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A ALTA OU O TEMPO DE TER TODO O MEDO QUE TIVEMOS: DO FIM DA DOENÇA NO CORPO À LIBERTAÇÃO DA DOENÇA NA VIDA

Os seis meses de tratamento do linfoma de Hodgkin após os cerca de 2 meses que o Carlos passou até conhecer este diagnóstico, representam um tempo vivido no limite do que signi- fica ter um cancro no seu corpo, na sua vida, “essa sensação de mortalidade (…) uma espada sobre o seu pescoço que não se sabe quando cai” como ele relata. Um tempo de “concentração na sobrevivência” visível nas “salas de espera” lugar de poucas falas, de partilha silenciosa

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do sofrimento que cada um vive, lugar de expectativas cautelosas entre idas e vindas, de pertença que os olhares e os rostos onde se espelha o que ali os une, assim lho dizem. É neste contexto, após a conclusão do plano terapêutico, que o Carlos Ventura é informado da decisão médica da alta.

E depois no fim disto tudo disseram–me — “Ok, você está, isto está resolvido, vá à sua vida; tem de vir cá, primeiro de 3 em 3 meses, depois de 6 em 6” e aquelas coisas assim. “Vou–me embora, como?” — “Pronto, isto está resolvido, está definitivamente livre disto tudo, vá à sua vida”. Fiquei aterrado. Mas em que estado estava eu! Ir à minha vida! Acabaram–se–me os tratamentos, a sala de espera, as idas e vindas, tudo desapareceu, mesmo os profissionais que nos acompanham! E agora? Que é que eu faço? É que nesta altura, não fica ninguém para nos ajudar. Isto está tudo resolvido! Como era possível ficar assim, de repente, sem nada para fazer, livre de tudo! Como vai ser agora? Fica–se só, abandonado perante o drama da luta pela sobrevivência que, sem pré–aviso, deram por finda — “Está definitivamente livre disto tudo” — foi o que a médica me disse. Não, não senti alívio! Com o enfarte passou–se mais ou menos a mesma coisa.

Para o Carlos esta notícia deixa–o “aterrado”. Apercebe–se desse momento quase como uma agressão, um despojamento, a separação dos profissionais e dos “colegas”, a perda da teia relacional que com eles construiu e do lugar a que pertencia. “Vou–me embora, como?” — Pergunta–se o Carlos. Ele preparou–se para uma luta vital que “deram por finda” sem que tivessem a preocupação de o avisar. Não se preparou, nem foi ajudado a preparar–se, a não ser lembrarem–lhe quando deve vir para ser vigiado. Por isso, quando ouve “vá à sua vida (…) está livre disto tudo” olha para si próprio e quem reparasse nele via “em que estado estava eu” e sente–se incapaz de cumprir. O “alívio” que era suposto sentir não é nenhum. Despir a pele de doente não é fácil, sobretudo quando o seu corpo se mostra “de olhos enco- vados (…) e má figura agarrada à magreza” — um aspeto de pessoa com cancro.

O Carlos Ventura sente uma perturbação enorme em si e no quotidiano do seu viver sem compreender qual o seu lugar. Sente um grande vazio que não sabe como preencher porque de repente “acabaram–se–me os tratamentos, a sala de espera, as idas e vindas, tudo desapa- receu, mesmo os profissionais que nos acompanham!” restando–lhe ficar só, sem a doença, sem a ajuda dos profissionais que tão bem souberam “conduzi–lo” no tempo da “luta pela sobrevivência” que agora deixou de ter sentido. A narrativa é muito sugestiva do que emerge de rompante, no tempo em que cessa a necessidade crucial do tratamento do cancro.

Quando nos dizem “você está despachado, está bom, vá à sua vida, vá–se embora”, é que vem à superfície tudo, essa insegurança toda, como se tudo tivesse ficado registado e depois manifesta–se! A gente não tinha tido tempo para ter medo, tempo para olhar para os medos que tivemos. É nesta altura — quando terminam os tratamentos e tudo à nossa volta — que nos assaltam esses medos; é então que temos o tempo para ter medo. O cancro é uma doença que aparece sem se perceber o que o causou e mata sem sabermos quando, desfaz, devora uma pessoa à frente dos seus próprios olhos! Sente–se a sentença de morte, os tratamentos são terríveis — é duro o combate! Temos muito medo! (…) o ano a seguir é que é o do confronto com a insegurança toda — o tempo para ter medo — porque antes não tivemos tempo para o medo (…) Senti isso, o disparar desse medo depois das coisas estarem resolvidas. É demasiado violento, demasiado violento!

