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Independência judicial e legitimidade democrática do

2.3 DAS GARANTIAS PROCESSUAIS DO CIDADÃO

2.3.3 Independência judicial e legitimidade democrática do

A independência judicial é um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, mas, obviamente, por si só não o configura, assim como o Estado de Direito por si só não se caracteriza como democrático, já que precisa da legitimidade. Assim, a decisão judicial, só por ser independente, sem legitimidade não goza de respeito e aceitação pela sociedade.

Nos tempos que se passam, os Tribunais Superiores estão longe de representar para a sociedade brasileira a referência que devem ter como intérpretes da lei federal e da Constituição. Isso quer dizer que ainda não exercem a função que lhes foi arrogada pela sociedade ao legitimar o legislador na elaboração das normas que definiram suas respectivas atribuições, sendo mais que presente a existência de um vácuo em todos os setores da sociedade que não possuem o direito de saber o que pensam as Cortes sobre matérias de amplo interesse nacional. Portanto, convém repetir e salientar que têm os Tribunais Superiores e o Supremo, respectivamente, o papel de interpretar a legislação federal e a Constituição, bem como de uniformizar a jurisprudência nacional, ao passo que o povo tem o direito de obter informação acerca dessa interpretação e ver a Constituição realizada.

Deve-se observar, ainda, que o supracitado vácuo compromete a ordem democrática e os direitos e garantias do cidadão, na medida em que a jurisprudência oscila, sem qualquer justificativa, como se fosse retrato de uma questão aritmética consistente na eventual composição do dia e a Corte não tivesse a obrigação de prestar contas à sociedade, não apenas porque deve se preocupar com sua legitimidade democrática, mas também porque presta um serviço166 – essa é a razão de todos os poderes existentes em uma democracia – à coletividade.

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“A atribuição à justiça do conceito de serviço público é ambígua e pode conduzir a leituras de sinal diferente. A primeira, dominante na Europa continental, porém a mais redutora, enquadra a Justiça no conceito global da Administração: os tribunais são geridos pela Administração e o corpo de magistrados e funcionários a eles adstritos são tidos como uma categoria especial do funcionalismo público. A diferença especifica reside no facto destes órgãos (os tribunais) serem dotados de independência decisória. Todos os demais poderes de gestão estão centralizados na Administração Pública que condiciona a vida prática dos tribunais. Os tribunais são, nesta concepção, um serviço público porque a administração se constitui na base da idéia de serviço público. Porém, uma segunda leitura da Justiça como serviço público, melhor definindo o seu papel na post-modernidade, liberta-a da subordinação administrativa e atribui-lhe um significado político preciso: colocando-a no centro da atividade ministerial do Estado. A sua legitimidade reside precisamente no facto de ser um serviço de e para os cidadãos. O serviço público, em democracia, plasma-se transversalmente por todos os órgãos e poderes do Estado. Todo poder é serviço (é ministério).

Reside neste particular a exigência de fundamentação de uma decisão judicial que, em qualquer situação, deve se ater ao respeito dos direitos e das garantias do processo que constam no catálogo dos Direitos e Garantias Fundamentais de que o Constituinte de 1988 cuidou nos diversos incisos do art. 5° da Constituição.

O princípio da bilateralidade do processo é uma garantia fundamental e a legitimidade democrática de uma decisão, qualquer que seja a instância, deve dizer por que aceitou a prova apresentada por uma parte em detrimento daquela da outra parte, ou por que interpreta a lei ou a Constituição dessa ou daquela maneira. Não pode, em qualquer circunstância, dizer o direito sem que, ao fundamentar suas razões de decidir, demonstre por que rejeita a tese de um, mas acolhe a tese do outro.167 Portanto, a sentença ou acórdão que decide por uma só via pode até ser aparentemente fundamentada, mas quando vista em conjunto com as exigências do texto constitucional, consistentes nas garantias dos direitos fundamentais que assegura, entre outros direitos, evidencia-se que a fundamentação carece de legitimidade democrática.

Esta associação que no pós-guerra o Estado estabeleceu com o Direito, buscando na exigência de legitimidade um elemento que assegurasse um vínculo com os valores da democracia, não se presta apenas aos poderes executivo e legislativo, pois

E só é legítimo enquanto serviço. A qualidade de serviço público da Justiça, não é diferente, nesta concepção, da do Governo ou do Parlamento. O poder judicial é serviço porque é essa a ratio da sua existência como da de todos os poderes em democracia. Por isso nenhuma relação de supremacia do conceito de poder face ao de serviço pode ser estabelecida. Dizer que a Justiça é um serviço é verdade como é verdade sê-lo o poder Executivo e o poder Legislativo. Todos são serviços da ‘Polis’.” AFONSO, Orlando Viegas Martins. Poder Judicial – Independência in Dependência. Coimbra: Almedina, 2004. p.46.

