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2. COMUNICAÇÃO PÚBLICA, DEBATE E ACONTECIMENTO

2.3. Acontecimento Público

O acontecimento não é simples fato da vida cotidiana, ele provoca descontinuidades, instaura rupturas no curso da normalidade conhecida, “apresenta, pois, um carácter inaugural, de tal forma que, ao produzir-se, ele não é, apenas, o início de um processo, mas marca também o fim de uma época e o começo de outra” (QUÉRÉ, 2005, p. 3). No entanto, a falha, o corte provocado pela irrupção do acontecimento apenas se produz na existência das condições necessárias para que ocorra, sendo, assim, condicionado, mas jamais completamente determinado, pelo seu contexto. O acontecimento carrega sempre alguma medida de indeterminação, rompendo com o estabelecido e ultrapassando as possibilidades conhecidas.

Além disso, o acontecimento também se destaca dos simples fatos pelo seu poder de afetar os sujeitos individuais e coletivos na sua experiência. “ Um acontecimento acontece, e acontece com pessoas, e na organização da vida de uma sociedade ou de um grupo. Ele se passa no domínio da experiência e se realiza - ou não - a partir de seu poder de afetação na ação dos sujeitos” (FRANÇA, 2012a, p. 45 - grifo da autora). O acontecimento o é porque acontece a alguém, se impõe na experiência dos sujeitos.

É por acontecer a alguém que o acontecimento “se torna” (MEAD, 1932 apud QUÉRÉ, 2005). Nesse sentido, é necessário encontrar formas de retomar a normalidade interrompida em um presente evenemencial, encontrar maneiras de “suprir a falha” (COELHO, 2013). Dessa forma, o acontecimento faz agir . Os sujeitos não se limitam a suportar os acontecimentos, mas respondem e reagem a ele. Assim, os públicos do acontecimento emergem “na experiência ligada a um contexto e ao estabelecimento de uma estrutura de agenciamento que convoca e interpela os sujeitos, posicionando-os e ordenando sua ação” (FRANÇA; ALMEIDA, 2008, p.7), de forma que, diante do acontecimento, os sujeitos fazem escolhas, tomam posições, adotam comportamentos ao mesmo tempo em que recusam outros.

[...] ele o é exatamente porque se faz perceber, e nos faz falar. Ele não significa apenas quando se faz discurso, mas é ele que tenciona os sentidos existentes, demanda ser compreendido e impulsiona o processo de semiotização dentro do qual passa a uma outra fase de sua existência. (FRANÇA, 2012a, p. 45 - grifo da autora).

Ao falar em “outra fase de sua existência”, França (2012a) se refere ao que nomeia como “ segunda vida ” do acontecimento (FRANÇA, 2012a). Para a autora, assim como para Quéré, o acontecimento não é nem somente aqueles fatos noticiáveis, que suscitam o interesse público (ou do público), como sugerem perspectivas empiristas; nem somente a narração desses fatos, especialmente pela mídia, como argumentam perspectivas construtivistas. Os acontecimentos são, portanto, o resultado indissociável desses dois momentos, ou duas “vidas”. Para a França (2012a, p. 45), não restam dúvidas “quanto à força da linguagem, porém não podemos fazer dela o Verbo edificador do mundo e da vida social”. Quéré (2012) distingue essas duas fases do acontecimento como acontecimentos existenciais e acontecimentos-objetos . A primeira diz respeito às mudanças e rupturas experienciadas concretamente “sob o aspecto de seu happening e experimentados simultaneamente sobre o prisma de suas qualidades imediatas e de seu condicionamento externo” (QUÉRÉ, 2012, p. 37). Já a segunda é referente ao acontecimento enquanto objeto de pensamento e de discurso. A principal diferença entre essas duas formas do acontecimento é o seu “grau de simbolização” (QUÉRÉ, 2012), muito maior na segunda, mas inevitavelmente presente na primeira, uma vez que apreendemos o mundo através das formas simbólicas assimiladas.

Essas duas formas coexistem. Ao se instaurar na dimensão da experiência, o acontecimento suscita o pensamento, a narrativa, de maneira a que possamos, transformando-o em objeto, intervir no curso do acontecimento, atenuando seu impacto de ruptura e, sobretudo, domesticando seu desenvolvimento e seus sentidos. De forma inversa, o acontecimento narrado, transformado em discurso, é sempre recebido no domínio da experiência (QUÉRÉ, 2012).

Sustentando-se nos escritos de Dewey (1925), Quéré (2012) considera a comunicação como o lugar onde o acontecimento-objeto se constitui.

Quando a comunicação se produz, todos os acontecimentos naturais são submetidos a uma reconsideração e revisão; eles são readaptados para satisfazer as exigências da conversação, seja em caso de discurso público, seja em caso de início de discurso designado por pensamento. [...] Tendo sido nomeados, [...] os acontecimentos levam uma segunda vida, independente. Além de sua existência original, eles são submetidos a uma experimentação como ideias: seus significados podem ser combinados e reorganizadas ilimitadamente pela imaginação, e o resultado desta experimentação interna que é o pensamento pode entrar em interação com os

acontecimentos em estado bruto e não tratados. (DEWEY, 1925, p. 166 apud QUÉRÉ, 2012, p. 31).

A essa altura o acontecimento passa a existir também como representação (FRANÇA, 2012b), e isso se dá tanto na conversação cotidiana como em esferas mais ou menos institucionalizadas de debate, mas, principalmente nas esferas midiáticas. “É principalmente neste domínio que os acontecimentos são revividos e ganham sua existência simbólica. E às vezes essa segunda vida é tão transformadora, e causa tanto impacto, que ela atua igualmente (e novamente) como acontecimento existencial” (FRANÇA, 2012b, p.16).

