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A ALTA: DA INSEGURANÇA EM SAIR DAQUELE LUGAR DE CONFIANÇA À CONFIANÇA NO SEU CORPO

À semelhança do que aconteceu na situação anterior, o Carlos nem queria acreditar que ia ter de sair do hospital. Tinha alta. Custa–lhe aceitar que está em condições para dispensar os cuidados e a atenção de que é alvo, no hospital. Inseguro e aflito revia o que lhe tinha acontecido e como tinha sido ajudado. Tem medo de um novo enfarte, de morrer. Ainda não confia no seu corpo como não confia nas pessoas que com ele coabitam. O Carlos não se sente preparado para viver fora do hospital e enfrentar o seu quotidiano.

Um dia, de repente, a minha médica – “Então, preparado para se ir embora? Tem para onde ir e tem quem tome conta de si quando sair daqui?” Lembra–me de ter muita aflição quando me deu alta – a insegurança que era para mim sair dali tão bem que estava para aquilo que eu precisava. De repente vamos lá para fora. Os últimos conselhos médicos, retoques na medi- cação – “Pode sair, pode ir à sua vida”! Festejo ou choro? “Por nós está tudo bem”. De repente é como se me cortassem as amarras e posso ir à deriva. Era a segunda vez que me diziam esta frase mas agora sentia–a bem diferente. Os sintomas do enfarte são sintomas de muita coisa e eu morri no hospital. No hospital sentia–me seguro e acabam todos por tomarem conta de nós. Há vigilância. É um lugar de confiança, (…) sabem o que têm de fazer. É demasiado cedo para me ir embora” voltei a pensar. “Pode voltar quando precisar”, mas a consulta é só daí a um mês. A insegurança que era para mim sair dali! Senti uma grande renitência em voltar para casa, em sair do hospital. Afinal o enfarte desligou–me da vida. Não me apetecia regressar! O Carlos Ventura fica em casa da sogra cerca de dois meses. Sob a sua vigilância o Carlos organizou o seu dia–a–a–dia como se estivesse no hospital, seguindo as mesmas rotinas, o que parece dar–lhe segurança. Mesmo a presença da sogra tinha o efeito idêntico à pre- sença das enfermeiras – era calmante e apaziguadora. Nos primeiros tempos, além de estar acamado, o Carlos diz que “não fazia mais nada senão comer”, aumentando significativa- mente de peso, o que melhorou o seu “estado físico tão debilitado (…) estava um caco”

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A convalescença foi em casa da minha sogra. A minha relação com ela foi sempre muito boa, uma relação de presença, presença constante, às vezes dormitava, acordava e abria um olho, lá ao fundo estava uma sombra – era a minha sogra – a presença dela foi muito importante. No princípio, passava o tempo praticamente na cama; eu trouxe comigo os tiques das rotinas hospitalares (…) Comia e dormia e a minha sogra zelava pela minha alimentação e pelo meu sono (…) é um bocado animal mas não fazia mais nada senão comer Engordei 30k. (…) Eu próprio me surpreendi com o meu estado físico, tao debilitado que eu estava – estava um caco! Apesar da dependência manifesta, o Carlos não via nisso motivo de preocupação porque considera que, neste plano, tudo voltará ao normal. Até lá alguém o ajuda nas suas ativida- des, porque o Carlos ainda não pode “fazer esforços”.

Para me levantar, para me deitar (…). Preciso de ajuda para quase tudo: medir TA, tratar das suturas, calçar–me, soerguer–me. Não posso fazer esforços, estou bastante dorido.

O Carlos, entretanto, começou com crises de pânico, em que os sintomas eram em tudo idênticos aos de enfarte. O medo tomava conta do Carlos e os familiares sentiam–se “apa- vorados”. Normalmente, ocorriam à hora da refeição e todos ficavam muito incomodados e o Carlos voltou a encerrar–se no seu quarto e “voltei a acamado”.

É de sublinhar que era verão e a casa onde o Carlos convalescia estava cheia de gente, familiares que não se coibiam de dar as suas opiniões e conselhos que ele sentia como “uma pressão enorme”. A insegurança e o medo de não acordar no dia seguinte voltaram à noite em que via e revia “o filme” do que lhe acontecera.

