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DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADE À IGUALDADE

A idéia de igualdade de oportunidade aparece como uma junção de duas propostas: a liberal e a social. Não se desconhece a realidade social, e, assim, as desigualdades econômicas, políticas e culturais, entre outras, são vistas e consideradas. O inverso seria como negar a própria capacidade do homem de fazer cultura, de transformar seu espaço e de ser transformado, em uma constante e promissora evolução histórica.

A origem dessa desigualdade é a liberdade que permite aos mais fortes se sobreporem aos menos favorecidos, daí a razão pela qual a intervenção estatal pode se dar em uma maior ou menor amplitude, mas sua necessidade é ponto comum entre a proposta social e a idéia de igualdade de oportunidades. Em outras palavras, as chamadas forças do mercado, sob a ótica do Estado Social, não podem atuar livremente. O Estado passa, então, a intervir nas relações sociais visando promover o bem comum e a paz social, a partir de políticas que objetivam assegurar a todos a igualdade de oportunidades e o acesso aos bens produzidos pela sociedade em seu momento histórico. Noutras ocasiões o Estado intervém na autonomia privada para assegurar às partes a igualdade em sua relação ou para minorar a desigualdade existente.

Em decorrência destas políticas sociais, afirmativas ou compensatórias, o Estado Social sofre questionamentos acerca de sua constitucionalidade, uma vez que a

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igualdade é o princípio que a justifica, ou não, como uma expressão do princípio maior de justiça.85 Isto quer dizer que, em qualquer situação – na elaboração da lei ou em sua aplicação –, para que a igualdade seja reconhecida como baliza é fundamental a existência de um termo de comparação, pois assim é possível investigar se há interdição do arbítrio e exigência de justiça, bem como razoável justificativa decorrente da natureza das coisas. Portanto, o termo de comparação é o motivo ou fato de que decorre a necessidade de se promover a equiparação diante de outras situações consideradas iguais ou não.

Nessa investigação existem dois momentos distintos e interdependentes. Um quando se fixam os fatos ou as hipóteses que se têm como parâmetro a se considerarem iguais ou não. E outro quando se estabelece um juízo de valor de modo a se perquirir se existe, ou não, um consenso social que esteja direcionado à adoção de medidas que corrijam a situação ou o fato objeto da análise e considerado passível de correção. Estes momentos são distintos e interdependentes, já que há uma interseção entre eles que consiste na promoção da cidadania e da paz social por meio da realização da justiça.

Quando o Estado estabelece em sua Constituição uma política fiscal e classifica os tributos observando determinados princípios, entre eles o da igualdade, objetiva gerar uma política solidária e compensatória em que aqueles que mais possuem são convocados a contribuir de acordo com suas possibilidades, estabelecendo o mesmo critério de posses em relação àqueles que são menos aquinhoados. Admitir-se o contrário seria legitimar a imparcialidade do Estado ou, melhor, seu pronunciamento por ato omissivo, o que consagraria e oficializaria as desigualdades existentes no âmbito da sociedade.

Aliás, os liberais, ao sustentarem a idéia de que o Estado deve participar ou intervir o quanto menos na vida social, demonstram que querem a participação e a intervenção do Estado para sancionar, homologar e chancelar as desigualdades, permitindo-lhes ampla liberdade para que possam, sob a proteção da lei, explorar os mais fracos e promover a desigualdade. Ou seja, a posição do Estado sobre a

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Geraldo Ataliba sustenta que a lei é instrumento de isonomia e que existe uma relação entre legalidade e igualdade, porque a primeira assegura a segunda. ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. Atualizada por Rosolea Miranda Folgosi. São Paulo: Malheiros, 2004. p.159.

desigualdade é a de catalisador do aumento do fosso existente entre os desiguais86, concedendo aos fortes a ampla e irrestrita proteção da lei.

Nesse sentido, merecem especial atenção as idéias de Rawls, sobretudo as apresentadas em sua obra “Uma teoria de justiça”. A igualdade democrática é, para Rawls, o critério sob o qual se assenta uma sociedade justa. Contudo, esta noção de igualdade não guarda nenhuma identidade com a natural ou com a liberal. É uma teoria que justifica o direito social87 acentuando sua racionalidade para afirmar que a cooperação de todos é o principal sentido do contrato social e representa o princípio de uma sociedade bem estruturada, plural, tolerante e sob o comando da igualdade de direitos. Entretanto, tais critérios de justiça não são rígidos, perfeitos ou acabados, já que, quando muito, representam a conseqüência de um contrato social possível e intersubjetivo capaz de promover uma conciliação entre os interesses individuais e os coletivos.

