• Nenhum resultado encontrado

Acesso à justiça e à ordem jurídica justa

2.3 DAS GARANTIAS PROCESSUAIS DO CIDADÃO

2.3.1 Acesso à justiça e à ordem jurídica justa

A efetividade do processo se realiza também pelo pleno acesso à justiça, à ordem jurídica justa, ao direito ao processo sem dilações indevidas, à produção da prova e à razoável duração do processo, entre outros institutos jurídicos, todos pensados racionalmente para dotar a sociedade de meios adequados à solução dos conflitos de interesses de forma civilizada. Contudo, são igualmente necessárias políticas públicas do próprio judiciário que comprometam a sociedade e a ele mesmo a tornar o acesso à justiça uma realidade para toda a coletividade, sem exclusão alguma, e, como conseqüência natural à tutela jurisdicional a ser obtida a partir do processo, de forma justa, útil e efetiva.

Luciana Moralles150 sustenta que o conceito de acesso à justiça evoluiu à medida que o Estado ganhou novos contornos, demonstrando tal fato em duas perspectivas, por meio das quais a ciência processual travou novas relações com o instituto em referência. Uma é representada pela visão técnica de mero acesso ao

149

Boaventura de Souza Santos, em artigo intitulado “Integração Pluralista”, publicado na Folha de São Paulo de 13 de nov. de 2005, no espaço “Tendência e Debates”, discorrendo sobre a questão racial nos EUA, afirma que os recentes problemas na França e em Birgmingham também raciais por conta de questões de emigração chamam atenção para o fato de que as desigualdades econômicas quando se cruzam com discriminações ético-raciais fazem os conflitos sociais se tornarem potencialmente muito perigosos. Por isso o Estado necessita atuar preventivamente e enfrentar na raiz os preconceitos étnicos, raciais e religiosos, adotando políticas de integração pluralista consistente em: “políticas ativas de emprego e de educação articuladas com discriminação positiva ou ação afirmativa; educação intercultural profunda; promoção da diversidade identitária e cultura no espaço público (e não apenas no espaço privado) como veículo de intermediação com o sistema político nacional – parlamentos que reflitam a diversidade cultural e étnica – e local, por meio da participação em conselhos sociais municipais e instâncias de democracia participativa; políticas sociais universalistas (renda básica, habitação social etc.) que evitem a concentração de minorias (por vezes maiorias) em guetos; política de nacionalidade – são nacionais europeus os filhos dos emigrantes nascidos na Europa – que fortaleça, pela diversidade, as identidades nacionais ou a identidade européia. Por exemplo, quando é que a cachupa caboverdiana e a feijoada brasileira serão também pratos portugueses?”. Ver: SANTOS, Boaventura de Souza. “Integração Pluralista.” In: FOLHA DE SÃO PAULO. Tendência e Debates. São Paulo, 13 de nov. de 2005.

150

Judiciário, sendo o direito de ação (CF, art. 5°, XXXV) o seu mais fiel retrato e mais adequado ao Estado liberal. A outra, mais complexa e condizente com o nosso tempo, diz respeito ao acesso à ordem jurídica justa ou, melhor, ao acesso a uma ordem de valores e direitos catalogados pela sociedade como integrantes de um ideal de realização de justiça social e plena igualdade de oportunidades, na sociedade e no processo, mais próxima da realidade e em harmonia com a idéia de Estado social.

Neste mesmo sentido, Cappelletti e Garth, em estudo que se tornou mundialmente conhecido, intitulado “Acesso à Justiça”, ao tratarem da evolução do conceito teórico do termo explicam que nos séculos XVIII e XIX, nos Estados liberais onde prevaleciam procedimentos essencialmente individualistas, seu significado correspondia ao direito de propor ou responder a uma demanda.151 A concepção existente à época era de que estes direitos não necessitavam de uma proteção do Estado; embora fossem eles direitos naturais que pré-existiam ao Estado, a preservação deles exigia deste uma conduta passiva, isto é, deveria garantir apenas e tão somente que não fosse permitida sua violação. Não havia nenhuma preocupação. A justiça só poderia ser alcançada por quem tivesse condições para arcar seus custos. O bem maior da igualdade era meramente formal e, por conseguinte, o acesso à justiça também.

