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A natureza decisional do vínculo entre ciência e tecnologia e algumas de suas

2 CONTROVÉRSIA E DECISÃO NA TECNOCIÊNCIA: O CASO DOS

2.2 TECNOCIÊNCIA

2.2.2 A natureza decisional do vínculo entre ciência e tecnologia e algumas de suas

Nos exemplos descritos e analisados a decisão sobre o que será pesquisado e em que o conhecimento resultante será aplicado precede o trabalho dos pesquisadores em ciência fundamental e dos técnicos. Em todas as situações, os especialistas viram-se diante de escolhas feitas anteriormente e direcionaram seus esforços para atingir os objetivos definidos por outros atores.

Embora pesquisadores e técnicos tenham um papel proeminente no desenrolar do trabalho de investigação e aplicação, a sua atividade é relativamente autônoma, seja por essa questão de haver um processo decisório anterior ao seu trabalho, seja pelas relações de dependência entre o aspecto interno e externo ao laboratório, como assinalado por Latour (2000). Segundo ele, quanto mais autônomo for o pesquisador, menor a sua probabilidade de ter sucesso científico na tecnociência. Isso nos permite afirmar que a tecnociência é regida por um protagonismo compartilhado derivado das interações entre cientistas, técnicos e financiadores.

Embora a decisão prévia seja determinante para o resultado final a ser alcançado pelos cientistas e técnicos, é necessário destacar a complexidade desse processo. Como

assinalamos anteriormente, esse fato não permite afirmar que o financiador tenha controle absoluto sobre o resultado final do trabalho, em especial dos cientistas.

Apesar das pesquisas visarem à obtenção de uma variedade transgênica de soja a fim de ser comercializada e gerar lucro para a empresa que financia o trabalho dos especialistas, o resultado final pode trazer um maior aprofundamento a respeito do conhecimento sobre a resistência das plantas às doenças. O resultado pode vir a beneficiar pesquisadores de áreas correlatas e que utilizarão esses resultados para o desenvolvimento de pesquisas que resolverão problemas que, em nenhum momento, eram parte do escopo das iniciativas de quem patrocinou o estudo com sementes transgênicas.

O fato não retira, entretanto, o condicionamento do trabalho científico na tecnociência exercido pelo processo decisório que o antecede, voltado para a obtenção de lucro, e não é nosso objetivo obliterá-lo, como bem demonstram os exemplos de trabalho tecnocientífico arrolados acima. Visamos apenas chamar a atenção para o equívoco de interpretações reducionistas da vinculação entre ciência e tecnologia, proponentes da tese da extinção da pesquisa básica e do controle absoluto do capital sobre os resultados da investigação científica, como se esse fosse um processo determinado externamente em sua totalidade. O que há é um processo complexo em que o protagonismo de quem decide contribui em maior ou menor grau para definir o resultado final da tecnociência.

Quando assinalamos que há uma decisão que precede o trabalho dos especialistas na tecnociência, nos referimos ao fato de que um indivíduo, uma organização, uma instituição ou um grupo decide quais serão os objetivos desse trabalho. Não se trata de uma questão técnica, mas de uma escolha orientada por valores sociais. Pode ser uma decisão tomada por uma organização governamental visando o aumento do bem-estar da população derivado da aplicação de biotecnologia à produção de grãos. Pode ser o aumento da lucratividade de uma empresa gerado pela aplicação da técnica do DNA recombinante à soja a fim torná-la resistente a um produto químico vendido por essa mesma firma. São vários os exemplos possíveis.

Durante o debate sobre transgênicos ocorrido no período de aprovação e regulamentação da lei de biossegurança, que será descrito a seguir, os atores capturaram a natureza decisional da tecnologia e extraíram dela suas conseqüências. Nos confrontos entre os protagonistas da controvérsia estava presente de forma recorrente o debate a respeito dos riscos à saúde humana e ao meio ambiente a que a sociedade deveria se submeter. Trata-se de uma questão decisional, de natureza política e não técnica.

À luz das profundas incertezas sobre os efeitos das novas tecnologias, os conselheiros científicos devem ser francos a respeito dos limites do seu conhecimento. Mais pesquisa científica e monitoramento dos efeitos dos produtos agrícolas e alimentos geneticamente modificados são necessários, embora a pesquisa nunca possa resolver as incertezas, e por isso as decisões sobre a incerteza aceitável é um julgamento essencialmente político (ESRC, 1999, p.1).