É na idéia de um consenso por coincidência parcial situado em uma dimensão política da democracia constitucional que Rawls sustenta o que é justo. Então, existe uma unidade social que é a base da sua idéia de justiça e que resulta no princípio segundo o qual o bem-estar de cada um deve ser resultado de um acordo entre todos e beneficiar o conjunto da sociedade.

Por sua vez, o princípio da diferença esposado por Rawls – acreditando que à igualdade democrática se chega a partir da combinação do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades com o princípio da diferença – estabelece que as desigualdades econômicas e sociais só devem ser mantidas se garantirem maiores benefícios aos menos aquinhoados. Institui, ainda, que em outra hipótese os valores sociais da liberdade, da oportunidade, da riqueza e do rendimento, assim como as bases sociais da auto-estima, devem ser igualmente entregues aos cidadãos, salvo quando uma

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Discorrendo sobre o “Princípio da igualdade e igualdade de oportunidades”, esclarece Canotilho: “Esta igualdade conexiona-se, por um lado com uma política de ‘justiça social’ e com a concretização das imposições constitucionais tendentes à efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais [...]. Por outro, ela é inerente à própria idéia de igual dignidade social (e de igual dignidade da pessoa humana) consagrada no artigo 13°/2 que, deste modo, funciona não apenas como fundamento antropológico- axiológico contra discriminações, objetivas ou subjetivas, mas também como princípio jurídico- constitucional impositivo de compensação de desigualdade de oportunidades e como princípio sancionador da violação da igualdade por comportamentos omissivos (inconstitucionalidade por omissão).” CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992. p.579.

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“Nosso interesse é unicamente a estrutura básica da sociedade e suas principais instituições, e portanto os casos-padrão de justiça social.” RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.61.

distribuição desigual de um, de parte ou de todos esses valores signifique vantagens para todos.88

Goyard-Fabre89, analisando o pensamento de Rawls sobre a igualdade democrática, com singular clareza, sustenta que a própria idéia de justiça não permite que se tenha o homem como meio “com vistas ao bem alheio”. Em conseqüência, Goyard-Fabre faz uma importante reflexão ao claramente defender a total impossibilidade de se sacrificarem os direitos individuais para que sejam maximizadas vantagens econômicas e sociais em favor da coletividade:

Os direitos fundamentais – isto é, as liberdades “formais” tais como a liberdade política, a liberdade de consciência, a proteção contra a arbitrariedade, que são direitos individuais – não podem ser minimizados para que as vantagens sociais e econômicas sejam maximizadas.90

Ou seja, Goyard-Fabre afirma que Rawls não se inclina, com isto, para o individualismo liberal, uma vez que seu pensamento encontra esteio em um modelo de contrato social em que ele justifica os dois princípios de justiça por meio dos quais a distribuição das riquezas deve considerar as diferenças entre os indivíduos, mas sem sacrificar a igualdade de oportunidades. Eis, portanto, por que a igualdade democrática não tem qualquer identidade com a igualdade natural, tampouco com a liberal.

A teoria de Rawls sobre justiça contém premissas de solidariedade e fraternidade. Por isso, pode-se considerar que, ao falar em uma sociedade bem ordenada, Rawls vislumbrava uma base jusnaturalista e, ao debater a questão da tolerância, trazia ínsita uma forte ética religiosa.

Contudo, faz-se necessário, ainda, reconhecer que o princípio da igualdade de oportunidade por si só não é suficiente para resolver as questões provocadas pela desigualdade, tampouco para fazer com que, dentro de um sistema econômico

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“Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos.” Ibidem. p.66. E “As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de modo a serem ao mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos favorecidos e (b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades”. Ibidem. p.88.

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GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da Ordem Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.311.

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capitalista, todas as pessoas tenham acesso a condições razoáveis de crescer pelo próprio esforço e, com isso, obter resultados que promovam sua cidadania e dignidade social.