O tempo pós alta é “o tempo para ter medo porque antes não tivemos tempo para o medo”. É o tempo de dar–se conta que sofreram um cancro — uma doença que amedronta “mata sem sabermos quando, desfaz, devora uma pessoa (…) sentença de morte”. E se “a doença não dói” já “os tratamentos são terríveis”. Na luta pela sobrevivência não houve tempo para “racioci- nar” sobre o que lhe estava a acontecer, nem para sentir esse “medo” da aniquilação total. Só quando o tratamento findou e “veio à superfície essa insegurança toda” é que o Carlos se apercebeu como ”registou” o que sentiu e o medo passado inscrito nele “disparou” para se tornar presente porque era o “tempo para ter medo”. É um tempo de solidão pela incompreensão de que são alvo, empurrados pelas famílias e profissionais “a esquecer o que lhes aconteceu”. Mas como esquecer se sentem “invadidos por todo o medo que fomos tendo”? Este sofrimento silencioso prolonga–se no tempo e o Carlos Ventura diz mesmo que “ao fim do primeiro ano ainda não esquecera” o medo colado a si durante a travessia que fizera.

Digamos que o ano a seguir foi o tempo para olhar os medos e vi acontecer isso a muita gente. (…) Falei com pessoas sobre isto que lhes estava a acontecer. Nenhuma delas tinha com quem falar (…) sentiam–se sós, isoladas nas famílias e mesmo dos próprios profissionais de saúde (…) nem são muito acessíveis a este tipo de necessidade e até dizem — “Não tem mais que esquecer isso, agora tá bom, vá–se embora, nós, aqui, temos muito que fazer”. Para este tempo, para isto, ninguém fica para nos ajudar. Ficamos isolados, sós e invadidos por todo o medo que fomos tendo (…) Enquanto por lá andamos engendramos uma força que nos conduz perante as coisas todas. Não pensamos muito na morte, no que nos aconteceu (…) Falar com os que passaram por isso ajuda e eu tive isso. Ao longo do tratamento tive muita sorte em ter um colega que falou comigo, com uma atitude solidária (…) Esta solidariedade e esta união, a

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compreensão do que se passava com os outros colegas doentes, encontrei–a (…) nos corredores dos hospitais, na sala de espera (…) Agora, acho que o melhor não é ir ao psiquiatra (…) tive imensas pessoas que achavam que eu deveria ir a um psiquiatra, não se passava por uma coisa destas sem sentir essa necessidade! (…) alguns amigos bem me empurraram! Vai ver que se passou o mesmo com o enfarte! Penso que os psiquiatras fazem uma abordagem profissional e o melhor nestas coisas é a gente falar uns com os outros. Não interessa encarar isto com muita leveza e se a gente falar uns com os outros, leva tempo mas resolve melhor (…)

É de notar que o Carlos Ventura é um profissional de saúde e os seus amigos, em vez do diálogo e compreensão que ele esperava, aconselharam–no a recorrer à ajuda de um psiquiatra. A experiência vivida pelo Carlos durante o tratamento permitiu–lhe considerar que “falar com os que passaram por isso ajuda” pelo que preferiu não se socorrer de “uma abordagem profissional”. “Falar uns com os outros” afigurava–se–lhe necessário para pode- rem conversar sobre o que os preocupava e poderem manifestar “uma atitude solidária” e compreensiva que pudesse facilitar a resolução dos problemas que os afligiam.

Não foram três anos, já não me lembro, não sei bem quanto tempo foi! (…) Progres- sivamente perdemos aquele aspeto de olhos encovados e a má figura agarrada à ma- greza. Vamos conseguindo viver com muito menos mal–estar! (…) Vamos juntando fragmentos, vamos examinando e só depois de revermos o que vivemos, de refazer gestos e imagens, é que começamos a estar de outra maneira com o mundo (…) leva o seu tempo! Isto é demasiado violento. Não foram precisos três anos, mas ao fim do primeiro ainda não me esquecera. É tudo lento.

Libertar–se da doença na (sua) vida não é o mesmo que libertar o corpo da doença. É um trabalho interior sobre si e os “fragmentos” a reparar com cuidado, de olhar mais uma e outra vez “o que vivemos” de modo a tecer fios e refazer ligações entre os “fragmentos” até se achar no “mundo” mas “de outra maneira”. É o trabalho de mudar a pele de doente que “leva o seu tempo” até perder as marcas do cancro no seu corpo, nas tarefas quotidianas, no seu posicionamento face a si e à sua vida. É muito claro para o Carlos o que percebeu em si que significava que se tinha “libertado da doença” como mostra este texto

Lentamente vamos deixando de estar atentos ao nosso corpo, regressamos às nossas rotinas, ao trabalho e, sem darmos por isso, um dia reparamos que nos libertámos da doença.

O Carlos Ventura, após um labor permanente, sente que ele e o seu corpo são um só, isto é, o corpo não é coisa que exija a sua atenção, é novamente um corpo habitual que o liberta

para a vida, para as rotinas de que a sua vida é feita. Nos dois a três anos seguintes o Carlos Ventura “esquecera” e vive confiante no seu “cenário habitual” que é o quotidiano do seu existir.

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