Havia, basicamente, duas posições em conflito. Algumas organizações defendiam que havia riscos na comercialização de transgênicos e, portanto, a sociedade não deveria liberar OGMs, pois eles representavam uma ameaça à saúde humana e ao meio ambiente, apesar das afirmações em contrário de parte da comunidade científica. Outras não negavam a existência de riscos na utilização de transgênicos, mas, em nome do progresso científico e tecnológico, e, portanto, social, a sociedade deveria liberar a pesquisa e comercialização de OGMs. Os protocolos de pesquisa existentes garantiriam os níveis mínimos de segurança, e a vida social poderia seguir em frente sem preocupações exageradas sobre os efeitos do consumo de produtos geneticamente modificados.

Os atores mantiveram suas posições, mesmo diante de afirmações cientificamente comprovadas que as contrariavam. Trata-se de uma situação em que os dados científicos se tornaram um dentre outros elementos a fundamentar as iniciativas dos protagonistas do debate. A discussão foi deslocada para a dimensão do conteúdo do trabalho dos especialistas na tecnociência, não se restringindo a um debate a respeito da validade do método científico e dos protocolos de pesquisa. O deslocamento do conflito para a esfera do conteúdo, ou seja, o problema dos benefícios e dos riscos dos produtos geneticamente modificados, efetuado pelas organizações fez com que o tratamento a ser dado aos OGMs na lei de biossegurança dependesse de escolhas centradas em valores.

Dado que as aplicações envolvem questões não apenas de eficácia, mas também de legitimidade ou de valor social, é meramente arbitrário insistir que o que conta como fenômeno cientificamente interessante é determinado somente em vista do desdobramento interno da tradição científica e não, também, dos interesses conectados com as aplicações (LACEY, 2006, p. 79).

Esse processo resulta do fato de que na tecnociência não estamos lidando com uma concepção de trabalho científico como defendida por Bush (1945), desinteressado no tocante à resolução de problemas práticos. A vinculação entre ciência e tecnologia leva à consideração das implicações da atividade dos cientistas para a sociedade e a natureza, pois a

ciência está, necessariamente, associada à aplicação desse conhecimento. A aplicação, por sua vez, pressupõe a decisão, que leva à escolha de uma alternativa dentre outras, tornando esse processo um procedimento essencialmente valorativo, portanto.102

Esse fato foi fundamental para o prolongamento da controvérsia, pois a importância assumida no debate pelo conteúdo do trabalho dos peritos contribuiu decisivamente para que os atores em conflito fundamentassem seus argumentos em valores, tomando os dados científicos como um recurso a mais para a sustentação de suas posições diante de posições contrárias. Não se pode afirmar, entretanto, que os cientistas e técnicos tenham deixado de ser relevantes na controvérsia, pelo contrário, eles se tornaram decisivos nos embates entre os diferentes protagonistas.

Era importante para os atores fundamentar a legitimidade de suas posições na afirmação dos peritos, uma vez que a ciência é tomada socialmente como objetiva. Observa-se na descrição da controvérsia, a tentativa dos atores de se apoiarem em afirmações de cientistas e resultados de estudos científicos congruentes com suas visões a respeito dos riscos a que a sociedade deveria se submeter. Como afirma Lacey (2006), no contexto da aplicação de conhecimento são estabelecidas relações de reforço mútuo entre resultados científicos e adoção de determinados valores.

Embora os dois grupos tivessem efetuado o deslocamento do debate para a esfera do conteúdo, pode-se observar, na descrição da controvérsia que esse procedimento foi mais marcante entre os atores contrários à imediata liberação da comercialização de transgênicos. Os atores favoráveis à imediata liberação, embora em suas manifestações sempre justificassem seus posicionamentos na prevalência dos benefícios em relação aos riscos dos OGMs, buscavam legitimar suas posições no debate na capacidade dos protocolos de pesquisa garantirem a segurança e o bem-estar da população.

