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Advento do hospital moderno e da medicina anatomoclínica

PERCEPÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

I.2 Advento do hospital moderno e da medicina anatomoclínica

O termo "hospital" vem do latim hospitālis, com o significado original de "casa de hóspedes"33. Grosso modo, no que concerne ao hospital enquanto estabelecimento onde pessoas (acometidas por algum tipo de doença, vítimas de acidentes, entre outras situações) são hospitalizadas, trata-se de um espaço reservado e em cujas dependências essas pessoas são diagnosticadas e submetidas ao tratamento que lhes convém. Ribeiro (1993) afirma que o hospital tem características básicas indispensáveis dentre as quais se destacam cinco: missões,

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Por oportuno, em um estudo no qual são criticadas as facilidades biotecnológicas à disposição do "mercado da saúde" no mundo atual, faz-se defesa dos saberes médicos e de suas práticas no século XIX, onde se pode ler a seguinte passagem: "É habitual denegrir a medicina dos primeiros decênios do século XIX, acusada de ser ineficaz e de não ter, em nada, progredido desde Hipócrates. E é verdade que o humorismo grego domina ainda [hoje] a representação médica do organismo [...]" (MOULIN, 1985, p. 92).

33 O termo "hospital" é polissêmico: originalmente significa "casa de hóspedes"; com o tempo passou a significar

também a qualidade dispensada no acolhimento ou na hospedagem que se dispensava (e ainda hoje se dispensa) a uma pessoa ou a uma visita. "O conceito de hospital tem as suas origens no vocábulo hospes (―hóspede‖ ou ―visita‖) do qual resulta hospitalitas (―hospitalidade‖). Com o passar do tempo, a noção passou a dizer respeito à qualidade de acolher/hospedar alguém bem e com satisfação" (HOSPITAL, 2016, p. 1).

60 objetivos, os trabalhadores, a prática médica, o doente e a doença. Fator que não se pode legar a segundo plano, os hospitais surgiram, ao longo da história do Homem, em paralelo a diferentes contextos, entre os quais a doença apresentava-se como fenômeno a ser debelado. Assim "Como outras instituições que surgiram simultaneamente em vários continentes e lugares do mundo [...], não se pode identificar uma origem única do hospital [...], de hospedarias e hospícios, palavras que têm a mesma raiz latina" (RIBEIRO, 1993, p. 23).

Quando se faz referência ao hospital enquanto espaço de profissionais da medicina e de saberes médicos instituído na Modernidade, não vem à mente das pessoas em geral o fato de que "O hospital [...] tem uma trajetória secular e universal, cujos elementos comuns são logo identificados nas várias sociedades e culturas. Todavia, em cada uma dessas ele se fez uma instituição diferente, porque diferentes são os tempos e os espaços dessas culturas" (RIBEIRO, 1993, p. 11). Uma breve menção feita aos doentes na Antiguidade e constata-se que na "Grécia clássica não tinha hospitais"34 (PORTER, 2004, p. 165). Por outro lado, em Roma eram disponibilizadas algumas modalidades de instalações destinadas aos enfermos. Entretanto, segundo afirmação feita por esse autor, essas localidades hospitalares às quais pessoas doentes recorriam eram locais reservados "[...] apenas para escravos e soldados. Foi com a era cristã que se começaram a dedicar instituições ao tratamento dos civis enfermos. Isso não se deu por acaso, pois a santidade e a cura caminhavam de mãos dadas. [...] a caridade era a suprema virtude cristã" (PORTER, 2004, p. 166).

O investimento cristão na construção de hospitais, casas de misericórdia, entre outros locais similares, cujo papel fundamental seria a caridade e a devoção dos fiéis à política religiosa da Santa Igreja, certamente contribuiria para com maior demanda ao atendimento de pessoas doentes. Porter (2004) registra o fato de que entre esses locais onde pessoas enfermas eram acolhidas havia aqueles espaços que eram evitados pela sociedade em geral. Trata-se dos asilos, também conhecidos pelo nome de leprosários, cuja "invisibilidade" deveria ser mantida a todo custo. A lepra era uma doença "aterradora" e mais aterradoras eram as representações construídas em torno de um fenômeno cujo estigma era poderoso o bastante para se confinar no leprosário, à força bruta, os leprosos. Eles eram de fato excluídos em todos os sentidos: desde sua rejeição até seu distanciamento por completo da sociedade. Isso "[...] implicava a desqualificação − talvez não exatamente moral, mas em todo caso jurídica e política − dos indivíduos assim excluídos e expulsos. [Essa] exclusão era regularmente

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Antes do surgimento da medicina hipocrática, os doentes buscavam os santuários de cura para fazerem visitas, na expectativa de que os deuses extirpassem suas morbidades. Não obstante, com o evento dos saberes médicos de Hipócrates "[...] essas curas religiosas foram descartadas pelo novo estilo de medicina secular promovido pelos médicos hipocráticos" (PORTER, 2004, p. 165).

