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O CONFRONTO COM O DIAGNÓSTICO DE AVC: A DEPENDÊNCIA, A IDENTIDADE AMEAÇADA E A BUSCA DE SENTIDO

A Laura Sá apercebia–se da necessidade do internamento de modo a obter o alívio dos sin- tomas que a coagiam a sentir–se morrer e esperava, ainda, que a equipa médica – eles”– em tempo adequado, pudesse vir a saber “o que é que se está a passar comigo” – uma dúvida que ameaçava a sua sobrevivência e impedia uma adequada prescrição terapêutica.

É neste contexto que a Laura vê a hospitalização como o espaço de tempo necessário à clarificação e tratamento da situação que vive, apesar de a considerar como consequência da enxaqueca. É transferida. O médico que a observa decide optar por aliviar a Laura do sofrimento e dos sintomas que nela eram patentes. Inicia a terapêutica cujos efeitos foram de tal modo benéficos que a Laura sente gratidão e manifesta grande reconhecimento pelo médico que não duvidou em relegar para segundo plano a pesquisa do diagnóstico para se empenhar no seu bem–estar.

Já no final do dia decidiram a minha transferência para um serviço de internamento. Saí do SO. Um médico foi ver–me, mesmo ao fim do dia, e disse–me “não, não pode continuar assim, vamos ter de dar medicamentos” (…) decidiu fazer medicação, analgésicos e comecei a melhorar. Fiquei agradecida. Graças a Deus, foi bom, uma coisa espetacular, os períodos de inconsciência cada vez mais espaçados e deixei de vomitar. Durante a noite passei melhor e acabei por descansar

Sentir–se a melhorar – expressa pelas próprias palavras da Laura como “foi bom, uma coisa espetacular (…) e acabei por descansar” – indica não só a surpresa da acalmia consequente á medicação. A Laura “descansou” também da angústia e dos pensamentos que a afrontaram ao longo desse dia, voltando à ideia da enxaqueca a que se agarrava como tábua de salvação e que a mantinha na esperança de um internamento muito curto, sem ter que se preocupar com mais nada, que o acordar no dia seguinte parece contraditar.

Quando acordei percebi que não suportava a luz. Quis levantar–me, também não conseguia. Dei–me conta que tinha alterações do equilíbrio. Tinha diminuição da força à esquerda. Estas coisas, não as tinha notado antes porque estive sempre deitada. Eu sentia–me fraca, esquisita, estranha, meia combalida, nem sei bem descrever. Relativamente à visão, tinha uma fotofobia impressionante que me incomodava imenso, tinha que estar na escuridão, tinha que estar sempre com os estores corridos o que também me fazia confusão. Eu não aguentava a luz nos meus olhos. Fazia–me confusão o som, o ruído. Precisava do silêncio e do escuro. Sentia–me

muito melhor, mas o meu corpo dava sinais um pouco preocupantes, manifestava dificuldades que não me lembro de alguma vez me terem acontecido. E não conseguia perceber o que se estava a passar comigo. Foi um pouco isto.

A Laura perante os “sinais um pouco preocupantes” que designa de “dependência” não faz perguntas. Também não as faz ao aperceber–se das dificuldades que o seu corpo manifesta- va e “que não me lembro de alguma vez me terem acontecido”. Como o excerto “não conseguia perceber o que se estava a passar comigo” explicita, a dúvida emergia de novo. Talvez, a Laura, se interrogue dentro dela, mas ao concluir que “não as tinha notado antes porque estive sem- pre deitada” encontrava a resposta que necessitava e assim conseguia tranquilizar–se.

Esta dependência, no início, não me fazia muita confusão porque não era uma grande depen- dência. Esperava sempre pelo Pedro para tomar banho – coisa que não é normal numa mulher com 36 anos. O Pedro chegava logo de manhã e ajudava–me no banho e depois levava–me para a cama, o que foi muito bom, não era necessário serem os profissionais. Eu precisava do Pedro para me apoiar nele, para sentir segurança para ir ao banho e era bom ser ele e não outra pessoa qualquer e isso foi bom – diminuiu um pouco esse sentimento de me sentir de- pendente. Também não conseguia comer sozinha. Era preciso que alguém cortasse. Quando o Pedro não estava, eram as auxiliares que me ajudavam.

A Laura sabe que está “dependente”. Sobretudo sente–se, perante os outros, aos olhos dos outros como “dependente” deles, a necessitar da sua ajuda o que ela considera “que não é normal”. Todavia, ao ser muito apoiada pela presença e cuidado do marido – “o que foi muito bom” – a Laura vê–se protegida, face aos outros, na sua fragilidade e intimidade por “não serem necessários os profissionais”. Mas, perante ela própria, perder as competências habituais de qualquer “mulher de 36 anos” e constitutivas de si mesma como tal, é um transtorno incontornável que muito incomoda a Laura. Denuncia, assim, o crescer duma interrogação de natureza muito peculiar que pode criar as condições de inteligibilidade “da lesão isquémica” que acontece nela e que a Laura afasta de si.

