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Índice de Tabelas

1.1 Evolução do conceito de acidente neurológico

1.1.1 Acidente vascular cerebral

A história do acidente vascular cerebral (AVC) passa por diferentes conceitos ou interpretações de como a ciência evolui; ideias que se constroem ao longo do tempo por vários cientistas ou avanços por inspiração momentânea. Será o acumular de conhecimentos provindos de múltiplas fontes que vão formando as ideias, e aquilo que parece momentâneo, representa apenas o tornar visível de todo o conhecimento acumulado. Pela raridade das fontes de informação primárias e pelo difícil acesso ao seu conteúdo, o que aqui se descreve da história tem por base livros de texto6-8 e um catálogo de uma exposição sobre o médico Egas Moniz,9 sendo apenas indicadas as referências a publicações do século XX.

Hipócrates (460-370 a.C.) reconhecia o cérebro como o sítio da inteligência e do pensamento. O AVC, “apoplexia”, era interpretado como uma alteração cerebral generalizada e não como uma alteração focal. A etiopatogenia da apoplexia era baseada na teoria humoral (sangue, linfa, bile negra e bile amarela); a bile negra acumulava-se nas artérias do cérebro obstruindo a passagem dos espíritos vivos provindos dos ventrículos. Hipócrates e Galeno (131-201) associavam a perda de consciência a uma lesão cerebral. A teoria humoral permaneceu pela Idade Média e foi a essência do conhecimento médico.

Avicena (980-1037), médico Islâmico, tentou reconciliar as afirmações de Galeno com a visão Aristotélica de que o coração era o local da mente. A Europa Ocidental esteve praticamente privada dos ensinamentos Gregos até à queda de Constantinopla em 1453, que levou ao início do renascimento; os textos árabes foram traduzidos para latim antes dos de Galeno e dos de Hipócrates. Toda esta teoria não tinha qualquer estudo anatómico; a dissecção do corpo humano estava interdito devido às suas conotações divinas. Muitas outras situações de início súbito devem ter sido erradamente classificadas como apoplexia.

O renascimento traz avanços fundamentais no estudo da anatomia. Vesálio (1514-1569), em 1543, produz o primeiro desenho anatómico preciso do cérebro no livro “De humani corporis fabrica libri septum”, no mesmo ano em que Copérnico publica “De revolutionibus”, proclamando que era o sol e não a terra o centro do universo. Vesálio praticamente ignorava os vasos sanguíneos cerebrais, tendo-os representado nos primeiros desenhos como “rete mirabile”, uma rede de vasos sanguíneos na base do cérebro, idêntica ao que Galeno tinha encontrado nos porcos, e que desde aí foi extrapolado para os humanos. Vesálio foi veementemente atacado

pelos seus contemporâneos como um iconoclasta dos dogmas de Galeno. No entanto, no início ele não foi tão longe a ponto de se opor à teoria de Galeno, pela qual o sangue podia passar através do septo entre o ventrículo direito e o ventrículo esquerdo, permitindo uma mistura de sangue e ar e a eliminação da “fuligem”; em vez disso agradecia ao criador por ter feito as passagens tão pequenas que ninguém as podia detectar. Só mais tarde na edição de 1555 do livro “De humanis corporis fabrica” ele afirma que o septo interventricular está totalmente fechado. Em 1628 William Harvey (1578-1657) descreveu a circulação no corpo humano, tendo sido assim a queda definitiva da teoria humoral. O trabalho de Harvey constitui o fundamento do reconhecimento do papel dos vasos sanguíneos na patogénese do AVC.

Thomas Willis (1641-1675) publicou em 1664 o seu trabalho sobre a anatomia do cérebro, descrevendo as interconexões vasculares na sua base.

Wepfer (1620-1695), em 1658, associou a apoplexia a lesão vascular, “corpora fibrosa”, Bayle (1622-1709), em 1672, a calcificações vasculares e Boerhaave (1668-1738), em 1735, a “estreitamentos devido a alterações cartilaginosas”, no entanto este último ainda falava na paragem dos espíritos. Wepfer para além de reconhecer as lesões, separou os AVCs devidos a uma obstrução arterial, prevenindo o influxo do sangue, daqueles em que existia um extravasamento de sangue para o parênquima cerebral ou cavidades ventriculares. Não considerou, no entanto, a natureza focal da apoplexia e associou a hemiplegia com lesões cerebrais ipsilaterais. Observou também doentes que recuperaram de ataques apoplécticos e verificou que os obesos, aqueles com “face e mãos lívidas” e aqueles em que o pulso era constantemente irregular, estavam mais sujeitos à apoplexia.

