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DOS ESTUDANTES DO ENSINO SUPERIOR

2. Preditores e Correlatos da Saúde Mental em Estudantes do Ensino Superior

2.5. Acontecimentos de vida negativos

Os acontecimentos de vida negativos (AVN) são condições adversas a que todas as pessoas estão expostas. As experiências precoces adversas podem ter efeitos duradouros

99 sobre o organismo, designadamente nas respostas ao stress, nas estruturas cerebrais e nos processos emocionais (Heim, Newport, Mletzko, Miller, & Nemeroff, 2008). Os eventos stressantes precoces estão associados a danos neurodesenvolvimentais, podendo causar alterações neuropsicologias tais como défices cognitivos, na memória e aprendizagem (Carrion, Weems, & Reiss, 2007; De Bellis, Hooper, Woolley, & Shenk, 2010). O abuso infantil e a violência intrafamiliar incluem-se na categoria das vivências negativas com elevado potencial pernicioso, dada a sua capacidade de mudar negativamente a vida e a saúde mental das pessoas, com efeitos a longo prazo (Alves & Rodrigues, 2010; Maia & Resende, 2008).

Existe numa lista extensa de eventos31 físicos e emocionais com capacidade de provocar efeitos muito disruptivos na saúde mental a curto e longo prazo (Albornoz et al., 2010; Parker, Gladstone, Mitchell, Wilhelm, & Roy, 2000). Destacam-se os eventos que gravitam em torno da violência precoce intrafamiliar - negligencia, maus tratos, abuso (físico, emocional e sexual), violência entre os pais, e da separação ou perda de figuras significativas. Estes eventos ampliam o risco de sofrimento psíquico que se reflete quer na adolescência, geralmente através do comportamento, da agressividade, indisciplina ou frutos (Oldehinkel & Ormel, 2014) e na vida adulta (Sierra & Mesquita, 2006; Albornoz & Bandeira, 2010).

Acumular eventos negativos no início da vida pode contribuir para desencadear psicopatologias ao longo do desenvolvimento (Angst, Gamma, Rössler, Ajdacic, & Klein, 2011; Horesh & Iancu, 2010). As crianças com história de ambientes familiares adversos e eventos traumáticos têm vulnerabilidade a desenvolver transtorno de stress pós-traumático, mais dificuldades e problemas emocionais com os pares e, maior morbilidade relativa à ansiedade e depressão (Copeland, Keeler, Angold, & Costello, 2007, 2010; Flouri & Panourgia, 2011).

De acordo com uma recente meta-análise, incluem-se nos vários tipos de maus tratos a antipatia, negligência, abuso físico, abuso sexual e abuso psicológico ou emocional (Infurna et al., 2016). A interpretação e o significado que se atribui às vivências negativas determina à

posteriori se estas são sentidas como negativas ou não. Por essa razão, um mesmo evento

pode ser percebido como perigo por uma pessoa enquanto para outra, apenas um desafio (Gray et al., 2004; Heim et al., 2008; McLaughlin, Conron, Koenen, & Gilman, 2010).

31 Doença física e mental, abuso sexual, maus tratos e abuso infantil, abandono, violência doméstica (familiar, sexual, conjugal) situações de guerra, suicídio, luto, dificuldades escolares, acidentes trabalho, gravidez precoce, pobreza e catástrofe naturais (Albornoz & Bandeira, 2010).

100 Para a maioria das pessoas, a exposição a eventos negativos provoca numa reação de intensa excitação fisiológica, sentimentos de vulnerabilidade e estados afetivos negativos - angustia, ansiedade, pavor, tensão, horror, vergonha e perda de controlo (APA, 2013). Existe evidência consistente da influência negativa entre acontecimentos negativos na infância e dificuldades subsequentes nas relações interpessoais (Huh et al., 2014) e na esfera do humor, sobretudo relacionados com ansiedade social (Binelli et al., 2012) e com a depressão (Heim et al., 2002; Kaplow & Widom, 2007; Kinderman, Schwannauer, Pontin, & Tai, 2013; Negele et al., 2015). Mas também com as perturbações de stress pós-traumático (PTSD) (Burns, Jackson, & Harding, 2010) e com tentativas de suicídio (Harford, Yi, & Grant, 2014).

