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1.3 O PROBLEMA DO RISCO NA MODERNIDADE

1.3.3 Acidentes nucleares

A história dos acidentes nucleares não é pobre. Three Miles Island, Brown’s Ferry, Chernobyl, dentre outros, nos dão uma idéia do potencial ameaçador dessas inovações para a saúde humana e o meio ambiente, bem como das dificuldades com as quais os experts estão confrontados quando se deparam com eventos dessa natureza. Nossa atenção se deterá sobre o caso de Chernobyl por ser o maior acidente nuclear já ocorrido e o mais documentado e analisado, o que possibilita uma investigação mais aprofundada a seu respeito.44

No dia 27 de Abril de 1986, às 9h30 da manhã, os monitores de radiação da Central Nuclear de Forsmark, próximo a Uppsala, na Suécia, detectaram níveis anormais de iodo e cobalto, levando à evacuação dos funcionários da área, por suspeita de vazamento nuclear. Não foi constatado nenhum problema na usina. O problema estava no ar. Indicadores anormais foram observados na Finlândia, Noruega e Dinamarca. Os suecos, através de sua embaixada em Moscou, interpelaram o Comitê Estatal para o Uso da Energia Atômica, bem como a Organização Internacional de Energia Atômica (IAEA), devido à suspeita de que os ventos traziam radioatividade do interior da URSS. Moscou negou por dois dias qualquer anormalidade. Como as amostras analisadas na Suécia detectaram a presença de ruthênio, uma substância que se funde a 2255 ºC, ficou explícito que havia ocorrido uma explosão de grandes dimensões. Um satélite norte-americano fez uma varredura da Ucrânia e localizou uma usina com o teto destroçado e um reator em chamas emitindo fumaça do interior. O primeiro reconhecimento só veio em 28 de Abril, pela TV. As autoridades se pronunciaram 18 dias após o acidente. Em 3 de maio a nuvem estava sobre o Japão e no dia 5 havia chegado aos Estados Unidos e Canadá.

Em 25 de Abril, como previsto, a unidade 445 seria desligada para manutenção de rotina. O cronograma original, entretanto, foi alterado, pois antes se desejava realizar uma experiência para avaliar se o sistema de refrigeração do núcleo do reator continuaria funcionando com o reator desligado, caso houvesse corte de energia externa. O experimento iniciou à 1h do dia 25. Às 0h28 do dia 26 tentou-se corrigir um desequilíbrio no sistema, pois

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A descrição dos eventos está baseada em http://www.energiatomica.hpg.ig.com.br/chernobylp96.htm Acesso em: 14 jan. 2006.

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a potência estava muito baixa (30MW) para seguir com a experiência. No período em que o reator operou em baixa potência houve a formação de xenônio, produto causador de fissão nuclear. A situação podia ser controlada, aguardando 24h para dissolver o xenônio ou elevando a potência rapidamente. A pressão em realizar o teste, entretanto, foi maior, pois, se não fosse realizado naquela ocasião, seria feito apenas dentro de um ano. A partir daí se desenrola uma intrincada seqüência de eventos que culminam na primeira explosão à 1h23 seguida de outra à 1h24, que levantou a tampa de cimento do reator a 14m de altura, espalhando destroços por cerca de 2 km Logo após, o reator pegou fogo, liberando uma quantidade gigantesca de material radioativo. O incêndio foi apagado em 30 de Abril, às 17h.

Foram evacuadas 90000 pessoas, num primeiro momento, chegando a um total de 326000. Mais de 650000 indivíduos foram recrutados para trabalhar na limpeza, no primeiro ano, muitos dos quais morreram logo em seguida. A zona de exclusão, inicialmente de 30 km, atingiu 2500 km2. Houve e continua aumentando a contaminação do ar, do solo, da água numa escalada que pode atingir 10 milhões de pessoas em 50 anos. Milhares de pessoas morreram devido aos efeitos da radioatividade, que se manifestaram na forma de deformações congênitas e câncer. Plantas e animais também apresentaram e ainda apresentam deformações. A Central Nuclear foi desativada oficialmente em 15 de Dezembro de 2000, numa cerimônia transmitida pela televisão.

Há duas versões para as causas que precipitaram os eventos do acidente nuclear de Chernobyl. No relatório divulgado pelo governo soviético em Agosto de 1986, a responsabilidade é atribuída às falhas dos operadores, dentre elas, desligar muitos sistemas de segurança do reator. Em 1993 a IAEA refez seu relatório de 1986 e passou a atribuir o acidente a falhas do projeto.