A dependência, toda aquela sintomatologia, limitam a Laura na realização de atividades que são parte do seu quotidiano. Porém, representa, sobretudo, uma perturbação da capa- cidade relacional da Laura e do seu modo de ser que se traduz em insegurança, “confusão” e “necessidade de dormir”. Esse sentir, por sua vez, induz nela outras necessidades como a de se isolar num espaço “silencioso e escuro” sem a presença de outros de modo a reparar a desordem entretanto gerada.

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Ler não conseguia, não conseguia por causa da visão e ver televisão muito menos. Conversava com colegas que me visitavam, com o Pedro quando estava comigo mas por períodos curtos. A partir de uma certa altura tinha de escurecer tudo e fechar tudo porque precisava de dormir e não queria mais confusão – eu podia fazer isto porque estava num quarto sozinha. (…) eu podia dispor como eu queria e tinha vontade. Eu (…) tinha que dormir muito, sentia essa necessidade, dormia e isto prolongou–se por algum tempo.

A Laura é protagonista e simultaneamente observadora atenta e interessada em desvendar o que acontece nela a cada momento – novo e desconhecido, imprevisível e ameaçador. Esse é agora o seu trabalho – o de descodificar o significado da situação vulnerável que vive para a poder transpor. Está completamente centrada no seu corpo, na presença ou ausência dos sinais adotados pela Laura como tabuletas de caminhos de uma geografia outra que ignora mas habita, cujos roteiros são traçados por outros. À Laura compete–lhe gerir esta complexidade inserta em si e no seu novo quotidiano ao que parece facilitado “porque esta- va num quarto sozinha. (…) eu podia dispor como eu queria e tinha vontade”.

O medo de morrer esbatera–se, o dia seguinte trouxe–lhe a “dependência (…) mas não era uma grande dependência” e ao sentir–se melhor “sente as saudades dos filhos” e, apesar dos regulamentos organizacionais, consentiram “que eu estivesse com os miúdos e isso foi mui- to positivo”. A Laura tentava assumir–se como “mulher de 36 anos” arquivando o que lhe acontecera como enxaqueca cuja gravidade tornou possível a consciência de alguns aspetos da sua vida a serem revistos como seja o da sua relação com os filhos. E o internamento decorria nesta dinâmica de alívio até a Laura se confrontar com o verdadeiro diagnóstico, isto é, com o diagnóstico de AVC escrito pelo médico.

A tomada de consciência do diagnóstico, o choque enorme e a invisibilidade de si na equipa terapêutica

A tomada de consciência do fenómeno que a atinge, gera confrontos com novos e velhos espectros ameaçadores que vivera na urgência. A experiência então vivida é reatualizada à luz do presente com outros significados e sentidos decorrentes claramente da experiência vivida como situação–limite.

Já me sentia capaz de sair do quarto e fui andando pelo corredor até à sala de trabalho dos enfermeiros. Perante aquele quadro grande, onde está escrito quem são os doentes com os respetivos diagnósticos, tenho um choque enorme porque no meu nome eu vi

«AVC» – coisa que ninguém me tinha falado. Eu não acredito nisto, quer dizer, eu nem queria acreditar e perguntei – «mas isto é mesmo verdade»? E eles – “é, é”. Eu não queria acreditar! Claro que o neurologista falava–me em lesão isquémica, mas eu muito longe de “AVC”, da palavra “AVC” que tem um peso tão grande e que nós achamos que acontece nas pessoas idosas! E eu sou uma mulher nova! Quando vi aquele diagnóstico, dentro de mim ficou um turbilhão de sentimentos, uma coisa horrível! Como é possível, uma pessoa com 36 anos, que não fuma que não toma a pílula que não tem colesterol elevado que não tem hipertensão, ter um AVC? Não é fácil aceitar! Fiquei assim a olhar para o que me estava a acontecer, não havia nada a fazer. E o que é que eu poderia fazer? Estava tão longe de “AVC”, eu julgava que era da enxaqueca!

A Laura, subitamente, vê o que lhe aconteceu, está perante algo que, ao contrário do que ela pensava, fora definido claramente pelo médico e que consta no seu processo de inter- namento. O que lhe aconteceu tinha um outro nome a que ela ainda não tinha acedido. Para a Laura a “enxaqueca” – designação, usada por si, para o sofrimento limite que irrom- peu abruptamente na sua vida – escondeu o que a expressão “lesão isquémica”, usada pelo neurologista, significa no vocabulário e na comunicação entre profissionais de saúde que a Laura também é. Neste âmbito, aquelas palavras indicam fenómenos com gravidade di- ferente para a pessoa que o experiência e o uso delas não é inocente. De facto, ao ouvir do neurologista “está a fazer uma lesão isquémica”, a Laura não lhe atribui qualquer significado porquanto “não me ressoava a nada”. Nem o neurologista explicava nem a Laura pergunta- va. Parecia que as palavras que ambos usavam cooperavam numa abordagem protetora de uma relação mais favorável às decisões terapêuticas.

