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Gabriela Carolina Gomes Segarra

4. Crimes políticos x motivos políticos: o caso Cesare Battist

Dentre as diversas questões de competência judiciária ou executiva que envolvem o caso do italiano Cesare Battisti, terá como objetivo do presente trabalho a análise de seu delito em ser considerado político ou não. Cesare Battisti é italiano e ex-ativista da organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) de orientação esquerdista durante o período conhecido como “anos de chumbo”.28 Foi condenado por quatro homicídios ocorridos entre 1978 e 197929 e

recebeu pena de prisão perpétua em seu país de origem.

No ano de 1979, Battisti e outros membros do PAC foram detidos em Milão como parte de uma operação antiterrorista. Dois anos mais tarde, o ex-ativista foi condenado por participação em grupo armado e ocultamento de armas, época em que fugiu da prisão de Frosinone, perto de Roma, e se refugiou na França.

Posteriormente, em 1982, o italiano fugiu para o México. Entretanto, em 1985, o então presidente francês, François Miterrand, com a “Doutrina Miterrand”, se comprometeu a conceder asilo político, e não extradição, aos ex-ativistas italianos de extrema esquerda que rompessem com o passado – luta armada –, exceto àqueles que haviam cometido “crimes de sangue”. Assim, em 1990, Battisti regressou à França como condição de refugiado. No ano seguinte, com base em tal doutrina, a Itália vê negado o seu pedido de extradição.

Sem embargos, em 1995, com a mudança do presidente francês – agora Jacques Chirac –, foi alterada a “Doutrina Mitterand”. Em 2002, a Itália requereu novamente a extradição de Battisti. Em 2004, a pedido da justiça italiana, Battisti foi preso na França, mas liberado logo em seguida. No mesmo ano foi concedida a extradição, entretanto, Battisti não se apresentou à Polícia e passou para a clandestinidade. O primeiro ministro francês, Jean Pierre Raffarin, assinou o decreto de extradição, mas Battisti, aconselhado, fugiu para o Brasil.

Em 01.03.2007, o Brasil decretou a prisão preventiva contra o ex-ativista, com base na legislação pátria vigente à época, Lei 6.815/1980,30 e no tratado bilateral firmado entre Brasil e Itália. Em 2009, o então ministro da Justiça do

Brasil, Tarso Genro, em uma decisão bastante controvérsia, concedeu a Battisti o status de refugiado político, baseando-

28 Expressão utilizada para descrever o período da história, compreendido entre 1968 e meados dos anos 1980, fortemente marcado por violência política,

luta armada, terrorismo e endurecimento do aparato repressivo dos Estados democráticos. A Itália foi um dos países mais atingidos por esse período.

29 Quatro homicídios dolosos: contra o agente de custódia Antonio Santoro, em 06.06.1978, contra Lino Sabbadin, em 16.02.1979, contra Pierluigi Torregiani,

em 16.02.1979, e contra a agente de polícia Andréa Campagna, em 19.04.1979.

30 Lei 6.815/80, art. 84. “Efetivada a prisão do extraditando (artigo 81), o pedido será encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. Parágrafo único. A prisão

perdurará até o julgamento final do Supremo Tribunal Federal, não sendo admitidas a liberdade vigiada, a prisão domiciliar, nem a prisão albergue”. De igual modo, tem-se o art. 208 do Regimento Interno do STF, que declara: “Não terá andamento o pedido de extradição sem que o extraditando seja preso e colocado à disposição do Tribunal”.

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se, para tanto, no fundado temor de perseguição por opinião política, contrariando a decisão do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).31 Com tal status, ficou suspenso o pedido de extradição.

Nessa época – 16.12.2009 –, o Supremo Tribunal Federal do Brasil, pelo placar de 5 votos a 4, posicionou-se de modo a não admitir o status de refugiado32 e a favor da extradição de Cesare Battisti ao governo italiano, mas resguardou

a decisão final do imbróglio ao então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que, em 31.12.2010, negou o pedido, alegando que o italiano poderia ser submetido a atos de discriminação em face da sua situação pessoal.33

O interessante a ser posto para a pesquisa em tela seriam os argumentos usados pela Corte na posição de ser a favor da extradição. O contexto aqui colocado foi exatamente aquele que se discute no trabalho, qual seja, a não configuração de crime político, motivo pelo qual não se discute a proibição de extraditar. Senão vejamos: “3. Extradição. Passiva. Crime político. Não caracterização. Quatro homicídios qualificados, cometidos por membro de organização revolucionária clandestina. Prática sob império e normalidade institucional de Estado Democrático de Direito, sem conotação de reação legítima contra atos arbitrários ou tirânicos. Carência de motivação política. Crimes comuns configurados. Preliminar rejeitada. Voto vencido. Não configura crime político, para fim de obstar a acolhimento de pedido de extradição,

homicídio praticado por membro de organização revolucionária clandestina, em plena normalidade institucional de

Estado Democrático de Direito, sem nenhum propósito político imediato ou conotação de reação legítima a regime

opressivo”.34

Derradeiramente, em face do recurso da República Italiana, no dia 08.06.2011, em consonância com a decisão do antigo Presidente da República, o Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiu, por 6 votos a 3,35 pela não extradição de

Cesare Battisti ao seu país de origem, expedindo alvará de soltura.

31 A fundamentação para o pedido de refugiado baseou-se no art. 1.º, I, da Lei 9.474/1997: “Art. 1.º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país”. Entretanto, a Comissão entendeu não haver perseguição em seu país de origem.

