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O ACONTECIMENTO: DA ANGÚSTIA DE MORTE À PERDA DO CORPO HABITUAL

O ponto–chave, fundador da narrativa que a Francisca faz, é o que lhe aconteceu num dado dia que não esquece. Um dia em que sofreu uma rutura de um aneurisma, A Francisca sente–se alerta perante a situação ameaçadora que o seu corpo expressa como se de um ecrã se tratasse, aonde focaliza toda a sua atenção. O corpo, é agora, um objeto presente, fora de si, revelando a divisão corpo–consciência que parece facilitar à Francisca o controlo de si mesma face ao risco que a íntima – “se calhar vou morrer”. É um acontecimento de tal modo ameaçador e perturbador da sua existência que instaura um momento charneira inaugurando um outro capítulo da sua vida – a sua vida “depois de” que, no decorrer do tempo e da narrativa é designado como um “outro modo de viver”.

Senti uma dor insuportável uma dor muito aguda, aqui no ilíaco, muito, muito, muito aguda e depois comecei a paralisar, comecei a sentir dormente a começar pela ponta dos pés e depois aquilo a subir a subir, subir. Senti a paralisar cada vez mais, mais, mais – “se calhar vou mor- rer, se isto continua assim chega–me à garganta e à cabeça e morro, vou morrer. Senti uma grande aflição, uma grande preocupação com os meus filhos (…) ficam cá, como vai ser com eles, coitados dos meus filhos (…) eu sabia o que me estava a acontecer (…) felizmente parou na D8 e eu estava ciente do que estava a acontecer, trabalhava com deficientes motores e eram os mesmos sintomas de há 10 anos atrás e pensei que ia recuperar como anteriormente. Assim, aquele momento de “aflição” ao sentir no seu corpo a vida suspensa, “felizmente parou” convertendo–se em esperança de poder passar apenas um par de horas no hospital e regressar a casa pelo seu pé, como antes acontecera. Mas, mesmo depois da cirurgia para remoção do coágulo e apesar de persistir a paraplegia e de estar a viver um período tão cru-

cial e difícil, a Francisca ainda tinha esperança que o seu corpo e as manifestas dificuldades que evidenciava, regredissem e voltasse a ser o que era. Tinha a convicção de que vivia uma fase e um estado passageiro.

Durante um tempo, como eu tinha recuperado da outra vez, eu achei que era provisório e que ia recuperar como da 1ª vez, estava a aceitar com uma paz, uma serenidade, sabendo tudo porque vivia aquilo diariamente, todos estavam admirados, mas estava a aceitar e não era passivo era uma aceitação ativa mesmo, durante um tempo tive alguma esperança que aquilo se reduzisse e não fosse uma lesão tão séria

E assim passa os dias, cerca de um mês no hospital, entre a ambiguidade da circunstância em que se encontra e dos sentimentos contraditórios que vive, tentando aceitar de modo exemplar o que lhe está a acontecer. A Francisca lidava com pessoas afetadas por deficiên- cia motora. Por fim, e perante a persistente ausência de qualquer sinal de uma possível recuperação, confronta–se com a lesão neurológica definitiva ao nível da D8. Os sintomas no seu corpo não iam desaparecer e, consequentemente, as dificuldades, entretanto vivi- das como temporárias, convertem–se, desde logo, em incapacidades/dependências vividas como certas, definitivas, desde já e no seu futuro. Parece que a experiência de FM junto dos deficientes motores, conhecendo bem “as limitações dos outros (…) porque vivia aquilo diariamente” não foi suficiente para a violência em que a experiência vivida do seu próprio limite se enxerta – “tudo era novidade, muito doloroso interiormente”.

A partir de uma certa altura comecei–me a convencer mesmo que era uma coisa definitiva, séria, fui–me apercebendo que de facto era definitivo. Eu estava dentro do assunto, porque eu trabalhava com deficientes motores – eu sabia que as lesões neurológicas não tinham remissão e que portanto, comecei–me a convencer mesmo que era definitivo. No fundo era, acabava por ser tudo uma novidade e não lhe digo que foi fácil foi muito doloroso interiormente, embora percebesse. Quando definitivamente se nos apresenta a questão que se vai ficar assim mesmo, definitivamente, aí sim, tive uns momentos de pânico, nem foi bem pânico foi “que horror, que horror, como é que vai ser, como é que vai ser e agora como vai ser” todos aqueles anos traba- lhei com deficientes motores e isso foi, sei lá, como se de repente houvesse um buraco escuro que tinha de atravessar, mas tinha, essa sensação de solidão, de soco no estomago, imediata- mente a seguir uma certeza, a certeza de, eu tenho que andar para a frente, não me vou deixar abater, foi muito uma questão de pensar relativamente aos meus filhos “tenho que ser eu a dizer–lhes que se puder contar com eles isto não tem importância nenhuma”. Acho que era a responsabilidade, eu pensei “se faço disto um drama os meus filhos vão–se completamente

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abaixo”. Então, acho que esta foi a primeira reação – tenho que ser eu a reagir porque se eu não reajo eles vão–se completamente abaixo – eu tenho um instinto maternal muito forte. A dinâmica inerente ao acontecimento que, inicialmente, se traduz no momento em que a Francisca equacionou a possibilidade de morrer, estende–se a um período de cerca de um mês de hospitalização. Na verdade, a perda do corpo habitual ditada pela paraplegia defini- tiva emerge como o acontecimento–limite. A Francisca sabe que já não pode voltar a viver como dantes, nem o seu quotidiano vai poder ser o mesmo. Está horrorizada, sente um soco no estomago, perante si abre–se um buraco escuro. A Francisca toma consciência de que não pode alterar o que lhe estava a acontecer nem nada fazer a não ser aceitar a sua inesperada condição que lhe é revelada no e pelo seu próprio corpo. Não era a sua sobrevivência que estava em risco, mas o seu modo de existir, de ser e estar consigo, no mundo, com os outros. Para a Francisca esta primeira etapa, é a do “confronto com a dependência”, isto é, “a depen- dência” consubstancia a situação–limite que vive. Invadida por uma grande solidão, à beira de “se abater” pela situação dramática que “a dependência” representa, agiganta–se nela uma certeza “tenho de andar para a frente, não me vou deixar abater (…) por uma questão de responsabilidade perante os meus filhos”.

“Ter de andar para a frente” e “ter de reagir” são percebidos como pilares fundamentais na reconstrução de si (self). Os filhos parecem constituir a âncora vital para se confrontar consigo mesma e com o mundo; aceitar o seu corpo diferente e permitir que os outros a possam olhar nesta sua diferença só vale a pena se “puder contar com os filhos”. Ser mãe é não permitir que os filhos se deixem abater e assim toma a primeira decisão que é primor- dial – “tenho que ser eu a reagir para que os meus filhos não se deixem abater”.

A partir da tomada de consciência da situação em que se encontra, FM redefine como propósito o de se reinventar com as condições reais e concretas com que se depara. Viver sem a cumplicidade do seu corpo habitual mas com um corpo desconhecido para si, apesar de conhecer as limitações que transporta, constitui–se como o desafio evidente. Tinha de ser capaz de agir, de fazer o caminho desconhecido “mas que tinha de atravessar” e, neste momento, consegue dar o passo que o fenómeno emergente reclama – iniciar o trabalho de reconstrução de si e da sua vida quotidiana após a situação–limite com que se confrontou, isto é, começa a travessia do “buraco escuro”.

A TRANSFORMAÇÃO DO CORPO ATUAL EM CORPO HABITUAL:

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