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O INTERNAMENTO: O LUGAR FRONTEIRA ENTRE A VIDA SUSPENSA E O TEMPO PARADO E A ENUNCIAÇÃO DO SENTIDO DO AVC

Ainda de sublinhar que é à luz desta experiência vivida de perdas que este acontecimento, inesperado e súbito, inscreveu na sua própria história que a Laura Sá reconfigura e perspe- tiva o período de internamento – um tempo e um espaço vivido de um modo muito par- ticular, entre sentir agudamente a sua impotência para alterar a sua situação e a imperiosa necessidade de pensar sobre o seu viver

Quando estamos internados o tempo pára e percebemos que ali nada é importante porque o tempo parou. Nunca tinha sentido isso e é uma coisa que me aterrorizou. O dia é igual à noite e aquela sensação de que lá fora continua tudo igual,toda a gente a correr (…) e nós ali com o tempo parado! (…) eu pensava (…) Refleti sobre a sensação de estar presa na situação, suspensa num tempo parado e só eu ligava mais ninguém e isto incomodou–me imenso, inco- modou–me. Eu estava muito angustiada, receosa, preocupada e não era experiente em termos de saber o que significava aquilo na minha vida. Mas ninguém adiantou nada (…) É uma sensação horrível de não viver, de não estar em condições, de não poder fazer nada, só deixar a vida correr e ficar ali à espera. É difícil. Nós um dia saímos de casa e depois não voltamos! A vida lá fora continua mas nós não estamos lá. Nós estamos aqui, neste lugar, parados, suspensa e presa (…) só, à espera que tratassem de mim e que melhorasse, com a minha vida suspensa, parada! É um baque grande na pessoa.

A Laura Sá fala do internamento como um tempo de não–vida, ou melhor de vida sus- pensa, um tempo que não se rege pelo ritmo da vida e esta não pertence ao lugar que é, agora, o seu – um lugar cujas prioridades são bem distintas daquelas que faziam o seu quotidiano. É sobretudo a experiência que vive face à perda de um corpo outro – um corpo pujante e imperecível. O corpo atual é um corpo que a narrativa explicita como “não estar em condições, de não poder fazer nada, só deixar a vida correr” – anomaliascuja reparação se processa neste lugar em que está só. Aliás, só ela percebe este lugar – apenas existe para

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si – e ninguém dá conta do terror que lhe parou o tempo e remeteu a sua vida para o mais fundo de si mesma, à espera. Vive com angústia, neste lugar suspenso para pessoas com vidas suspensas, como é a sua, sem saber o que vai ser de si pois “não era experiente em termos de saber o que significava aquilo na minha vida (…) ninguém adiantou nada”, se bem que tenha a certeza que as coisas não vão ser como dantes. O seu quotidiano habitual ficou para aquém daquele limite que a situação de sofrimento lhe impôs – um corte abrupto e violento que a Laura exterioriza na expressão “um dia saímos de casa e depois não voltamos” como se lhe fosse impossível regressar à sua vida quotidiana, a si. Evidencia, deste modo, a fratura que o acontecimento provocou na história da sua vida instaurando a divisão num antes e num depois.

Assim o internamento é um elemento importante no cenário da transformação da sua vida, uma espécie de limbo, um lugar de expiação, de passagem entre o quotidiano passado e o que há–de vir, entre a morte – “sentir que podia morrer” e a vida – “a vida lá fora continua mas nós não estamos lá, nós estamos neste lugar aqui” e é neste lugar do internamento que surge a esperança de “que tratassem de mim e que eu melhorasse” para não “ficar presa (…) parada” e pudesse regressar à “vida lá fora”. Ao confrontar–se com o diagnóstico de “AVC” que vive como “um baque grande”recompõe o que lhe acontecera e, consequentemente, a relação consigo mesma, com os outros e o seu mundo.

