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3.4 INTERNACIONALIZAÇÃO E JUSTICIONALIZAÇÃO

3.5.3 Sistema interamericano

A história do Continente americano denuncia o horror das guerras empreendidas pelo colonizador, que dizimou populações indígenas inteiras, saqueou suas riquezas – a prata e ouro preponderantemente – e trouxe doenças e epidemias, deixando como herança uma sociedade escravocrata, tão bem retratada por Gilberto Freire em “Casa Grande e Senzala”, e, especificamente no caso do Brasil, uma elite cuja mentalidade ainda pertence ao colonizador.

As desigualdades sociais sempre fizeram emergir movimentos de libertação, que, no entanto, foram imediatamente reprimidos pelos “donos do poder”, sacrificando- se a democracia. As sociedades ainda hoje sofrem com essa estranha realidade.

O Estado nos países latino-americanos, sobretudo, só se fez presente na vida das populações mais carentes para reprimir e impor rígidos Códigos de conduta. Com elevados índices de desigualdade, exclusão social e um histórico de interrupções sucessivas do processo democrático, a região também tem demonstrado uma alta tolerância à impunidade e à violência.

Para muitos, o maior desafio dos latino-americanos é consolidar o regime democrático, de forma que se respeitem os direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Entretanto, sabe-se que para se vencer tal desafio a presença do Estado deve ser marcada por clara e inequívoca opção pelo desenvolvimento econômico voltado à inclusão social, ao respeito à natureza e ao aproveitamento das riquezas naturais, com alto investimento em pesquisa científica à procura de alternativas energéticas, a fim de se estabelecer uma nova relação de poder Norte/Sul e, assim, consagrar a independência regional em sua plenitude. Por tais

características é que a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, ao conjugar de maneira indissociável democracia, direitos humanos e desenvolvimento, também representa para a região uma espécie de Carta Náutica.

A Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi aprovada na Conferência de Bogotá em 30 de abril de 1948, porém só em 1951 entrou em vigor. Aberta a todos os Estados americanos, a Carta faz pouca menção aos direitos humanos, apesar de seu art. 5°, alínea j, afirmar que “os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana sem fazer distinção de raça, racionalidade, credo ou sexo”.

Só em fevereiro de 1967, aproximadamente dezesseis anos mais tarde, por ocasião da III Conferência Interamericana Extraordinária, foi instituída a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, guindada à condição de órgão consultivo da OEA e com o fim de assegurar o respeito aos direitos humanos na região. Dois anos depois, em São José, Costa Rica, foi assinada a Convenção Americana de Direitos Humanos, entrando em vigor em 1978 e sendo mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, considerado o principal instrumento do sistema interamericano.

A Convenção, já em seu preâmbulo, reafirma o compromisso com a democracia e a justiça social e reitera os termos da Declaração Universal de 1948 quanto ao ideal de um homem livre, sem as amarras “do temor e da miséria”, objetivos esses que só serão alcançados “se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos”. Portanto, o catálogo de direitos e liberdades que a Convenção assegura é vasto e compreende dos direitos civis e políticos aos direitos sociais, econômicos e culturais (Protocolo de San Salvador).249

Garantir a proteção desses direitos e da liberdade é o objetivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana. A Comissão foi criada por meio da Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores, realizada em Santiago do Chile, em 1959, com a finalidade de promover os direitos humanos, e teve seus poderes ampliados na II Conferência Interamericana

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O sistema interamericano de proteção não se limita à Convenção Americana sobre Direitos humanos e aos seus protocolos. Somam-se a esta diversas Convenções Interamericanas, com destaque para as seguintes: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985; Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994; e Convenção Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência, de 1999.

Extraordinária, que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1965, também por uma Resolução, a XXII.