Além disso, a tentativa de legitimar os posicionamentos na referida capacidade dos protocolos permitiria deslocar as afirmações dos defensores da imediata liberação comercial

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Há que considerar que todo trabalho de pesquisa depende, naturalmente, de decisões, isso não é um atributo da pesquisa na tecnociência. O cientista deve tomá-las o tempo todo em seu trabalho, isso é óbvio. A decisão a que nos referimos até agora, entretanto, diz respeito ao processo de escolha dos objetivos da pesquisa básica vinculada, necessariamente, a uma aplicação do conhecimento obtido, como é o caso do trabalho dos cientistas envolvidos com a investigação do DNA recombinante. A situação que analisamos em nossa tese difere daquela em que um pesquisador realiza seu trabalho de forma descompromissada com as possíveis aplicações do conhecimento que gerou, situado no quadrante de Bohr, como definido por Stokes (2005). Quando dizemos que há situações em que a pesquisa é descompromissada, nos referimos ao fato de que um cientista pode realizar a sua atividade sem visar, necessariamente, a aplicação do conhecimento que ele produziu. Não estamos dizendo que se trata de um indivíduo que não tem preocupações éticas com os possíveis efeitos, talvez desconhecidos por ele mesmo, da suas investigações no laboratório.

de transgênicos para uma “esfera neutra" (SCHMITT, 1992), na qual estariam situadas a tecnologia e a ciência. O procedimento buscava tornar mais legítimas as afirmações desse grupo do que as dos seus adversários, pois estariam livres de injunções políticas e ideológicas que poderiam gerar uma interpretação desvirtuada e tendenciosa dos transgênicos. Manifestações políticas e ideológicas seriam a expressão de interesses não revelados, ao passo que as manifestações de quem se apoiava na ciência e na técnica teriam como objetivo revelar em que, de fato, consistiriam os transgênicos, por serem mais objetivas.

Ocorre que os argumentos científicos e técnicos serviram a todos os atores, cada um utilizando os dados que viessem a reforçar os valores assumidos durante o debate. Na prática dos protagonistas, portanto, a ciência e a técnica migraram de uma “esfera neutra” para uma valorativa, pois acabaram servindo como legitimação de determinadas visões de mundo quanto aos riscos que uma sociedade deve assumir.

Podemos definir o debate sobre os transgênicos durante o processo de aprovação e regulamentação da lei de biossegurança como um conflito pelo poder de conduzir a decisão sobre o tratamento dos transgênicos na referida lei. Os protagonistas da controvérsia tinham como objetivo se fortalecer na arena do conflito a fim de influenciar os parlamentares a tomar decisões que atendessem aos interesses dos grupos sociais que suas organizações representavam. Os atores se valeram de vários argumentos para isso, desde dados científicos, discurso do progresso, os riscos à saúde humana e ao meio ambiente, emfim, uma gama de proposições de diferentes naturezas para fundamentar seus argumentos.

Embora os atores se deparassem com controvérsias científicas sobre os possíveis riscos dos OGMs, indicando que cientificamente não havia um consenso sobre o assunto, mesmo assim uma decisão seria tomada quanto a liberar ou não os transgênicos. O resultado foi tornar os dados científicos um fator relativo, competindo com outros no processo de influência do resultado final do debate sobre o tratamento a ser dado aos produtos geneticamente modificados na lei de biossegurança.

Era considerado fundamental recorrer aos cientistas para a formação da opinião sobre liberar ou não a comercialização de OGMs. Isso ficou evidenciado nas convocações de audiências públicas ocorridas no Congresso Nacional. Os argumentos dos peritos, entretanto, eram parte de um rol de recursos argumentativos, compartilhado igualmente por todos aqueles que se manifestaram.

Considerando que os transgênicos visam a sua utilização, eles podem ser associados a possíveis riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Nesse caso, além dos

cientistas, outros indivíduos ou organizações poderão se envolver na controvérsia sobre tais riscos, uma vez que se sentem afetados por eles.

Em função dessa participação de diferentes atores, o objetivo do capítulo seguinte é definir em que consiste o discurso científico padrão e o discurso não-científico. Isso nos permitirá afirmar em que medida cientistas e não-cientistas se fundamentaram nas mesmas bases e quais foram as implicações para o processo decisório que tratou do adiamento ou não da liberação comercial de transgênicos por intermédio da lei de biossegurança.