De acordo com Infurna et al. (2016) o abuso psicológico e negligência foram os que mais fortemente se associaram com a depressão. A Teoria Cognitiva Aron Beck, em 1963, oferece uma explicação plausível para este fenómeno, dado que defende que os afetos são secundários à cognição, e por essa razão, influenciam o modo peculiar de cada um vivenciar e interpretar os acontecimentos de vida negativos ou traumáticos ocorridos em idades precoces. Esta teoria defende que os processos cognitivos na depressão têm uma etiopatogenia assente na construção negativa do pensamento, em erros cognitivos e

esquemas depressogenicos. Assenta na convicção teórica de que tanto os erros como os

esquemas têm por base a negatividade sistemática que permeia os processos cognitivos; os esquemas negativos prevalentes na depressão tendem a produzir um viés sistemático na abstração e interpretação dos dados; e ainda que os padrões específicos de esquemas tornam a pessoa sensível a pressões específicas (Beck et al., 1990).

As ideias negativas são ativadas pelos esquemas depressogenicos (construídos a partir das experiências precoces), que estando latentes emergem sempre que ocorre a repetição de vivências semelhantes, responsáveis pela introjeção da atitude negativista (Beck et al., 1990; Gibb & Abela, 2007). Recentemente foram incluídos (pelo autor) à Teoria Cognitiva aspetos relativos à continuidade do funcionamento adaptativo vs mal adaptativo, processamento de informação dupla, foco de atenção e uma organização de esquemas relevantes (expectativas, auto avaliação regras e memórias) (Beck & Haigh, 2014).

Os acontecimentos de vida negativos na infância em EES são pouco estudados, embora os seus efeitos sejam igualmente prevalentes e gravosos. A nível nacional, os dados sobre esta problemática são quase inexistentes, contudo, em termos internacionais, parece existir

101 consenso relativamente aos efeitos duradouros e negativos dos AVN em EES, sobretudo nos de natureza emocional. Uma pesquisa com 2,163 EES concluiu que os eventos de vida stressantes estão associados significativamente com o aumento da prevalência da depressão nos EES (Reyes-Rodríguez et al., 2012). Gibb et al. (2001) numa amostra de 297 de EES verificaram que os maus tratos emocionais se relacionam com os níveis médios de ideação suicida (Gibb et al., 2001). Binelli et al. (2012) numa amostra de 571 EES espanhóis, concluíram que 50,6% sofreram eventos negativos durante a infância; verificaram uma associação positiva significativa entre violência familiar e o score de ansiedade social; os EES com altos níveis de ansiedade social apresentaram maior prevalência de eventos negativos precoces (Binelli et al., 2012).

No Iraque num estudo de prevalência em EES, conclui-se que foram vítimas de pelo menos um evento de maus tratos na infância 20% dos estudantes. Sofreram maus tratos físicos 6,5%, emocionais 16,4% e /ou sexual 2,9% (Saed & Talat, 2013). Também nos EUA, o autorrelato de adversidade na infância é preditor de níveis mais elevados de sintomas depressivos e insónia nos estudantes (Gress-Smith et al., 2015). Outro estudo com mediadores da relação entre maus tratos infantis e o consumo de álcool em EES, verificou que as razões que conduzem as EES a beber são a depressão enquanto nos homens foi a performance (Goldstein et al., 2010). Burns et al. (2010) numa amostra de 912 EES do sexo feminino, revelaram que as mulheres com história de abuso apresentam mais dificuldades de regulação emocional relativamente às mulheres sem história de abuso. O abuso emocional foi o preditor mais forte de desregulação emocional, que explica parcialmente a relação entre abuso e sintomas de PTSD (Burns et al., 2010).

Os resultados da revisão dos estudos mostram que o abuso psicológico ou emocional tem sido pouco estudado em EES, contudo destaca-se a extensão e gravidade dos diversos impactos negativos que causam na saúde mental dos mesmos. As conclusões indicam claramente a influência dos tipos mais "silenciosos" de maus tratos na infância, como potencial negativo para desencadear depressão na idade adulta. Sugere-se que a intervenção precoce pode ser particularmente benéfica para modificar modelos negativos de funcionamento interno decorrentes de experiências de abuso no passado.

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