Além do sistema de relatórios, dos exames de comunicações, das visitas aos Estados com a anuência deles, de preparar estudos e seminários e de solicitar informações aos Estados-membros, cabe à Comissão receber petições que contenham denúncias ou queixas de violações aos direitos e liberdades assegurados pela Convenção. A competência da Comissão alcança todos os Estados-Partes da Convenção Americana e, ainda, todos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos, sendo que na primeira hipótese os direitos protegidos são aqueles que constam da Convenção Americana, ao passo que na última são aqueles enumerados na Declaração Americana de 1948.

A Comissão é composta por sete membros, oriundos de qualquer Estado membro da OEA, eleitos pela Assembléia Geral para um período de quatro anos, podendo haver apenas uma recondução (art. 37 da Convenção).

As petições devem observar determinados requisitos de admissibilidade – como o esgotamento dos recursos internos, o prazo de seis meses contados da data em que ocorreu a ciência da alegada violação e a ausência de litispendência em âmbito internacional – e conter o nome e a qualificação completa, além da assinatura da “pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter” o caso (art. 46, letras “a” a “d”). O primeiro requisito não é tão rígido, na medida em que se sabe que a demora injustificada do processo por si só já representa ausência de justiça, como também é fundamental que os recursos assegurados pelo direito interno sejam eficazes, razão pela qual o esgotamento dos recursos internos é uma condição que deve ser sempre sopesada em cada situação que se apresenta.

Admitida a petição a Comissão solicita informações ao governo, ou na ausência destas após o decurso do prazo verifica se as denúncias persistem ou se sustentam. Se não existirem ou não subsistirem a Comissão determina o arquivamento; caso contrário cientifica às partes que o caso será analisado, podendo até realizar investigações quanto à matéria fática. Superada esta fase, a Comissão primeiramente procura encontrar uma solução amigável entre as partes, hipótese em que é confeccionado um informe dirigido às partes e, em seguida, à Secretaria da Organização dos Estados Americanos para publicação. Se forem baldadas as tratativas, a Comissão, então, elabora um relatório descrevendo os fatos e apresenta ao final sua conclusão, a

qual é encaminhada aos interessados, que têm três meses para cumprir as Recomendações apresentadas.

Decorrido esse prazo sem que o Estado demandado tenha cumprido as determinações que lhe foram impostas, ou não tendo sido solucionado o caso pelas próprias partes, ou, ainda, encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão então pode apresentar sua própria opinião e conclusão, por maioria absoluta de votos, oportunidade em que formula as recomendações que julga adequadas e também assina um prazo para que o Estado denunciado as adote. Vencido este novo prazo, a Comissão aprecia se o Estado efetivamente deu pleno cumprimento às determinações que lhe foram impostas, igualmente por maioria absoluta de votos. Depois disso, o informe respectivo é publicado no relatório anual das suas atividades.

Existe, porém, a hipótese de a própria Comissão levar o caso à Corte Interamericana, caso entenda que o Estado demandado não cumpriu as recomendações abrigadas no informe, salvo decisão adotada por maioria absoluta dos membros e devidamente fundamentada.250

Nota-se, assim, que o acesso a essa Corte, órgão jurisdicional do sistema regional interamericano, difere do sistema europeu, já que se restringe aos Estados- Partes e à Comissão (art. 61 da Convenção). Esta, todavia, pode receber petições encaminhadas por indivíduos ou grupos, ou mesmo por entidades não governamentais, contendo denúncia de violação a direitos humanos assegurados pela Convenção, e enviá-las à Corte, observadas as formalidades já ditas.

A competência da Corte, todavia, tanto é consultiva como contenciosa, no que não se difere da européia. Qualquer Estado membro da OEA pode apresentar consulta à Corte no que diz respeito à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção de direitos humanos de âmbito regional. A propósito, convém destacar que a interpretação da Corte é sempre dinâmica e evolutiva a permitir a