É próprio do acontecimento suscitar a simbolização, a representação, os sentidos, na busca por apreendê-lo. Como argumenta Romano ( apud Quéré, 2005, p. 16), o acontecimento carrega “as condições da sua própria inteligência”. Nesse sentido, Quéré (2005) apresenta-o como um fenômeno de ordem hermenêutica : “por um lado, ele pede para ser compreendido, e não apenas explicado, por causas; por outro, ele faz compreender as coisas – tem, portanto, um poder de revelação. Pode assim revelar uma situação problemática que aguarda resolução” (QUÉRÉ, 2005, p.3). O acontecimento não apenas revela essas situações problemáticas, ou “campos problemáticos”, na denominação também proposta pelo autor, como novos campos problemáticos podem se formar a partir dele.

Assim, a irrupção do acontecimento, ao constituir um presente evenemencial, permite que seja ele “a esclarecer o seu contexto, a modificar a inteligência de acontecimentos ou de experiências anteriores, a revelar uma situação com os seus horizontes” (QUÉRÉ, 2005, p. 13), “ o acontecimento é gerador de informações, perturbador dos quadros ” (FRANÇA, 2012a, p. 49). Para França (2012a, p. 46), perceber o poder hermenêutico do acontecimento permite ver mais do que os discursos sobre essas ocorrências, mas perceber esses discursos “organizando os sentidos dispersos”.

Esse presente do acontecimento, ao romper com a normalidade e com os sentidos correntes, “instala uma temporalidade estendida, convoca um passado com o qual ele possa estabelecer ligações, anuncia futuros possíveis” (FRANÇA, 2012a, p. 47). O passado e o futuro do acontecimento são relativos a esse presente evenemencial, eles não preexistem à irrupção do acontecimento, assim como não preexiste o contexto no qual ele se inscreve e o qual ele esclarece. Diante disso, Quéré (2012, p. 27) lembra que o passado não é absoluto, pois é “sempre o passado de um presente experiencial” de um acontecimento, e “o passado se modifica porque o presente passa por mudanças: um presente diferente faz surgir um passado

diferente”.

Os acontecimentos se inscrevem em diferentes dimensões da experiência e provocam diferentes níveis de afetação dos sujeitos individuais e coletivos. Nesse sentido, Quéré (2013) aborda a especificidade do acontecimento público : é o acontecimento inscrito no território dos problemas públicos e seu tratamento pela ação pública, que, para além da ação do Estado, “pode ser o resultado de movimentos sociais, de movimentos de opinião, de associações e de comissões de cidadãos, de intelectuais intervindo publicamente” (QUÉRÉ, 2011, p. 27). São acontecimentos que mobilizam o interesse público e que, portanto, provocam a emergência de públicos e a ação coletiva.

O acontecimento público provoca o envolvimento da mídia, da sociedade civil e do Estado (COELHO, 2013). Dessa forma, quando um acontecimento público “é suficientemente poderoso para provocar impactos na vida dos indivíduos e na sociedade, ele se impõe aos meios de comunicação de massa e atrai as instituições políticas” (WEBER, 2013, p. 190). Apropriado pela mídia, o acontecimento público poderá ser convertido em espetáculo político-midiático, permanecendo em pauta por tempo indeterminado se “a estrutura vital do acontecimento permanece aberta e oferece mais informações, outros ângulos e dados capazes de alimentar notícias, programas e discursos” (WEBER, 2013, p. 190). A permanência do acontecimento público na pauta midiática importa, segundo Quéré (2005, p. 22), por dois motivos: eles atuam como suportes “por um lado, da identificação e da exploração dos acontecimentos, por outro, do debate público através do qual as soluções são elaboradas ou experimentadas”.

O debate público sobre os acontecimentos públicos envolve “todos os tipos de actores sociais” (QUÉRÉ, 2005, p. 22). Nesse sentido, o acontecimento “instaura também um espaço comunicativo [...] que reúne aqueles que o experimentam e o interpretam” (MARQUES, 2012, p. 143). É nesse espaço comunicativo que se instauram os públicos e se dá o debate onde os sentidos abertos pela ruptura provocada pelo acontecimento são disputados.

Marques (2012) apresenta o debate público em torno dos acontecimentos a partir da noção de comunidades: comunidade ideal de linguagem, a partir de Habermas (1987); comunidade de aventura, utilizando a proposta de Quéré (2003); e comunidade de partilha, apresentada por Rancière (2004a).

Essas comunidades são políticas porque têm como principal característica o fato de serem fruto de um tipo de vínculo e de engajamento entre os sujeitos que as integram cuja finalidade é tentar, de forma discursiva e argumentativa, definir

individualizar e associar um acontecimento a um campo problemático específico (MARQUES, 2012, p. 144).

É o acontecimento que organiza o comum, que institui a comunidade 7. Ele leva os sujeitos a se afirmarem, comunicativamente, como integrantes de um mundo comum instaurado pelo acontecimento. E esse mundo comum “existe por meio do diálogo e da palavra”, ou seja, “[...] a formação de um mundo comum requer, portanto, uma ação comum através da linguagem” (MARQUES, 2012, p. 146).

O acontecimento é, portanto, atravessado pela comunicação em diversos níveis. Enquanto acontecimento-objeto ele suscita narrativas, discursos, que se dão tanto em conversas cotidianas, quanto através dos meios de comunicação de massa e, mais recentemente, pela internet. Além disso, ao abordarmos os acontecimentos públicos, o debate público, enquanto prática comunicativa que envolve os sujeitos por ele afetados, no âmbito da sociedade civil, do Estado e da mídia, se estabelece como instância fundamental de disputa de sentidos. O debate público sobre um acontecimento é especialmente desencadeador de processos de simbolização, uma vez que ele instaura um presente capaz de rever passados e anunciar futuros.