedagógicas, La Piqueta, Madrid, 1982, pp. 56-59.

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além de se pautar por um ensino pouco estruturado, sem planos de estudo definidos, não estavam ainda ao alcance de todos. Nos séculos XIV e XV, por exemplo, recorria-se muito mais a mestres privados, os quais se achavam sobretudo em núcleos populacionais de maior expressão económica e demográfica. Apesar de leccionarem por iniciativa própria, não deixavam, contudo, de estar sujeitos ao supervisionamento da Igreja e dos concelhos municipais. Ainda no século XVIII, o mundo rural permanecia na sua maioria analfabeto. Nem mesmo os jesuítas, com a criação de colégios e oferecendo um ensino gratuito, haviam conseguido fazer face a todas as solicitações, tanto em Portugal como nas colónias ultramarinas portuguesas. De facto, a tónica colocara-se, durante largos séculos, numa formação média e superior, veiculada em colégios e em universidades, tanto mais quando eram trajectos obrigatórios para quem enveredasse pela vida sacerdotal ou pelo mundo da justiça e da administração (quadros superiores). Existiam, é certo, missões jesuítas em meio rural, no interior do Reino, cuja acção se revestia mais de um carácter catequético e assistencial do que verdadeiramente propiciador do letramento dessas populações98.

A génese da educação pública religiosa de carácter mais sistematizado surgiu, na verdade, por iniciativa protestante e reformista na Europa central - com particular relevância pela aposta feita na educação popular, ainda que de âmbito municipal e local, e não tanto estatal - que veio a impulsionar a Igreja Católica para a questão da literacia, com evidente relação face à criação da Companhia de Jesus. Na Didáctica Magna, Coménio apresentara um programa de «educação universal». Um programa utópico, é certo, mas que era encarado pelo autor como a base do progresso e do bom funcionamento das sociedades modernas, tanto mais quando propunha a facilitação dos métodos e das aprendizagens, agilizando-se assim a formação dos indivíduos. Tratou-se de uma clara resposta face às novas exigências do capitalismo de então.

Mas existe um outro facto a que não poderemos deixar de atender. Em território português, assistia-se a uma maior aposta na educação sobretudo em períodos de desenvolvimento económico e de paz. O fomento do próprio ensino além-mar apresentou-se como uma notória estratégia de poder, na medida em que o ensino da língua se oferecia como um poderoso instrumento geopolítico, veiculando uma cultura portuguesa de matriz cristã.

98

Cf. o extraordinário trabalho de PALOMO, Federico, Fazer dos Campos Escolas Excelentes: os jesuítas de Évora e as missões do interior em Portugal (1551-1630), Lisboa, Gulbenkian, 2003.

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Ainda assim, curiosamente, é no seio de certas ordens religiosas, sobretudo das que apostam de modo mais concreto na educação, que nos deparamos diante de modelos que irão influenciar o Estado Moderno na organização e controlo do sistema de ensino. No caso dos mosteiros beneditinos do Brasil, existia um Director Geral dos Estudos, eleito por três anos e escolhido por entre os professores graduados (de preferência) pela Universidade de Coimbra. A sua função não era dar aulas, mas unicamente “zelar pelo bom andamento e progresso dos estudos, em todos os mosteiros, segundo o Plano estabelecido na Congregação”99

. Findo o ano lectivo, competia ao Director dos Estudos fazer chegar ao Abade Geral uma relação dos alunos e dos resultados dos exames, não deixando de referir aqueles que se haviam destacado nas suas aprendizagens. No final do triénio, era ainda incumbido de apresentar novo relatório, desta vez dirigido ao Capítulo Geral, dando conta das resoluções tomadas no colégio da sua residência alusivas ao adiantamento dos estudos, além de juntar outros relatórios de «directores particulares» de outros colégios.

Valeria a pena averiguar se tal facto teria surgido no seio desta Ordem apenas no final do século XVIII, ou se teria antecipado a criação da Directoria Geral dos Estudos por Pombal, introduzindo conceitos e procedimentos. Mas as semelhanças não ficam por aqui. Observemos ainda aspectos relativos à formação e selecção de mestres no seio desta Ordem. Os monges que pretendessem ser professores, tinham de entrar em concurso e prestar provas públicas, dando mostras das suas capacidades: falamos das Oposições. Assim, deviam “expor o tratado que lhe houvesse caído por sorte, mostrar-se senhor da matéria a que se destinava ensinar e provar que sabia explicá-la com método, clareza e precisão”100

. Passada a prova oral, onde depois da explanação dos conteúdos eram sujeitos a um questionário, tinham ainda de se submeter a uma prova escrita. Só os que fossem aprovados por maioria de votos tinham direito a receber a patente de professor por parte do Abade Geral. À semelhança do que viria a suceder nos concursos para professores ao tempo de Pombal, também aqui nos deparamos com a categoria de «professor substituto».

99

LUNA, D. Joaquim G. de, O.S.B., Os Monges Beneditinos no Brasil – esboço histórico, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Christi, 1947, p. 65.

100

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Em que sentido deveremos, pois, considerar o contributo das Luzes? Barreiro encara as propostas iluministas como as origens textuais dos sistemas educativos, propostas essas que pretendiam dar resposta à crise do Absolutismo, sobretudo no plano ideológico. De que modo? Apelando a uma necessária mudança da educação. A formação escolar deveria veicular um «saber fazer» - uma prática técnica, como refere Barreiro – e um «saber ser» ou um saber estar em sociedade – a educação encarada como prática social, como mecanismo civilizante/ edificante. É nesta lógica que se compreende, nomeadamente, a política de Pombal na civilização dos ameríndios do Brasil. Não se tratava ainda da génese da educação para todos, ainda que se tenha assistido a uma maior abertura do ensino. Tanto mais quando os cofres do Estado – referimo-nos ao caso da Coroa portuguesa - a partir de então encarregue dos destinos da educação, se viu obrigado a instituir o Subsídio Literário, espécie de propina que os pais deveriam pagar, o que constituiu uma importante fonte de receitas que iria garantir – em parte – o provimento de professores e mestres régios.

Quando o Estado passou a controlar o sistema educativo, sentia-se de facto a necessidade de criar um sistema unificado, reduzindo drasticamente o número de interferências nos comandos da educação – sobretudo das que advinham do clero regular. Como tal, o próprio ensino de iniciativa privada passa a estar cada vez mais limitado, devendo também ele submeter-se aos desígnios do Estado. No caso das reformas «pombalinas», passou a exigir-se – embora na prática se tenham registado vários incumprimentos desta imposição - uma licença, a qual seria atribuída após avaliação académica e moral dos candidatos a mestres, como veremos mais adiante.

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