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Acerca deste procedimento, Flávia Piovesan ressalta que ele decorre de alteração ocorrida no artigo 44 do Regulamento da Comissão, em 1° de maio de 2001, isto porque pela sistemática anterior cabia à Comissão simplesmente submeter o caso à Corte, sem qualquer parâmetro. Sustenta Flávia Piovesan: “O sistema ganha maior tônica de ‘juridicidade’, reduzindo a seletividade política que, até então, era realizada pela Comissão Interamericana. Cabe observar, contudo que o caso só poderá ser submetido à Corte se o Estado-Parte reconhecer, mediante declaração expressa e específica, a competência da Corte no tocante à interpretação e aplicação da Convenção – embora qualquer Estado-Parte possa aceitar a jurisdição para determinado caso.” PIOVESAN, Flávia. Op. cit., 2006(a). p.97.

expansão dos direitos protegidos, demonstrando, neste proceder, identidade com a Corte Européia.

No exercício de sua função consultiva, a Corte analisou diversas matérias relevantes, mas algumas se destacam:

a) Opinião Consultiva n° 8/86: Trata da possibilidade de restrições ao gozo de exercício dos direitos e das liberdades reconhecidos pela Convenção Americana. Ou seja, é um debate acerca da doutrina constitucional relativa aos sistemas de crises (no caso brasileiro a matéria está disciplinada pelos arts. 136 e 137 da Constituição Federal). O Parecer vinculou ao termo “leis”, abrigado no art. 30 da Convenção Americana, os princípios da legalidade e legitimidade e interpretou o significado de termos imprecisos como “bem comum” e “ordem pública”, estabelecendo um paralelo com o Estado Democrático de Direito e seus objetivos;

b) Opinião Consultiva n° 8/87: Examina a hipótese de prisão ocorrida em período de exceção e o uso de instrumentos processuais considerados como garantias judiciais, isto é, a Corte manifestou entendimento de que os recursos de amparo e habeas corpus, ainda que em estado de emergência, são essenciais à proteção de direitos irrevogáveis, e por isso em nenhuma circunstância será permitida sua suspensão;

c) Opinião Consultiva n° 15/97: Interpretou o art. 51 da Convenção Americana e determinou que a Comissão não pode modificar opiniões, conclusões e recomendações enviadas ao Estado em questão, salvo em condições excepcionais, mas em hipótese alguma um terceiro relatório pode ser elaborado, esclarecendo ainda que na hipótese de o Estado Consulente retirar o pedido de parecer tal fato não impede sua manifestação, visto que a competência para emiti-lo não decorre apenas do pedido, mas também da ciência que já foi dada aos Estados membros da OEA, bem como aos órgãos relacionados no Capítulo X da Carta da OEA, caracterizando, por isso, a matéria como sendo de ordem pública;

d) Opinião Consultiva 16/99: Foi apresentada pelo México e é considerada como uma das mais importantes. Trata do direito à informação acerca da assistência consular como inerente às garantias do devido processo legal, a partir da análise de importantes tratados internacionais de direitos humanos – Pacto de Viena, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos – e das

conseqüências da aplicação da pena de morte em situações tais. O caso foi bastante debatido e contou com a intervenção de oito Estados, de organizações não governamentais, de indivíduos e da própria Comissão. A Corte concluiu vinculando o direito à informação sobre a assistência consular às garantias do devido processo legal em evolução (considerou a matéria como inerente à evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana no Direito Internacional contemporâneo), além de acrescentar que sua não-observância implica privação arbitrária do direito à vida (art. 4 da Convenção Americana e art. 6° do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas) e acarreta conseqüências jurídicas.

Digna de maior destaque é a Opinião Consultiva n° 18, de 17 de setembro de 2003, solicitada pelo Estado do México, sobre a Condição Jurídica e os Direitos dos Migrantes sem documentos, cujo teor é transcrito a seguir parcialmente, uma vez que tem vasto conteúdo e, ademais, pretende-se focalizar os assuntos abortados à luz do preceito máximo da igualdade e suas dimensões.