Por esta altura, tive umas crises que podem ser classificadas como de pânico. (…) eu não sabia o que se estava a passar e tinha medo. (…) os meus familiares, sentiam–se (…) apavorados. A atenção sobre mim, sobre o meu dia–a–dia era brutal, (…) os ataques repetiam–se à vista de toda a gente (…) voltei a isolar–me (…) a acamado– Tive períodos muito difíceis, de insegu- rança, de não saber se acordava, de incerteza de acordar vivo no dia seguinte. (…) tive muitas noites de insónia em que revia todo o filme (…) Não me apetecia ver nem falar com ninguém, nem atender o telefone

É neste período, em que o Carlos se sente enredado novamente pela doença que se dá conta que tudo e todos são vistos por ele como hostis, que ninguém o compreende e que começam a dar outra conotação ao seu comportamento. Recorria aos médicos, esclarecia dúvidas

sobre a medicação, mas as crises voltavam. Como aconteceu também anteriormente, então os amigos “recomendaram–me fortemente o psiquiatra”

Como anteriormente a família e os amigos não compreendem. Começaram a achar– me esquisito (…) de estar tão mentalmente isolado e aí recomendaram–me fortemen- te o psiquiatra. (…) Os amigos não me largavam – “Não se passa por uma coisa des- tas, por um enfarte desta natureza, não se ultrapassa sem uma ajuda do psiquiatra” – diziam. Ainda procurei seguir o conselho, mas, rapidamente, percebi que um xanax resolvia isso. E depois habituei–me àquela coisa, acabei por não ir ao psiquiatra. Perante a persistência dos sintomas, de idas e vindas ao hospital, o Carlos acabou por “ser reinternado”. Mas foi “um empurrão” que o seu médico, após “uma prova de esforço que estava bem” lhe soube dar que ajudou o Carlos a compreender o que se passava nele. O mé- dico disse–lhe “livre–se de nós, livre–se de nós” o que, para o Carlos, fazia sentido e que ele traduziu como “precisava de aprender como confiar no meu corpo, de saber ler as suas falas. E assim fiz”.

Cheguei a ir ao hospital, uma ou duas vezes. Cheguei a ser reinternado. Um dos mé- dicos “deu–me um belo empurrão” – fiz uma prova de esforço que estava bem e no fim disse–me – “Olhe, sabe uma coisa, livre–se de nós, livre–se de nós” e isso foi muito bom, foi um empurrão bem dado, estava mesmo a precisar. Eu não tinha confiança no meu próprio corpo, não sabia, não sabia como me comportar, não sabia como in- terpretar, (…) Precisava de aprender como confiar no meu corpo, de saber ler as suas falas. E assim fiz.

Mais uma vez o Carlos começa a pensar e a tomar decisões sobre si e a sua situação. Como dantes, “intencionalmente, definia as metas que queria atingir em cada dia e fazia o balanço”. Deixar o quarto, fazer exercício físico e conseguir “ocupar os dias” consubstanciaram–se nas metas desejadas. Se, ainda, o seu estado físico é débil, o “estado mental” manifesta “uma energia” que há muito o Carlos Ventura desconhecia que faz com que o Carlos, novamente, se reconheça. Começa a lidar de outro modo com o seu corpo, tenta perceber as suas falas, o que lhe mais convém e, lentamente, começa a confiar no corpo que tem, no seu corpo.

