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DEVORADO POR UM CANCRO E DEVASTADO POR UM ENFARTE: O HORIZONTE DE SENTIDO DA SITUAÇÃO–LIMITE

A expressão “devorado por um cancro e devastado por um enfarte “ surge pontualmente nas nossas conversas, certamente, para o Carlos (se)contar a violência e a destruição excessiva, a ameaça de morte pronunciada por cada situação em que se viu envolvido. Os vocábulos usados denunciam o modo diverso de como foram vividas. Um e outro remetem para o sofrimento do Carlos ao ser afrontado com a perda da vida, com a possibilidade real de desaparecer do mundo onde existe. Subitamente, sentiu–se aniquilado pelo enfarte e a “ex- periência terminal”, enquanto com o linfoma percebeu que poderia “morrer a prazo”, isto é, num tempo mais ou menos longo determinado pela voracidade da doença ao nutrir–se da pessoa que a alberga e foi o que o Carlos sentiu – sentiu–se a ser “devorado por um cancro”. Porém, este modo de (se) dizer sugere outros significados que importam à sua narrativa. É uma expressão que configura de modo exemplar o arco temporal da experiência do limite que viveu. É como se enunciasse o acontecimento com que se confrontou, remetendo para uma outra realidade inscrita profundamente no seu corpo que representa, não a primeira nem a segunda situação vividas de per si, mas a que foi criada pelo sentido e significado que a sequência das duas geraram e imprimiram à sua vida que é mais e distinto do que poderiam acarretar cada uma ou mesmo o seu somatório. Carlos Ventura ao convocar a experiência que viveu faz o seu relato em função do tempo longo que aqueles acontecimentos centrais insinuam e que, simultaneamente, definem e determinam o espaço de significação e o ho- rizonte de sentido em que se enxerta e traça o caminho de regresso à sua vida quotidiana.

(…) Para contar como foi depois do enfarte não posso deixar de falar sobre o acontecimento primeiro, onde tudo começou, 4 anos antes. São acontecimentos que não posso desligar, estão muito relacionados. Primeiro fui ruminado por um cancro e, 3 a 4 anos depois, quando eu es- tava sossegado na minha vida, de repente fui devassado por um enfarte, tiraram–me o tapete e tombei, morri com um enfarte, morri com a paragem cardíaca por fibrilhação ventricular, morri, morri no hospital (…) viram–se à rasca para me ressuscitar (…) O meu enfarte foi de- rivado da radioterapia. (…) Com o cancro senti a morte a prazo. Com o enfarte percebemos o quanto a nossa vida é frágil, temos a perceção que para morrer basta apenas estar vivo. (…) Acontecer–nos isto já é muito. Mas eu passei pelas duas – devorado por um cancro e devastado por um enfarte – uma a seguir à outra, é um bocado, é ainda muito mais forte! (…) é sobre- tudo a questão da morte (…) Essa sensação de mortalidade que de repente se instala em nós

128 MARIA TERESA DOS SANTOS REBELO

(…) o cancro é uma doença maléfica (…) e embora não se veja, sabe–se que está ali um sinal qualquer de morte a prazo. A experiência do enfarte é muito mais violenta (…) morte súbita foi o que me aconteceu (…) ocorre (…) a seguir a um enfarte daqueles (…).A minha sorte foi estar a ser atendido no hospital. Temos muito medo perante a morte (…) Afinal a morte é apenas um momento especial para quem está vivo e nos acompanha. Para quem morre deixou de fazer parte do tempo, deixou de existir, não existe para si. (…) Demorou muito tempo a eu voltar a ter a certeza que ia acordar no dia seguinte (…) é um processo longo, invisível e silencioso (…) o tempo é um grande aliado (…) foi um processo lento (…) o mais importante foi largar as rotinas da doença, entrar no circuito da vida diária com as suas rotinas próprias do desenrolar dos dias e as quebras na eternidade da viagem. É isto que melhor caracteriza a vida (…) neste processo todo que atravessei, tudo somadinho foram 6 anos – aprendi muito, no acumular das duas (…) agora já me sinto como dantes (…).Penso que um dia terei de mor- rer que posso adoecer, quer dizer, [já me sinto como] como qualquer pessoa perante a vida (…) A narrativa é elucidativa quanto ao que é central tanto numa como na outra situação – “é sobretudo a questão da morte (…) temos muito medo perante a morte” – a experiência da fragilidade e da impotência, a consciência da sua finitude, sentir no seu corpo a possibili- dade de “deixar fazer parte do tempo, deixar de existir” como o Carlos explicita ao querer dizer o que é a morte. É uma experiência vivida por si de modo distinto entre dois tempos – “uma morte a prazo” através da “sensação de mortalidade que se instala em nós” inscrita pelo cancro que o “devora” e “uma morte súbita” como um facto de tal modo devastador que surge na narrativa a inverosimilhança da aniquilação total – “morri, morri no hospital e viram–se à rasca para me ressuscitar”. É este o lugar em que se cruzam os dois acontecimen- tos que lhe aconteceram e se cavalga o espaço de tempo que os separava, despojando–o da ausência de significado que emerge a experiência da sua fragilidade como ser no mundo e a possibilidade da sua morte – o lugar central da experiência que viveu como situação–limite. É assim que o regresso à vida quotidiana, na perspetiva do Carlos Ventura, é a viagem de aceitação, como ele próprio diz, de que “um dia terei de morrer que posso adoecer, quer di- zer, [sentir–me] como qualquer pessoa perante a vida”. Relatar essa experiência é ser capaz de enunciar o que viveu nessa viagem de aceitação da possibilidade da sua morte que “é um processo longo, invisível e silencioso”. Uma viagem que inicia com a situação de cancro, passa pela experiência vivida com o enfarte e prossegue até “entrar no circuito da vida diá- ria com as suas rotinas próprias do desenrolar dos dias e as quebras na eternidade da viagem. É isto que melhor caracteriza a vida”.

A análise prossegue também este percurso e pretende dar conta dos momentos experien- ciais, isto é, o modo como o Carlos com eles se relaciona, os vive no seu próprio corpo e os inclui na sua existência. Na verdade, é a experiência vivida que circunscreve e pontua o trajeto de regresso à vida quotidiana que constituem os núcleos de sentido que importa desocultar e revelar. Neles reside a estrutura do fenómeno que nos interessa visualizar e compreender.

A RUTURA NA SUA EXISTÊNCIA HABITUAL: O CORPO AMEAÇADO,

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