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Maria Paula Meirelles Thomaz de Aquino

2. Periculosidade inserida no conceito de Enrico Ferr

2.2 Adaptabilidade da sanção ao criminoso

Ferri frisou em sua teoria que o crime não deve ser analisado como um ente jurídico, como dizia Francesco Carrara, mas sim como um fenômeno social determinado por causas naturais. Dessa forma, a pena a ser cominada ao delito deve visar, impreterivelmente, o criminoso, e não o delito. As formas retributiva e mecânica de sanção penal com um olhar circunscrito ao crime teriam de ser eliminadas. A hermenêutica teria de ser manuseada de outro modo capaz de compreender o indivíduo infrator e tornar a pena, de fato, útil a ele.

O caminho passa a ser invertido e as ideias de Marquês de Beccaria, como grande expoente do Iluminismo, tornam- se retrógradas. Assim sistematiza em seu livro Dos delitos e das penas:

20 FERRI, Enrico. Sociología criminal cit., p. 82 (tradução livre).

21 FERRI, Enrico. Sociología criminal cit., p. 84.

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“O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.”23

Com o criminalista italiano, toda essa vertente sofre mudanças. A pena deve servir e se adequar perfeitamente ao indivíduo criminoso pelo crime por ele perpetrado, com o escopo de prevenir possíveis reincidências. A sanção não deve ter como foco o fato criminoso. Esse será apenas uma “condição preliminar de procedibilidade (punibilidade)”.

Tal individualização deve ser feita pelo juiz, demonstrando a inversão do pensamento de Beccaria, em suma, do pensamento clássico.

“Pelo que, até quem, muito embora ecleticamente insistisse sobre a ‘individualização da pena’, distinguido-a em individualização legal-judiciária-administrativa, declarou que não pode existir uma ‘individualização legal’. E isso pela formalistica (sic) razão de que a lei, devendo estabelecer ‘normas gerais e impessoais’, não tem possibilidade de individualizar o criminoso, o que pode fazer-se sómente (sic) pelo juiz e depois na execução da sentença.”24

Para Ferri, a vida e a ciência trouxeram como imposição à justiça penal não mais a observação da relação jurídica de infração da norma penal, com suas consequências jurídicas já previstas, mas também e, sobretudo, a expressão da personalidade do agente criminoso. Tal argumento é justificado, pois a causa primordial e provável para um crime futuro é a personalidade psíquica do agente. A sanção será útil, assim, tanto para defesa social, como para cura ou tratamento do criminoso respeitando suas particularidades. Ademais, transparece aqui sua função preventiva.

Nesse ínterim, a individualização penal se dá de acordo com a maior ou menor periculosidade do indivíduo, isto é, circunscrita a sua personalidade que será apreciada e constatada pelo juiz criminal. Dependendo do seu grau de periculosidade – que será examinado a partir da “exterioridade física da sua acção (sic) e desta chegar à sua intimidade psíquica” – será possível individualizá-lo na lei, no julgamento e na execução da condenação.25

Contudo, ressalta Ferri, todos, sem distinção, deverão receber uma sanção pelo único fato de ter cometido um crime, reafirmando, assim, a teoria da responsabilidade social, em que a sociedade é a plena detentora dos direitos de se conservar na forma que acreditar ser válida. Cada delinquente teria diferentes condições biopsíquicas e seria tratado de maneiras

23 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 29-30.

24 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal... cit., p. 193-194.

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diversas pela defesa social: criminosos adultos em relação aos menores; criminosos ocasionais e não reincidentes em relação aos habituais; o louco delinquente de modo diverso do criminoso instintivo.26

É possível aferir que, de acordo com seu posicionamento, todos os membros da sociedade que cometem ações antissociais, em seu grau de periculosidade específico, são anormais. Deverão suportar as respectivas sanções para assegurar, como ele mesmo diz, “o mínimo de disciplina social, sem o que não é possível nenhum consórcio civilizado”.27

A demonstração dos clássicos de que a pena somente terá eficácia quando cominada àqueles capazes de entender seu escopo e sua coação psicológica, sendo excluídos taxativamente os loucos, menores, embriagados e surdos-mudos (como sustentava o Código Penal italiano em 1931, em voga na época da publicação da obra de Ferri) foi rebatida pela Escola Positiva por meio da argumentação científica de que todo homem delinquente é um anormal. Ferri afirma ser incontestável, ademais, a anormalidade psíquica, ainda que ínfima, que o “homem normal”, isto é, o homem não criminoso apresenta. Ela somente não é exteriorizada pelo motivo determinista de que ele “sabe se adaptar ao ambiente em que vive” e também pela responsabilidade social, no que tange ao respeito às normas exigidas na sociedade com o escopo único de manter a ordem e a defesa.

O “homem delinquente” não detém desse bom senso existente no “homem normal”. Suas anormalidades psíquicas, portanto, “não só são mais graves, mas, sobretudo são mais numerosas no mesmo indivíduo”.28 Assim, no momento da

ação criminosa, há falhas relevantes na atividade psíquica do agente, demonstrando sua incapacidade de se adaptar ao ambiente e às condições de existência social. Esse desvio mental está, portanto, perfeitamente vinculado à ação delituosa.

Ferri explica com exemplos das categorias antropológicas:

“Serão diversas as graduações deste defeito de adaptação psíquica ou deste anormal funcionamento da actividade

psíquica do delinquente passional (por exemplo, por honra ofendida) ao delinquente ocasional (réu, por exemplo, de leve furto simples), até ao delinquente nato ou louco (réu, por exemplo, de parricídio), mas a anormalidade psíquica é inseparável da acção (sic) delituosa. Naturalmente estas gradações diferentes de intensidade, fazem com que a lei penal possa dar normas especiais sómente para os mais graves e aparatosos (delinquentes loucos, natos, habituais, passionais, menores), considerando a maioria dos criminosos (ocasionais) atingida apenas por leves e não acumuladas anomalias.

(sic)”.29

26 Idem, p 232.

27 Idem, ibidem, p. 231.

28 Ibidem, p. 251.

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A Escola Criminal Positiva trouxe, ademais, o que Ferri denominava “inovação metódica e funcional na justiça

penal, teórica e prática” no exame da lei, do processo penal e da execução penal. Contudo, esse exame se dava, também,

de acordo com a categoria antropológica do criminoso já prevista no texto legal e que desencadeava no momento da execução penal.

“Na lei, quer dizer, nas normas gerais que a constitui, o delinquente vem individualizado, não só – indirectamente (sic) – pela diversa gravidade do crime praticado, mas sobretudo e directamente (sic) pela diferente categoria antropológica,

que é sempre por si mesma índice de uma diversa temibilidade, e pela medida desta, segundo as circunstancias (sic) de maior ou menor periculosidade, além das circunstancias especificas (sic) modificadoras de cada crime ou delito e além de seus elementos constitutivos.

No processo penal, o delinquente vem individualizado com o exame particular das circunstancias objectivas (sic)

do crime e das condições pessoais do seu autor, antes, durante e depois do facto (sic).

Na execução da condenação, o delinquente, segundo a sua individualização contida na sentença, vem destinado a um ou outro estabelecimento entre os da espécie estabelecida na sentença e, portanto vem sujeito ao tratamento higienico

(sic), educativo, disciplinar, juridico (sic) e econômico que melhor corresponda à sua personalidade, que pode ser mais

ou menos readaptável à vida social ou incorrigível ou incurável.”30