Comecei novamente a sair do quarto para tomar as refeições em família. Mais tarde comecei a testar–me – veio o exercício físico, caminhar, isto é, deambular pelo corredor como treino, comecei a esforçar–me todos os dias um pouco para ir mais adiante. E isto já foi intencional. Já quando foi do cancro também, intencionalmente, definia as metas que queria atingir em

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cada dia e fazia o balanço. Mas constato diversas vezes que há aspetos do meu estado físico tão debilitado que “não casam bem” com o meu estado mental. Sentia uma chama, uma energia em mim que me percorre e dizia – “hoje é um dia, amanhã será outro, volta a tentar e vais ver, as coisas hão–de melhorar” – penso, pensava, sentia isto dentro de mim. E concluo, apesar de tudo ainda estou parecido com o que eu era!(…) Comecei a entender os sintomas e atuar reduzindo a medicação, a tomar a iniciativa de fazer exercício físico, a andar dentro de casa 1 hora. Percebi que precisava de um ambiente em que não me fosse exigido dar atenção, con- versar, o silêncio era mais benéfico para mim. Ia recuperando, sentia–me a progredir. Começo a regressar à tona (…) um dia decidi aventurar–me no espaço exterior. Foi depois da consulta de revisão – eu já não me lembrava de mim sem pijama

O Carlos larga o pijama e aventura–se “no espaço exterior”, o que não deixa de ser a metá- fora do que vive. O Carlos começa a despir a pele de doente, o pijama, e de repente vê “já não me lembrava de mim” sem ser doente. É a sua oportunidade para se confrontar com “a transformação que se operou no meu corpo” ao longo dos últimos três meses e comenta “Pensei no que é ser velho” . De todo o modo sente–se a recuperar e “a progredir”.

A minha mulher preparou um quarto só para mim, pensando que eu nunca mais me ia mexer, ia ficar de cama para sempre ou uma coisa assim. (…) Mas eu esperava voltar ao que era, quer dizer, não havia nada em mim como por exemplo (…) corte da medula (…) não, eu não tinha feito uma coisa desse género. Também não sabia como é que ia ficar nem o que é que me ia acontecer, não tinha nenhuma noção disso nem na altura isso me preocupava. Mas a decisão da minha mulher foi péssima, senti–me destinado a ser doente! Teve como consequência vol- tar o tempo da incerteza de acordar no dia seguinte. Como no hospital, durante a noite rebo- bino os acontecimentos vezes sem conta, junto os fragmentos e a poeira vai assentando. sei que tive muitas noites de insónia em que revia todo o filme (…) Eu estava zangado, muito zangado com tudo o que me tinha acontecido nos últimos 4 a 5 anos devorado por um cancro e a seguir devastado por um enfarte. O mais duro (…) a fadiga. Desejo a tranquilidade, o silêncio. Com o regresso à sua casa o Carlos apercebeu–se de como a sua mulher se posicionava perante si. Ela acreditava “que eu nunca mais me ia mexer, ia ficar de cama para sempre ou uma coisa assim”, para organizar a casa de outro modo, com um quarto só para ele. O Carlos “esperava voltar ao que era” apesar da incerteza. Sentiu, na decisão concretizada pela sua mulher “destinado a ser doente” o que teve consequências nefastas como “voltar o tempo da incerteza de acordar no dia seguinte”, insónias e querer procurar, dentro de si, o que lhe acontecera.

Houve outros fenómenos e que foram difíceis que é o horror em relação ao mundo exterior, ao mundo do trabalho e ter notícias do trabalho, eu não queria saber nada disso. Só pensava – “já tive um cancro, um enfarte, vou–me reformar, vou mas é embora disto tudo”, zangado, zangado. E estive com essas ideias, de não por os pés em mais lado nenhum, de me reformar. Também havia metade de mim que me dizia “essa atitude é um bocado estúpida a que estás a ter”. Acabei por não tomar essa atitude e fiz bem e deixei que as coisas corressem e as coisas lá se foram resolvendo. Ficamos muito tempo a cheirar a doente e se não arrepiamos caminho transformamo–nos num ser não humano (…) A ansiedade entranha–se no corpo, nos ossos, nos músculos e o corpo é um corpo crispado.

Todavia é no contexto da “decisão péssima” que o Carlos se dá conta que ficou tempo de- mais “a cheirar a doente” e é nesta qualidade que surge perante os outros, perante o mundo. Começa a evidenciar alguma distância para poder recortar outra compreensão face às si- tuações pelas quais passou.

O REGRESSO AO DIA–A–DIA: LARGAR AS ROTINAS DA DOENÇA,

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