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O CARÁTER EMANCIPATÓRIO DOS DIREITOS HUMANOS

A base da formulação vigente dos direitos humanos tem sua origem no século das luzes, razão pela qual é perceptível o reflexo das condições econômicas e sociais da época. Todavia, vem de longe a matriz filosófica dos direitos humanos, da dignidade, da igualdade, da fraternidade humana e da cidadania comum na sociedade universal.

Estabelecidas estas premissas como válidas, tem-se também que a Declaração Universal recebeu influência de outras correntes de pensamento, tanto que a concepção dos direitos econômicos, sociais e culturais atesta que foi além do pensamento ocidental, marcado pelo individualismo voluntarista acrescido a um direito de propriedade e mercantil sem qualquer limite, razões mais que comprovadas da acumulação capitalista dos séculos XVIII e XIV e cujas conseqüências a história, a

literatura e as artes descrevem como uma longa agonia marcada pela opressão e pelo alargamento das fronteiras por meio da expansão do colonialismo.

Em tempos mais recentes, mais especificamente no período que se convencionou chamar de “guerra fria”, os direitos humanos tiveram marcante presença na agenda política como um dos instrumentos legitimadores de uma ordem em detrimento da outra.

Em verdade, ainda que à época a leitura dos direitos humanos não tivesse o horizonte dos dias atuais, o que se apresentava como dissonante não era a defesa dos direitos humanos, mas o fato de se ter feito vistas grossas às ditaduras existentes nos Continentes americano, africano, asiático e no chamado mundo árabe quando não representavam ameaça aos interesses dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos da América. Essa aparente antinomia até hoje gera reflexos negativos e, se analisada sob uma perspectiva de compreensão do fenômeno, evidencia a incoerência do discurso, o que não se traduz em diminuição do compromisso axiológico e dinâmico que o tema encerra.

De fato, v.g., o universalismo dos direitos humanos contrasta com violações em todos os quatro cantos do Planeta, mas isso não o desqualifica, ao contrário, o legitima a enfrentar e vencer esse enorme desafio. Justamente neste contexto os direitos humanos merecem uma reflexão mais profunda, uma vez que eles se manifestam em duas vertentes. Uma que legitima o cidadão diante do poder ou, melhor, os direitos humanos como instrumento de protesto, de reivindicação, cidadania e emancipação do homem. E outra em que se manifesta a busca da solidariedade, do respeito entre todos os membros da família humana e, como não dizer, de um horizonte distante, mas que permite caminhar em busca de uma fraternidade universal.

A premissa da universalidade dos direitos humanos repousa na igualdade em dignidade e no valor de todos os membros da família humana, sem qualquer discriminação. Por tais motivos os direitos humanos são também indivisíveis. Quando se têm estas bases como compreensão da dimensão dos direitos humanos é impossível encontrar justificativas que operem em direção a um presumível conflito entre o universalismo versus relativismo cultural.

Em verdade, a cultura como manifestação de uma sociedade representa o melhor retrato do seu momento histórico. Nenhuma outra sociedade pode intervir para alterar essa paisagem, já que os direitos humanos sempre se manifestam para enfrentar o arbítrio e a opressão dos poderosos. Trata-se de uma idéia que atravessa a história e que não se presta a outro objetivo senão construir a solidariedade, a fraternidade e a igualdade entre os homens.

Dessa forma, o diálogo entre as culturas é a manifestação pela qual as civilizações interagem, com vistas a promover o desenvolvimento do saber humano, sob a proteção do princípio da igualdade e inspiradas nos valores da solidariedade e da fraternidade.

Boaventura de Sousa Santos256 propõe uma leitura dos direitos humanos com o viés emancipatório e sugere um diálogo intercultural sobre preocupações convergentes a partir de uma hermenêutica diatópica – esta pressupõe a aceitação do que denomina de “imperativo transcultural”, ou seja, o direito que temos “a ser iguais quando a diferença nos inferioriza” e o direito que temos “ a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” –, no intuito de se alcançar um multiculturalismo progressista, que, por sua vez, pressupõe que o princípio da igualdade seja utilizado em conjunto com o princípio do reconhecimento da diferença.

Na forma como têm sido predominantemente concebidos, os direitos humanos são um localismo globalizado, uma espécie de esperanto que dificilmente poderá se tornar a linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões culturais do globo. Compete à hermenêutica diatópica proposta neste capítulo transformá-los em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. É este o projeto de uma concepção multicultural dos direitos humanos. Nos tempos que correm, este projeto pode parecer mais do que nunca utópico. Certamente é tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria.257

256

SANTOS, Boaventura de Sousa. “Por uma Concepção Multicultural de direitos humanos.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para Libertar – Os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.429-458.

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Portanto, os direitos humanos possuem uma dinâmica própria que, como se constatou, atravessa a história e atormenta os poderosos e opressores do povo ao se apresentar como a alma do projeto de civilização, que se perpetua em sua dimensão para lembrar ao ser humano que futuramente quando se perguntar “por que os sinos dobram” se possa dizer “para celebrar a paz e a fraternidade universal”, como resultado de uma sociedade que aprendeu a exercitar a tolerância e a promover a diversidade.

IV – A IGUALDADE NA APLICAÇÃO DA LEI

No século XVII surge o direito racional moderno como forma de reflexão de um sistema de Estados que, após as guerras de religião, apóia-se em fundamentos de legitimação neutros quanto à visão de mundo. O direito racional analisa a constelação conceitual de direito e poder com a intenção crítica de tornar explícito o conteúdo racional igualitário, presente desde a origem na formação jurídica do Estado e poder político. [...] O mérito do trabalho de reconstrução do direito racional reside na demonstração de que o poder político, devido ao seu estabelecimento nos moldes da lei, contém a semente conceitual para uma regulamentação jurídica do poder do Estado “irracional”, i.e. desregradamente decisionista.

A interpretação do direito positivo e do poder político não visa pura e simplesmente uma dominação legal, mas a uma dominação constituída através da democracia e do estado de direito. O terminus ad quem da legalização política da dominação é a constituição que uma comunidade de cidadãos livres e iguais se concede.258