Com o crescimento da idéia do coletivo sobre o individual, o Estado passou a mudar, bem como o estudo da ciência processual, conforme sustentam os autores anteriormente mencionados. Também o modelo de Estado que surgiu após a II Guerra Mundial retratou a apreensão com os direitos sociais quando o Estado ganhou nova feição, preocupando-se em cuidar, velar e garantir esses direitos considerados fundamentais.

Este breve relato se presta apenas a demonstrar que está tudo intimamente ligado: o direito à igualdade; o acesso à ordem jurídica justa; o direito à decisão judicial por Tribunal competente e imparcial, que deve ser fundamentada e observar o princípio da bilateralidade do processo; e a razoável duração do processo; entre outros. São, pois, partes do catálogo de direitos e garantias fundamentais que não comportam mais retorno por serem o patamar mínimo de civilização que a sociedade pode aceitar, cabendo ao Estado promover e assegurar todos esses direitos e garantias, sempre com os olhos postos na “cláusula transformadora” (CF, art. 3°).

151

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

Por tais razões, Cappelletti e Garth põem em relevo que o “acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar, os direitos de todos”.152

Entre os diversos autores que volveram seus estudos e se propuseram a formular um conceito de ordem jurídica justa, muitos são os que se destacam nesta missão. Dinamarco153, após ressaltar que é condição sine qua que as partes sejam tratadas com igualdade e possam participar do processo, não se omitindo também o magistrado dessa participação por ser o principal responsável à sua condução e adequado julgamento, esclarece que “só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça”.154 Receber justiça, diz ele, significa obter um resultado em conformidade com os valores da sociedade.

Bedaque, por sua vez, assevera que todos têm direito à jurisdição e ao processo, destacando que não se trata de qualquer processo porque a Constituição assegura os princípios e as garantias essenciais que regem o método utilizado pela jurisdição e consagra o modelo processual. Em conseqüência, o acesso à ordem jurídica justa se traduz em proporcionar a todos o direito não apenas de postular a tutela jurisdicional, mas também de obter o devido processo constitucional em conformidade com as garantias fundamentais que o tornam “équo, correto, giusto”. Essas garantias, afirma esse processualista, são de meio e de resultado, ou seja, são um resultado útil e eficaz para quem precisa da tutela estatal.

Já Marinoni155 conceitua o acesso à ordem jurídica justa de forma singular, pois põe em relevo não só a imparcialidade da justiça e a garantia de que as partes devem ter participação e tratamento iguais, mas também que o acesso à informação, à orientação jurídica e aos meios alternativos à solução de composição do conflito integram o catálogo de acesso à ordem jurídica justa.

152

Ibidem. p.9-13.

153

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I. São Paulo: Malheiros, 2005(a). p.134.

154

Radbruch põe a realização da justiça material na trilogia justiça, eficácia e segurança, sem que, todavia, isso venha a significar que tenha ocorrido a perda da igualdade axiológica entre os três elementos. RADBRUCH, Gustav. Op. cit., 1962.

155

MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p.11-12.

Considerando-se as supracitadas acepções dos referidos autores, pode-se afirmar que, de uma maneira geral, a profunda desigualdade social em nosso país é um forte obstáculo à realização do acesso à justiça e evidencia que o princípio da igualdade deve observar a teoria de Leibholz quanto ao seu caráter unitário.