Misticelle (1675-1715) claramente descreveu a decussação das pirâmides bulbares e assim as lesões apoplécticas localizadas no lado contralateral aos sinais.

Morgagni (1682-1771) em 1761 publicou uma série de casos de apoplexia nos quais confirmou a paralisia cruzada; classificou a apoplexia em “apoplexia sanguínea”, “apoplexia sérica”, e uma “apoplexia que não era sanguínea nem sérica”.

Embora com esta classificação, no século XVIII, a apoplexia não hemorrágica não era reconhecida como causada por um mecanismo de obstrução de um vaso sanguíneo. Baillie (1761-1823) associava a rigidez das artérias com hemorragia, isto embora Bayle e Wepfer, tivessem associado vários casos de apoplexia não hemorrágica à obstrução do fluxo sanguíneo. A opinião médica predominante era a de “congestão vascular” como uma espécie de estado pré-hemorrágico. No século XIX várias classificações de apoplexia, baseadas apenas na clínica, foram elaboradas por diferentes autores: Serres 1) apoplexia com paralisia e 2) apoplexia sem paralisia; Abercrombie 1) apoplexia primária com privação dos sentidos e motilidade, e por vezes com convulsões, 2) apoplexia com início por cefaleia, 3) apoplexia com perda de força de um lado do corpo, da fala, por vezes com recuperação; Hope e Bennett 1) apoplexia transitória, 2) apoplexia primária com morte ou recuperação lenta, 3) apoplexia evanescente com recuperação parcial e recaída, 4) apoplexia parapléxica com paralisia.

A medicina Italiana, baseada no órgão, representada por Morgagni, rapidamente se expande a outros países. A revolução francesa levou à reorganização dos cuidados de saúde, agora responsabilidade do estado e não da igreja, e do desaparecimento da distinção rígida entre cirurgia e medicina.

Léon Rostan (1790-1866), na Salpêtriére em Paris, no ano de 1820 foi o primeiro a considerar o amolecimento do cérebro como uma lesão independente, distinta da hemorragia, embora a patogénese não tivesse sido reconhecida. Rostan distinguia o amolecimento do cérebro da apoplexia, um termo que ele não mais usou para AVC em geral, mas considerava sinónimo de AVC hemorrágico; supôs também que o amolecimento cerebral era mais frequente que a hemorragia cerebral, embora algumas hemorragias fossem secundárias ao amolecimento; as manifestações clínicas passavam por dois estádios, primeiro “fugitivo” com alterações no uso do membro, fala, percepção visual ou auditiva, mais tarde, ou mais cedo, seguidas de uma forma lentamente progressiva de hemiplegia e coma. Rostan reconheceu a ossificação das artérias cerebrais, mas não associou estas lesões ao amolecimento cerebral através da obstrução do sistema arterial; pelo menos duvidava da opinião prevalente, por exemplo defendida por Lallemand (1790-1853), que a lesão era devida a um tipo de inflamação, uma vez que a lesão embora tivesse “rubor” e “tumor”, não tinha “calor” nem “dor” para completar os sinais cardinais de Celsus.

A primeira suspeita de relação entre doença arterial e “ramollissament” foi colocada por Abercrombie (1780-1844) em 1863, quando fez uma analogia com a gangrena causada pela falência da circulação, por sua vez secundária à ossificação das artérias. No entanto, muitos continuaram a defender a teoria da inflamação.

Rokitanski (1804-1878) dividiu o amolecimento cerebral, ao qual chamou “encefalomalacia”, em três tipos: 1) amolecimento vermelho (hemorrágico) de natureza inflamatória, 2) amolecimento branco (sinónimo de apoplexia serosa), causada por congestão e edema, e 3) amolecimento amarelo, a variedade mais comum, da qual a patogénese era desconhecida.

Virchow (1821-1902) revolucionou o pensamento médico sobre a doença vascular quando claramente coloca a ênfase nas alterações da parede vascular e não tanto no sangue. Virchow estabeleceu também que a trombose das artérias era causada, não por inflamação, mas por metamorfose gorda da parede do vaso. Com estes dados Virchow ressuscita o termo arteriosclerose, primeiramente usado por Lobstein (1777-1835) em 1829.