No marco do princípio da igualdade jurídica consagrado no artigo II da Declaração Americana e no artigo 24 da Convenção Americana, e no artigo 7 da Declaração Universal de Direitos Humanos e no artigo 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,

1. Pode um Estado americano, em relação com sua legislação trabalhista, estabelecer um tratamento prejudicialmente distinto para os trabalhadores migrantes sem regular documentação, no que tange ao gozo de seus direitos trabalhista em relação aos residentes legais ou aos cidadãos, no sentido de que a citada condição migratória dos trabalhadores impeça per si usufruir tais direitos?

2.1. Os artigos 2°, parágrafo 1° da Declaração Universal e II da Declaração Americana e os artigos 2 e 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assim como 1 e 24 da Convenção Americana devem interpretar-se no sentido de que a condição legal das pessoas no território de um Estado americano, seja condição necessária para que o citado Estado respeite e garanta os direitos e liberdades reconhecidos nas citadas disposições às pessoas sujeitas à sua jurisdição?

2.2. À luz das disposições mencionadas na pergunta anterior, pode considerar-se que a privação de um ou mais direitos trabalhistas, tomando como fundamento de tal privação a condição de um trabalhador migrante sem documentos é incompatível com os deveres de um Estado americano de garantir a não discriminação e a proteção igualitária e efetiva da lei que lhes impõem as disposições mencionadas?

Com fundamento no artigo 2°, parágrafos 1° e 2°, no artigo 5°, parágrafo 2°, ambos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,

3. Qual seria a validez da interpretação por parte de um Estado americano no sentido de subordinar ou condicionar de qualquer forma a observância dos direitos humanos fundamentais, incluindo o direito à igualdade perante a lei e à igual e efetiva proteção da mesma sem discriminação, à consecução de objetivos de política migratória contidos em suas leis, independentemente de hierarquia que o direito interno atribua a tais leis, frente às obrigações internacionais derivadas do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e de outras obrigações de direito internacional dos direitos humanos oponíveis erga omnes?

Levando em conta o desenvolvimento progressivo do direito internacional dos direitos humanos e sua codificação, em especial através das disposições invocadas nos instrumentos mencionados na presente consulta,

4. Que caráter tem hoje o princípio da não discriminação e o direito à proteção igualitária e efetiva da lei na hierarquia normativa que estabelece o direito internacional geral, e nesse contexto, podem ser consideradas expressão de normas de ius cogens? Caso a resposta a esta segunda pergunta resulte afirmativa, que efeitos jurídicos se derivam para os Estados membros da OEA, individual e coletivamente, no marco da obrigação geral de respeitar e garantir, conforme o artigo 2°, parágrafo 1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o cumprimento dos direitos humanos a que se refere o artigo 3, inciso I e o artigo 17 da Carta da OEA?

Como se pode observar, a Consulta tratou da dimensão que os princípios da igualdade jurídica, não-discriminação e proteção igualitária e efetiva da lei lograram na edificação do sistema de proteção aos direitos humanos.251

Na manifestação da Corte na OC 18, a unanimidade, representa um inquestionável marco histórico. A Corte acentuou que o Estado, após ratificar um tratado de direitos humanos, deve introduzir em seu direito interno as modificações necessárias para assegurar o efetivo cumprimento das obrigações assumidas. Os Estados ainda devem assegurar o pleno e livre exercício destes direitos e liberdades, sem discriminações, para os nacionais estrangeiros, qualquer que seja a situação destes, que devem usufruir o direito à proteção da lei em pé de igualdade com os nacionais. Ou seja, a Corte afirmou que a obrigação dos Estados não se esgota ao adotar medidas negativas,

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Convém registrar que o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, em seu comentário de n. 18, de 1989, ampliou a aplicação do princípio da igualdade e o da não-discriminação, abrigado no art. 26 do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, reconhecendo a autonomia dos mencionados princípios e que não estão eles limitados aos direitos mencionados no Pacto.

bem como não realizar atos discriminatórios, também abrangendo ações positivas para prevenir e punir atos desta natureza praticados no âmbito do seu território.