Nesse sentido, vale destacar o debate acerca de uma jurisprudência multicultural travado no Continente Europeu, em face do respeito à igualdade dos costumes e da multiplicidade de etnias que hoje habitam e convivem nos seus mais diversos países, que, por si só, já representam uma diversidade própria. Em entrevista concedida ao jornalista Ricardo Rizzo156, o Professor Canotilho, respondendo sobre a possibilidade de uma Constituição européia num cenário marcado pela diversidade cultural, étnica e religiosa, deixou claro que há dois planos a considerar: um próprio à existência de um Estado europeu; e outro adequado à resposta dirigida à indagação que formula, consistente em dizer como uma comunidade inclusiva, que integra o outro, pode e deve defender-se “de uma hiperinclusividade destruidora, ou seja, de minorias étnicas e religiosas que pode destruir a própria comunidade”. A partir daí, além dos exemplos da França, relativos às moças com véus em salas de aula e às questões com relativa similaridade na Holanda, diz o Professor Canotilho que recentemente leu no Der Spiegel157 que um turco atacou um médico alemão porque este fez o toque ginecológico em sua mulher.

156

A entrevista se encontrada no site www.artnet.com.br (Gramsci e o Brasil).

157

“Quanto às questões que me pôs, da Holanda e da França, deveremos ter em consideração o discurso de uma jurisprudência multicultural. Ora bem, o problema é este: eu penso que o que se decidiu na França, em Portugal seria tendencialmente inconstitucional. Eu não tenho problema em ter uma aula cheia de moças com véus, de freiras, de frades, desde que as pessoas se comportem de forma a ser possível a aula, daí que penso que a França pode ter problemas específicos, em razão do número de mulçumanos que vivem na França, como a Alemanha tem problemas imensos com o número de turcos, mas as questões debatem-se talvez de forma diferente. O problema subjacente é um pouco este: como é que uma comunidade inclusiva, que integra o outro, pode e deve defender-se de uma hiperinclusividade destruidora, ou seja, de minorias étnicas e religiosas que podem destruir a própria comunidade. Eu tenho um exemplo a acrescentar a este da Holanda e da França, que li no De Spiegel, há poucos dias: um turco que atacou um médico alemão porque este fez um toque ginecológico em sua mulher. O problema é este, é que não podemos fazer hospitais separados, não podemos ter mulheres (médicas) só para mulheres e homens (médicos) só para homens, e há que resolver problemas complicados como esse. Não é apenas a questão de os Estados quererem expulsar minorias de seus territórios, é o problema que eu lhe frisei da convivência difícil de uma certa identidade cultural e comunitária com minorias que devem ser respeitadas, não excluídas ou assimiladas forçosamente, respeitadas na sua identidade, mas de forma a não aniquilar possibilidades, inclusive da comunidade que os abraça. Esse é o problema fundamental.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Entrevista concedida ao jornalista Ricardo Rizzo. Disponível em: http://www.artnet.com.br.

Ou seja, estas questões estão mais ligadas às políticas públicas, porém também mantêm estreita relação com o Direito e com o Estado, tanto que são objeto de preocupações, investigações e reflexões de um constitucionalista. São próprias de uma sociedade que olha seus problemas hoje, de modo que o respeito aos valores construídos ao longo do processo histórico sejam respeitados, mas também com base neles mesmos sejam enfrentadas e resolvidas novas demandas sociais.

Neste cenário, a realização do acesso à justiça já observa uma lógica diferente, mais preventiva e menos reparatória, em que o teórico do Direito participa ativamente da sua produção. Por isso mesmo a questão do desenvolvimento também é debatida, lembrando Canotilho que na Revolução de 25 de abril de 1974 já se dizia em Portugal que o movimento tinha três “d’s”: democratizar, descolonizar e desenvolver.

Independentemente da visão adotada quanto ao acesso à justiça, não se pode deixar de levar em consideração o modelo de Estado, a realidade social e política do país e o modelo econômico e de desenvolvimento adotado, uma vez que ou nós enfrentamos o nosso principal problema, que é a desigualdade excludente, ou permaneceremos debatendo por que essa ou aquela reforma não surtiu o efeito esperado.