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Na conferência proferida em 11 de maio de 1991, sob o título “A Formação do Convencimento do Magistrado e a Garantia Constitucional da Fundamental das Decisões”, em Simpósio de Direito Civil e Direito Processual Civil promovido pelo Instituto de Estudos Jurídicos, no Hotel Glória, Rio de Janeiro, J. J. Calmon de Passos abordou a matéria. Em determinado momento da sua exposição afirmou: “[...] Chegando a esse ponto, eu vou, rapidamente, dizer a vocês o que é que me parece ser uma fundamentação constitucionalmente aceitável de uma decisão. O juiz, em primeiro lugar, é aquele que não sabe nada dos fatos, e que, por isso mesmo, devem as partes – e o próprio juiz tem uma parcela de poder para se tornar conhecedor dos fatos, produzir a prova, a instrução probatória. E o juiz, também, na sua decisão, tem que dizer que fatos ele considera como atendíveis para embasar sua decisão. Muito bem, diz o Código de Processo que o juiz forma livremente seu conhecimento. O que é que o código está dizendo e o que é a única coisa que se pode compreender? É o que o juiz tem que indicar na sua decisão o fato que ele tem por verdadeiro e fundamentar porque esse fato ele tem por verdadeiro, referindo as provas que estão nos autos e que embasam o seu convencimento. Mas se ele parar por aí, é juiz que vai decidir sem legitimidade, porque a bilateralidade do processo, que é a garantia do devido processo legal, impõe ao juiz que ele diga, explicitamente, porque a versão contrária, da parte adversária, é repelida. Sentença que na sua motivação não torna explicito porque determinado fato é aceito pelo juiz, com base em determinadas provas, e porque as provas contrárias a essas provas que ele acolheu foram por ele repelidas, é sentença sem legitimidade [...].” PASSOS, J. J. Calmon de. “A Formação do Convencimento do Magistrado e a Garantia Constitucional da Fundamentação das Decisões.” In: TUBENCHLAK, James; BUSTAMANTE, Ricardo Silva. Livro de Estudos Jurídicos. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos Limitada, 1991. p.11-12.

ambos sofrem, além do crivo do controle de constitucionalidade exercido pelo poder judiciário, um controle maior exercido pelo povo que renova ou não os mandatos populares.

Se o judiciário não passa pelo controle popular por meio do sufrágio universal é porque a própria sociedade entende, por alguma razão, não ser conveniente. Mas também não lhe concede uma carta de alforria, na medida em que a Constituição o põe em igualdade com os demais poderes que precisam da legitimidade democrática como fundamento essencial à sua existência nos moldes estabelecidos pelo próprio povo ao pactuar na Constituição um modelo de Estado.

Então, dizer o direito sem uma fundamentação que observe o princípio da bilateralidade do processo é decidir sem legitimidade democrática. A independência judicial, neste cenário, ganha contornos adequados porque repousa em uma garantia da sociedade, e não do judiciário. A garantia da sociedade, assim, assegura que o serviço judiciário vai ser prestado tal qual a Constituição determina. A decisão adotada sem tal garantia não respeita o princípio da igualdade, pois sempre fica a indagação da razão pela qual acolheu a prova ou a tese de uma parte, mas não acolheu a da outra.

Assim, é interessante notar que a lógica do executivo e do legislativo tem amparo na idéia de maioria, sob a qual repousa até mesmo a governabilidade. Desse modo, a idéia que predomina no Judiciário é a de respeito à ordem jurídica, especialmente porque lhe cabe a nobre missão de velar pelos direitos e pelas garantias fundamentais, pertençam eles a uma maioria ou a uma minoria.

A conseqüência primeira é a de que o judiciário só age quando provocado; logo, é condição sine qua que o povo o provoque para que ele possa agir. A fonte de sua legitimidade tem início com a ação do povo, como também a ação do voto põe ritmo à ação do executivo e do legislativo. Todos respondem a essa ação, a essa provocação, com a observância aos termos pactuados na Constituição.

Por isso a observância à Constituição é um dever que iguala todos os poderes, sendo certo que cabe ao Judiciário o dever de fundamentar a decisão, que traz ínsita também a obrigatoriedade de, ao fazê-lo, render as devidas homenagens aos princípios constitucionais do processo, sem os quais a decisão carece de legitimidade democrática;

por isso disse o constituinte que ela é nula.168 A independência dos juízes, portanto, é fundamental como garantia da imparcialidade, que, por sua vez, é a fonte sob a qual as partes terão igualdade de tratamento.

Isso significa, ainda, que a independência judicial assegura aos cidadãos uma justiça não subordinada a razões de Estado ou a interesses políticos e/ou econômicos, até porque o norte perseguido pela magistratura deve ser a realização da justiça que promova a dignidade da pessoa humana inspirada na idéia da “clausula transformadora”, abrigada no art. 3º da Constituição.

Convém sublinhar também que essa garantia de independência e imparcialidade não se traduz em neutralidade, até porque o juiz deve velar pela igualdade das partes, o que o compromete em realizar essa igualdade a favor do mais fraco na relação processual, que quase sempre é o economicamente débil.169 Ou melhor, o processo civil moderno convoca o magistrado a não ser um mero espectador do duelo privado das partes. No exercício da jurisdição, cabe ao magistrado dirigir o processo com efetiva participação na busca da verdade e na fiel observância ao procedimento, almejando sempre a justa composição da lide.