O princípio da igualdade e não-discriminação, segundo o entendimento da Corte, ingressou definitivamente no domínio do jus cogens, acarretando obrigações erga omnes que vinculam todos os Estados e geram efeitos em relação a terceiros, inclusive os particulares. Por conseguinte, a violação a tais preceitos conduz o Estado infrator a ser responsabilizado internacionalmente.

A Corte na OC n. 18 ainda se manifestou acerca do direito ao devido processo legal e lhe deu uma amplitude maior que aquela contida na OC n. 16, visando ressaltar que o alcance da intangibilidade desta garantia compreende todas as matérias e pessoas, sem qualquer discriminação. Em outras palavras, a Corte foi altiva ao dizer que a condição em que se encontra uma pessoa estrangeira, ainda que sem documentos, não lhe retira o gozo e exercício dos direitos humanos, entre eles os trabalhistas.

Em sua função contenciosa, a Corte também apreciou questões relativas ao direito à vida, à integridade pessoal, à liberdade, ao processo justo e à proteção judicial, entre outras.

A análise dessas decisões traz à tona uma jurisprudência voltada à proteção efetiva dos direitos contidos na Convenção Americana e uma compreensão dos direitos humanos que acompanha a evolução dos tempos, buscando amparar novas situações, a fim de que sejam atendidas todas as necessidades relativas à sua plena proteção.

A Corte tem também demonstrado sensibilidade para detectar novas fontes de violação aos direitos humanos, bem como a observância por parte das instituições estatais, em especial o Poder Judiciário, na proteção dos direitos humanos, com destaque para a intangibilidade das garantias judiciais e para a plenitude dos princípios inerentes ao devido processo legal, sem as quais não se pode falar em Estado Democrático de Direito. Portanto, a Corte tem contribuído para a formação de uma ordem pública internacional na região, fundada na proteção aos direitos humanos, impondo limites “ao voluntarismo estatal”, na feliz expressão de Cançado Trindade.252

Alguns julgados da Corte são dignos de destaque. Sobre a liberdade de expressão o caso paradigmático diz respeito à proibição no Chile, com base em dispositivo de sua Constituição, da exibição do filme “A Última tentação de Cristo”. A

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manifestação da Corte levou em consideração que “a expressão e difusão do pensamento e da informação são indivisíveis”; logo, qualquer restrição à liberdade de difusão significa uma clara e indiscutível violação à liberdade de expressão. Além disso, a Corte considerou como essenciaiis a democracia a liberdade de expressão e o direito a informação: “a liberdade de expressão, como um pilar da sociedade democrática, é uma condição essencial para que esta última seja suficientemente informada.” Ao fim, reconheceu a responsabilidade internacional objetiva do Estado chileno, por ato ou omissão de qualquer dos seus poderes ou órgãos, independentemente da sua hierarquia, e determinou inter alia que o Estado-Parte, em tempo razoável, modificasse seu direito interno, de modo a pôr fim à censura prévia e permitir a exibição do filme “A Última tentação de Cristo”.

No combate incessante à impunidade patrocinada por ação ou omissão dos Estados a manifestação da Corte tem sido emblemática. No caso que ficou conhecido como Barrios-Altos, em que o Peru figura como Estado demandado, a Corte firmou entendimento no sentido de que disposições relativas à anistia, prescrição e outras que visam excluir responsabilidades por graves violações aos direitos humanos – torturas, prisões arbitrárias, execuções sumárias, desaparecimento forçado de pessoas – são inadmissíveis, violam direitos irrevogáveis da Constituição e inibem o conhecimento da verdade, obstruindo a justiça, perpetuando a impunidade e tornando indefesas as vítimas.253 No mesmo sentido a Corte se manifestou no caso de Paniagua Morales e outros versus Guatemala e no de Agarrido e Baigorria versus Argentina.254

As decisões da Corte quanto à concessão de medidas provisórias, tal como previsto no art. 63 (2) da Convenção, objetivam não apenas proteger os direitos fundamentais (direito à vida e à integridade pessoal, assim entendida como física,