32 Nos termos do art. 3.º, III, do Estatuto dos Refugiados, fica proibida a outorga do mencionado status quando os indivíduos: “III – tenham cometido crime

contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas”.

33 A negação da extradição pelo Presidente da República estava embasada pelos arts. 1.º, 4.º, I, 84, VII, da CF. O parecer do Presidente Luis Inácio Lula da

Silva encontra-se disponível no website [http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/152830]. Acesso em: 04.06.2014.

34 STF, Extradição 1.085, república Italiana, Tribunal Pleno, rel. Min. Cezar Peluso, j. 16.12.2009, Data de Publicação: 16.04.2010.

35 Importante aqui mencionar que os três votos divergentes – Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Cezar Peluso – vão de encontro ao fundamento de que

o Presidente da República descumpriu com a lei e a decisão do STF. Afirmou o Ministro Gilmar Mendes que “no Estado de Direito, nem o presidente da República é soberano. Tem que agir nos termos da lei, respeitando os tratados internacionais (...) Não se conhece, na história do país, nenhum caso, nem mesmo no regime militar, em que o presidente da República deixou de cumprir decisão de extradição deste Supremo Tribunal Federal” (STF, Extradição

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Pois bem. Analisando a difícil conjuntura, é possível tecer duas indagações, plausíveis para a pesquisa em tela: (i) a questão da democracia instável; (ii) a questão do crime político x motivo político.

A partir do pressuposto histórico de que o período dos “anos de chumbo” vivido pela Itália não foi ditatorial, quando é negada aos cidadãos participação política ou qualquer tipo de manifestação, tampouco o país não passava por momento de revolução ou guerra civil. O Estado não deixou de ser democrático de direito devido às revoluções constantes pelas quais passava a Itália, de forma que não haveria razão para duvidar dos seus processos judiciais. Para Geoff Gilbert, “democracy is very much in the eye of the beholder”. De forma diferente, para muitas pessoas a democracia é apenas sinônimo de poder de votação.36

Ademais, acerca da outra indagação, cabe ressaltar duas correntes doutrinárias: a primeira entende por “motivo

político como mero impulso psicológico, o móvel interno do agente”;37 já a segunda não analisa os aspectos pessoais do

réu. A constatação se mede “pelas características externas, tais como: as condições do lugar ou do contexto histórico no

qual o ato foi concedido, bem como a figura do réu e da vítima (...) o relevante para se configurar o motivo político seria o histórico da vida pregressa do réu com o objetivo de contextualizar a sua militância política”.38

Acerca da disparidade desse assunto, traz a baila o Swiss Test, pelo qual rege os princípios da preponderância e da proporcionalidade, “balances the political motive or purpose of the ofender against the elements of common crime”.39 O

teste em comento usa ambos os critérios – subjetivos e objetivos – para determinar se certo delito é de caráter político suficiente para justificar a exceção de não extraditar por crimes políticos.

O Swiss Test foi aperfeiçoado em 1951, no caso Ockert, momento em que o Tribunal Suíço definiu crimes políticos como sendo “atos que tenham o caráter de um crime comum que aparece na lista dos crimes passíveis de extradição,

mas que, por causa das circunstâncias concomitantes, em especial por causa do motivo e objeto, são de uma tez predominantemente política”.40

1.085 (Petição avulsa na Extradição), República Italiana, Plenário, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08.06.2011, Data de Publicação: 03.04.2013).

36 GILBERT, Geoff. Responding to International Crime. Martinus Nijhoff Publishers: The Hague/Boston/London, 2006. p. 250.

37 PAMPLONA, Gustavo. Crimes políticos, terrorismo e extradição... cit., p. 44-45. Importante destacar que os conceitos aqui concedidos pelo autor Gustavo

Pamplona são de Giulio Ubertis em UBERTIS, Giulio. Reato politico, terrorismo, estradizione passiva. L’Indice Penale, vol. 21, Fascículo 2, Padova, 1987.

38 PAMPLONA, Gustavo. Crimes políticos, terrorismo e extradição... cit., p. 44-45.

39 KINNEALLY III, James J. The political offense exception... cit., p. 210.

40 BLAKESLEY, Christopher L. The Evisceration of the Political Offense Exception to Extradition. Scholarly Works, Paper 321, 1986, p. 114. Disponível

em: [http://scholars.law.unlv.edu/facpub/321]. Acesso em: 04.06.2014. Tradução nossa. Do original, “acts which have the character of an ordinary crime appearing on the list of the extraditable offenses, but which, because of the attendant circumstances, in particular because of the motive and the object, are of a predominantly political complexion”.

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A definição, entretanto, foi alterada pelo Tribunal Suíço em 1952, a fim de proporcionar a flexibilidade necessária para permitir exceção de extraditar para aqueles que cometem crimes com o intuito de escapar do regime totalitário moderno. Em 1961, o Tribunal Federal Suíço resumiu o desenvolvimento jurisprudencial dos princípios básicos do teste de preponderância e refinou ainda mais a definição de crime político, de modo que, mesmo quando o motivo é em grande parte político, os meios empregados devem ser os únicos meios disponíveis para realizar a perseguição final. Tal argumentação é apoiada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido.41

Sob a ótica do Swiss Test, fica difícil encaixar o caso de Cesare Battisti como um protótipo de crime político. Perfaz, aqui, as características de crime por motivação ou conotação política, que não faz jus ao benefício da não extradição por crime político.