Independente de qual das duas versões esteja correta, ou se a causa verdadeira é uma combinação delas, o acidente de Chernobyl apresenta características que nos permitem defini-lo como causador de riscos de alta conseqüência. Em primeiro lugar, seus efeitos atingem toda a sociedade, sem respeitar fronteiras de Estados-Nação, da classe a que o indivíduo pertença ou da cor da pele. Há uma globalização do risco. Pode-se argumentar que esse fenômeno também ocorria em sociedades tradicionais, bastando mencionar a “peste negra” que assolou a Europa na Idade Média, eliminando aproximadamente 2/3 de sua população. Ocorre que há uma diferença, pois se tratava de um fenômeno que não derivava da aplicação de conhecimento técnico-científico, como foi o caso de Chernobyl. Os riscos de “alta conseqüência” têm na sua origem a reflexividade dos sistemas abstratos, o que

diferencia sua natureza daquela constituinte dos perigos observados em sociedades tradicionais. (GIDDENS, 1991).

Em segundo lugar, os sistemas peritos não dispõem de meios capazes de prever com segurança os danos e as implicações da radiação sobre a saúde humana e o meio ambiente no longo prazo e, portanto, controlar suas conseqüências. Não há dúvida de que são feitas e refeitas continuamente as estimativas dos danos, trazendo subsídios úteis para os governos tomarem medidas que minimizem os riscos. O que se está afirmando é a existência de muitas incertezas quanto à amplitude dos efeitos, pois eles agem em sistemas altamente complexos, como o ambiente natural, devido ao elevado número de possíveis interações na natureza.

Certos desastres deixam o sabor do que pode acontecer — como o acidente nuclear de Chernobyl. Como em relação a muitas de tais questões, os especialistas não estão inteiramente de acordo sobre os efeitos de longo prazo da radiação que vazou naquele acidente para as populações dos países que afetou. Em geral, acredita-se que ela aumentou o risco de certos tipos de doenças no futuro, e sem dúvida teve conseqüências devastadoras para as pessoas mais diretamente afetadas na União Soviética. Mas inevitavelmente não passa de adivinhação a estimativa das conseqüências de um desastre nuclear maior — para não falar de um conflito nuclear, mesmo que de pequena escala (GIDDENS, 2002, p. 115-116).

Trata-se de uma situação paradoxal, própria dos riscos de alta conseqüência resultantes do processo de modernização reflexiva: a incerteza e o descontrole aumentam, não pela ausência de conhecimento técnico-científico, mas pela intensificação de sua aplicação, indo de encontro à concepção iluminista de ciência.

Em terceiro lugar, outra característica dos riscos de “alta conseqüência” presente no desenrolar dos eventos de 26 de Abril de 1986, é a irreversibilidade dos danos. Uma vez tendo sido contaminado pela radiação nuclear, não há mais como se livrar das conseqüências nefastas. Elas acompanharão o indivíduo para sempre. O mesmo acontece com o meio ambiente. Além disso, devemos contar com o fato de que os peritos, como afirmamos acima, dispõem de conhecimento insuficiente para estipular quais serão as conseqüências supervenientes sobre a saúde humana e o meio ambiente, tanto é que os cientistas ainda aguardam o que estará por vir nos próximos 50 anos.

Assuming that this is typical of restricted farms within the UK and using the rates of long- term decline we have estimated, restrictions may need to remain in place on some farms

for a total of 30 years after the Chernobyl accident, which is more than 100 times longer than initially expected. In some areas of the former Soviet Union, consumption of forest berries, fungi and fish (present Cs content, 10-100 kBq kg), which contribute significantly to people’s radiation exposure, will need to be restricted for at least a further 50 years (SMITH et al., 2000, p. 141).46

We believe it is too early to assess the overall impacts of radionuclide exposure on human health or on plant and animal populations. In particular, we do not know all the possible consequences of the multigenerational accumulation of genetic defects. As we approach the twentieth anniversary of the Chernobyl disaster we should be more sensitive to the long-term implications rather than suggesting that the coast is clear for redevelopment in the contaminated zones. (…) Given the long latency period for many diseases and the growing interest in rejuvenating the nuclear power industry, it is imperative that studies of the affected populations continue (MOUSSEAU; NELSON; SHESTOPALOV, 2005, p. 1089)47

Por último, diante de situações como essas, instala-se uma sensação de descontrole, de incapacidade de cada um e dos sistemas abstratos controlarem o que virá a seguir no longo prazo. A idéia de destino retorna. Esse é outro paradoxo criado pelos riscos de alta conseqüência, pois é um estado de coisas que se julgava abolido desde o advento da ciência como meio eficaz de prever e controlar o funcionamento da natureza. A situação inverter-se-á a ponto dos suecos contarem, logo após o acidente de Chernobyl, com a mudança da direção do vento para que os impactos do risco não assumissem proporções catastróficas.