Cohnheim (1839-1899) introduziu a palavra enfarte no contexto médico reservando-o para a necrose hemorrágica, em oposição à necrose isquémica.

Virchow observou tromboses secundárias a aterosclerose, mas também a embolismo (termo por ele cunhado) em doentes com gangrena dos membros inferiores causada por coágulos libertados do coração, e extrapolou este facto para a causa do amolecimento cerebral. Esta situação tinha já sido sugerida por Gerard van Switeen em 1755.

Durante décadas após Virchow “embolia cerebral” foi sinónimo de embolia cardíaca. Embolização com ponto de partida nas artérias extracraneanas foi só considerada em 1960. Da mesma forma, ”trombose cerebral” manteve-se no pensamento clínico como enfarte cerebral não associado a doença cardíaca, implicando nestes casos oclusão ateromatosa dos vasos intracraneanos. A noção de “aterosclerose focal” como “in situ trombose” que perdurou durante tanto tempo deve-se à sua simplicidade e não ao facto de não existirem observações mostrando o contrário.

Chiari (1851-1916) em 1905,6 chamou a atenção para o facto de que aterosclerose na bifurcação carotídea poderia causar embolização secundária no cérebro, e Hunt em 1914,10 descreveu a relação entre a oclusão carotídea e o AVC.

A aceitação generalizada que a aterosclerose dos vasos extracraneanos era uma causa importante de isquemia cerebral foi devida a mais dois factos: 1) pelos estudos de Miller Fisher (1951),11 (1952)12 e 2) pela angiografia com punção directa da carótida realizada por Egas Moniz

(1927)13 (1940)6 e mais tarde por cateter (Seldinger 1953),14 e ainda mais tarde, pelas técnicas de ultra-sons. Esta relação ficou bem demonstrada nos dois ensaios de endarterectomia carotídea nos anos de 198015 e 1990.16

Fieschi et al, 198917 demonstrou a oclusão arterial por angiografia e Zanette et al, 199518 por monitorização com doppler transcraneano. Um outro local de placas de aterosclerose é o arco aórtico (Amarenco et al, 1992).19 Existem também causas de isquemia cerebral não trombo-

embólica, como por exemplo, a doença dos pequenos vasos.

A causa do extravasamento de sangue para o parênquima cerebral, reconhecida por Wepfer em 1658 e depois por Morgagni em 1761, manteve-se obscura (e ainda hoje o é de certa maneira). Em 1855, antes da pressão arterial poder ser medida, Kisker verificou a existência de hipertrofia ventricular esquerda em 17 de 22 doentes com hemorragia cerebral; em 1868 Charcot e Bouchard verificaram a existência de aneurismas miliares em doentes que faleceram com hemorragias cerebrais. Schwartz, 1930,6 Hiller, 1935,6 Globus et al, 1949,20 postularam que por isquemia da artéria, estas dilatavam e rompiam apenas quando previamente ocorria um enfarte, privando o vaso alimentador do seu normal suporte.

A angiopatia amilóide cerebral foi primeiramente reconhecida como causa de hemorragia cerebral no início do século XX (Fisher 1910,6 Scholz 1938,6 Partelakis 1954).6

A hemorragia subaracnoideia foi descrita pela primeira vez em 1812, e McDonald e Korb em 193921 publicaram uma revisão de 1125 doentes.

A investigação vascular cerebral teve um passo importante com Egas Moniz, com aplicações na anatomia, fisiologia e clínica; em 1937 Egas Moniz22 descreveu 4 casos de trombose da artéria carótida nas primeiras 537 angiografias carotídeas realizadas, e comentou que provavelmente encontrariam mais se a angiografia fosse realizada a todos os casos de hemiplégia. A primeira visualização angiográfica, em vivo, de um aneurisma cerebral foi realizada por Egas Moniz em 1933.23

A tomografia axial computorizada em 1970 (Hounsefield)24 e a imagem por ressonância magnética em 1980, vieram trazer novos desenvolvimentos na compreensão da anatomia, fisopatologia e tratamento da doença vascular cerebral.

Actualmente considera-se como definição de acidente vascular cerebral a adoptada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)25 “Sintomas e sinais clínicos focais, e por vezes globais, de alteração focal, e por vezes global (quando se trata de doentes em coma profundo e aqueles com hemorragia subaracnoideia), que se estabelecem de forma aguda, permanecendo mais de 24 horas ou levando à morte, sem outra causa aparente que a de origem vascular”.