Para que os magistrados exerçam plenamente essa imparcialidade, essencial ao Estado de Direito Democrático, foram criados institutos que visam impedir eventuais incursões do arbítrio. Vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos170 são verdadeiros antídotos aos excessos que podem surgir como

168 “A Constituição Federal estabelece os princípios a serem observados pelo legislador e pelo juiz. O

primeiro, na elaboração da regra processual; o segundo, na condução e direção do processo. O devido processo legal regulado pelo Código de Processo Civil e por leis extravagantes deve observar o modelo previsto na Constituição, ao qual podemos denominar ‘devido processo constitucional’. Contraditório, ampla defesa, juiz natural, motivação das decisões, publicidade dos atos processuais, vedação de provas ilícitas, são regras maiores, de nível constitucional, cuja observância é imposta ao legislador ordinário. Também o juiz deve velar para que o procedimento se desenvolva em conformidade com tais postulados.” BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p.481.

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“Por outro lado, imparcialidade não se confunde com passividade e neutralidade absoluta. Observando uma situação de extrema desigualdade entre as partes litigantes, deve o julgador intervir no sentido de propiciar o tratamento paritário. Partes hipossuficientes, sem condições de contratar bons profissionais para a defesa de seus interesses, devem ter seus direitos tutelados mediante a participação efetiva do julgador. Dele se espera um conhecimento do contexto social em que atua.” LUCON, Paulo Henrique dos Santos. “Garantia do Tratamento paritário das partes.” In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Op. cit. p.110.

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“Portanto, em sua sentença, o juiz não pode deixar-se determinar de cima; que realmente não o faça querem assegurar as ‘garantias da independência judicial’, agora também alicerçadas na Constituição do Reich: nomeação vitalícia, salário fixo cobrável através de ação judicial, e inamovibilidade. Portanto, cuidou-se para que o juiz não se deixe levar a sentenças contrarias à sua convicção por medo de admoestações severas; garantias para que não se deixe influenciar por expectativas de carreira e progresso, não existem as legais, só as morais.” RADBRUCH, Gustav. Op. cit., 1999(a). p.127.

instrumentos de pressão do poder político de plantão, ou mesmo em ardilosa articulação com o poder econômico. A eles soma-se, ainda, a garantia de autonomia administrativa e financeira conferida ao Judiciário.

Com esse arcabouço e interpretando a Constituição em seu conjunto harmonioso, pode-se afirmar que a limitação ao arbítrio ou autoritarismo do juiz ou tribunal é assegurada pelas regras da publicidade dos julgados e pela obrigatoriedade de fundamentação das decisões, que, em todas as hipóteses, devem observar os direitos e as garantias fundamentais da pessoa humana, em especial aqueles atinentes ao devido processo constitucional.

Também representa uma das garantias fundamentais da pessoa humana o direito de ser processado e julgado por um tribunal previamente criado pelo ordenamento jurídico, com competência para dirimir a querela, já que o juiz natural é, acima de tudo, um juiz imparcial. O contrário disso significa violação às garantias constitucionais do processo, intolerável afronta aos direitos e às garantias fundamentais da pessoa humana e, portanto, transgressão ao princípio da igualdade, sob o qual repousa o Estado Democrático de Direito.

Entre os incontáveis casos que poderiam prestar de lição histórica há um que ficou mundialmente conhecido: o chamado Caso Dreyfus. A mídia francesa, a pretexto de exercer livremente o direito de comunicação e informação, construiu uma campanha robusta cujo objetivo maior era influir decisivamente na condução do processo. Alfred Dreyfus, capitão do Estado Maior do Exército Francês, foi acusado de fornecer informações confidenciais ao adido militar alemão na França. A prova apresentada parecia irretorquível: testemunhos de generais do exército noticiavam indícios de culpabilidade do Capitão Dreyfus, associados a exame grafotécnico que comprovava ser sua a grafia existente na lista em que estavam as informações.

Decorridos doze anos do julgamento que condenou o Capitão Dreyfus, realizou-se um novo julgamento. Embora ainda fosse nítida a pressão, o clima já não era o mesmo e o Capitão foi inocentando, ficando comprovado que provas foram fraudadas. O verdadeiro culpado terminou por admitir a autoria do crime em uma carta, e o adido militar alemão inocentou Dreyfus quando escreveu suas memórias.

Mesmo já decorrido mais de um século, o debate sobre a influência da mídia nos julgamentos mantém-se extremamente atual, sobretudo porque existe um verdadeiro tabu que não permite discutir até onde vai o direito à liberdade de imprensa quando ela representa ameaça ou violação aos direitos e às garantias da pessoa humana.

Portanto, nota-se que a discussão acerca da independência judicial e da legitimidade democrática das decisões do magistrado não pode deixar de considerar as garantias inerentes ao Estado Democrático de Direito, como um mínimo ético construído pela sociedade em favor de um projeto de civilização.