Tudo isto me obrigou a refletir…, como é que todas as coisas que eram importantes lá fora para mim, na minha vida, estavam suspensas porque eu estou aqui, assim, agora não posso fazer nada e alguém vai ter de fazer por mim – afinal, era capaz de não serem tão importantes e eu podia ter olhado para as coisas de outra forma. E de repente dou comigo a pensar como se fosse uma voz que vinha de dentro de mim e que eu não podia deixar de ouvir – “se as coi- sas acontecem, têm um sentido e provavelmente precisavas de ter um aviso para mudares de vida”! Isto era um sinal (…) eu falhei (…) Eu não morri. Tenho de conseguir viver por mim e por os meus filhos. Sentir que podia morrer, sentir–me mesmo doente, sentir que fazia falta aos meus filhos, são situações em que temos que parar porque somos obrigadas a parar (…) Eu sou cristã. Eu sei que não morri para preparar os meus filhos para poderem encarar a morte sozinhos.

A Laura é obrigada a pensar, a fazer uma revisão do seu viver porque “sentir que podia morrer (…) que fazia falta aos meus filhos, são situações em que temos que parar”. É nesta di- nâmica que a Laura clarifica o sentido que buscava para a situação–limite que lhe impunha, pela finitude anunciada, uma outra compreensão da sua existência. Aliás, já na urgência, nos momentos em que se sentiu a morrer, os filhos surgiram–lhe como uma âncora de vida.

O significado de toda a situação vem de dentro de si “como se fosse uma voz que não podia deixar de ouvir”. Essa voz interior revela o sentido que a Laura esperava – “é um aviso para mudares de vida (…) isto [o AVC] é um sinal” – denunciando, assim, um fundo de culpabi- lidade e de autocrítica ao modo como tem vivido, traduzido na palavras “falhei (…) errei” que tantas vezes usou na narrativa ao refletir sobre a sua função de mãe. Esta compreensão é ampliada pela dimensão cristã da sua existência que possibilita a enunciação do sentido: “sei que não morri para preparar os meus filhos para poderem encarar a morte sozinhos”. O AVC como “aviso” ao mostrar–lhe as condições “erradas” que impunha à sua vida trans- muta–se em acontecimento salutar para si e para os seus, em particular na relação com os filhos que reassumem uma nova centralidade no seu projeto de vida, pela certeza do senti- do da sua sobrevivência.

Não estava em condições de continuar a viver como estava (…) já não podia mais. De repente, eu era uma pessoa com um grande mal–estar, só, à espera que tratassem de mim e que pudesse melhorar (…) Estas situações têm que ter algum impacto em nós e em mim teve e tive de pen- sar, fui obrigada a parar e pensar neste aviso, sim, isto tinha sido um aviso (…) eu sabia que o AVC era o aviso para que eu mudasse de vida (…) senti que o AVC era um sinal de alarme (…) refleti muito (…) tinha que ser capaz de transformar a minha situação (…) numa situa- ção positiva, isto é, ser capaz de dar a volta

É este sentido que permite à Laura Sá traçar o regresso à sua vida quotidiana, isto é, o sentido que atribui ao que lhe está a acontecer passa a ser bússola na construção desse caminho. Cresce nela o desejo de converter a situação de sofrimento numa situação “po- sitiva”. Dá início a um outro modo de ver assente no tempo presente, mas já futuro, como sugere aquela afirmação. Só então, pode perspetivar outro devir que mereça a “oportuni- dade” dada cuja condição fora ditada de si para si e “que dizia – tens que mudar de vida”. Paulatinamente, a Laura permite–se esboçar como causa para o “seu” AVC o stresse em que vivia, um acreditar que veio facilitar a aceitação necessária à concretização do que, dentro dela, compreendia como “o poder viver, mas se mudasse de vida”. Aliás, é a certeza deste propósito que possibilita à Laura vislumbrar já outro futuro porque ela é capaz de “dar a volta” e superar–se, iniciando, assim, o trabalho da sua própria transformação.

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O REGRESSO A CASA: ENTRE A DEPENDÊNCIA E O SER CAPAZ

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