A Laura Sá ao olhar o que está escrito “não quer acreditar” no que vê e compreende, duvi- dando, já que “ninguém me tinha falado”. Em certa medida, a expressão “AVC” ao não ter sido usada, é como “eles” lhe tivessem ocultado o verdadeiro diagnóstico – aquele que lhe ressoava pleno de significado. Na verdade, é um diagnóstico que a atinge duplamente. Para a Laura “AVC” é uma situação de doença pesada “que acontece nas pessoas idosas”, mas ela não é idosa e afirma com veemência – “eu sou uma mulher nova” como se pudesse reparar a ferida aberta na sua própria identidade, por tal diagnóstico. Latente fica a interrogação incrédula – sou nova ou sou velha? De seguida emerge novo paradoxo relacionado com os fatores de risco. Se presentes, são propiciadores das condições favoráveis ao eclodir da doença, o que estava longe de acontecer com a Laura. Considera–se vítima de equívocos e grita a revolta que nela cresce – “como é possível, uma pessoa com 36 anos, que não fuma que

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não toma a pílula que não tem colesterol elevado que não tem hipertensão, ter um AVC?”. O “choque enorme “ decorre da tomada de consciência do diagnóstico, sem dúvida, mas é agudamente avivado pela ausência de um acolhimento cuidado em que a clarificação do diagnóstico, no seu ponto de vista, era um dever. A Laura dá conta que, naquele espaço, ela é uma doente como todos os que figuram no quadro e essa, juntamente com o diagnóstico, é a representação de si, a única em que existe para os outros e que funda o relacionamento que apaga a sua pessoa para a reduzir aquela patologia e, consequentemente, ela é o seu “processo”. De facto, a Laura apela a outro olhar da equipa mas o que recebe é a invisibilida- de de si, evidenciada nas palavras que profere relativas aos enfermeiros “nem [deram] pela minha presença! Ignoraram–me completamente (…) Os processos ali estavam com eles e eu como se não existisse, não estivesse ali perante eles!”.

Fiquei atordoada, confundida por estar a olhar para um diagnóstico que nunca ninguém me tinha dito. Quem ali estava – que eram enfermeiros – parecia nem dar pela minha presença! Ignoraram–me completamente, consultavam e escreviam nos processos que tinham em mãos e ignoraram–me completamente! Os processos ali estavam com eles e eu como se não existisse, não estivesse ali perante eles! Eu era uma mulher nova, muito nova para AVC! E o médico minimizava para eu não me assustar? Como era possível um AVC sem fatores de risco? Fico deveras assustada, fiquei apavorada, voltei para quarto, estava sozinha, angustiada, confusa e atordoada. Chorei, chorei.

O desespero que se instalou na Laura advém não só do facto de ela saber o que é que signifi- ca ter um “AVC” e que está colado ao seu nome. É, particularmente, sentir–se ludibriada em termos das condições de saúde que intencionalmente procurou introduzir na sua forma de viver mas que não se constituíram em defesa contra o AVC que lhe aconteceu. É, também o despojamento da sua dimensão profissional agido pela equipa ao não a incluir no seu processo terapêutico, nomeadamente através de informação adequada. Estas razões – que abalaram como um terramoto os pilares em que sustinha o seu quotidiano – tornaram a situação em que se encontrava ainda mais inesperada, incompreensível, gerando nela um estado de solidão que ela descreve no excerto “Fico deveras assustada, fiquei apavorada, (…) angustiada, confusa e atordoada”. Ao ver–se incapaz de alterar esta inevitabilidade e o horror lhe mostra as dificuldades que já vislumbra, a Laura interroga–se como pode aceitar o inaceitável e neste ato surge a possibilidade de uma resposta que este fragmento da sua narrativa anuncia “Não é fácil aceitar! Fiquei assim a olhar para o que me estava a acontecer,

não havia nada a fazer. E o que é que eu poderia fazer?”. A narrativa é sugestiva da agressão, do tempo desconcertado em que a Laura, de súbito, se viu mergulhada e presa, a insegu- rança irrompendo face ao que julgava saber de si. É a impensável situação–limite com que a Laura se confronta no interior de si mesma que lhe possibilita a espera do que procura e o que procura é o que pode dar sentido ao que lhe está a acontecer.

O INTERNAMENTO: O LUGAR FRONTEIRA ENTRE A VIDA SUSPENSA

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