61 acompanhada de uma espécie de cerimônia fúnebre, no curso da qual eram considerados mortos" (FOUCAULT, 2010, p. 37). Em princípio, leprosos eram considerados "impuros" por terem sidos acometidos pela doença, a despeito de serem cristãos. "Em 1225, havia quase 19.000 leprosários na Europa. À medida que a lepra diminuiu, eles foram sendo requisitados para pessoas suspeitas de ser portadoras de doenças infecciosas, para loucos e até para indigentes" (PORTER, 2004, p. 167). Com a chegada da peste bubônica − também conhecida como "peste negra"−, no século XIV, os leprosários passaram a ser utilizados como hospitais para abrigo e isolamento de pessoas acometidas pela doença. Surgiam os lazaretos usados como locais apropriados para a modalidade preventiva denominada de quarentena35.

Ao levar-se em conta a trajetória histórica do hospital, considerando-se o surgimento das primeiras instituições cristãs voltadas para o tratamento de enfermos − na transição do século III para o século IV d. C. −, constata-se o seguinte: "Como expressões da caridade, da compaixão e da assistência cristãs, os ideais da enfermagem e da cura deram impulso à fundação de hospitais. [...] surgiram hospitais como fundações devotas, em geral ligadas a ordens religiosas que se dedicavam a servir a Deus e aos homens" (PORTER, 2004, p. 166). Até meados do século XVIII, considerável número de hospitais seria construído nas grandes cidades e nas cidades de médio porte por toda Europa. Em face de tais possibilidades, cogita- se sobre a problemática relacionada ao número de médicos, de seu papel ou desempenho dentro desses hospitais de até meados do Setecentos.

Nesse sentido, fazem-se abordagens sobre o caráter do hospital pré-moderno atuante no decurso desse longo período anterior ao surgimento do hospital moderno no século XVIII. O termo "pré-moderno" é usado por Porter (2004) para se referir à fundação dos hospitais no referido período e registrar os tipos de tratamento dispensados aos que acorriam a esses espaços em busca de cura. Com isso, quer-se saber que mudanças ocorreram e contribuíram para a reforma dos hospitais, possibilitando assim sua modernização a partir do século XVIII, com o surgimento dos hospitais clínico-modernos36. Rosen (1994) denomina esses novos

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A quarentena era uma forma de prevenção para impossibilitar a transmissão de doenças infecciosas. É Porter (2004) quem ilustra bem essa modalidade preventiva e suas finalidades essenciais: "Começaram a criar-se lazaretos de quarentena [...], para salvaguardar o comércio e proteger as populações citadinas. A primeira dessas casas da pestilência foi construída em Ragusa (a moderna Dubrovnik) em 1377, enquanto Veneza impôs a quarentena em lazaretos a partir de 1423" (PORTER, 2004, p. 167).

36 Em sentido geral, os momentos históricos para o advento do hospital moderno sinalizam também para o

surgimento da clínica. A clínica surgiu na transição do século XVIII para o século XIX. Foucault (2013) é flexível e não estabelece uma cronologia absoluta para esse período transitório em que se deu o "Nascimento da Clínica". Não obstante, o início do século XIX é geralmente considerado como marco para uma medicina que olha seu passado e a partir de críticas feitas a ela mesma apresenta-se como medicina científica. O hospital se moderniza porque as práticas médicas tornam-se científicas, ou seja, clínicas. Tanto o hospital moderno quanto a clínica têm um passado histórico. No que concerne ao significado do termo "clínica", informa-se que ele é antigo

62 espaços, para onde acorriam os enfermos, de "hospitais especiais", que foram instituídos em meados do Setecentos. Entre os fundamentos dos hospitais clínicos, Foucault (1996b) coloca em cheque o momento em que uma tecnologia médica surgiu e permitiu o nascimento do hospital, envolvendo desde a intervenção sobre a doença e o doente até a produção da cura. Este problema será abordado adiante.

Conforme já referenciado, o funcionamento dos hospitais pré-modernos tinha como fundamento as ações de caridade e de compaixão, na modalidade de uma assistência cristã. "Embora fornecessem tratamento, alimento, abrigo e uma oportunidade de convalescença, os hospitais gerais não eram, com raras exceções, centros de medicina avançada. [O fato é que] Os hospitais pré-modernos eram muito diferentes dos de hoje" (PORTER, 2004, p. 172). Não sendo centros de "medicina avançada", as dependências desses locais hospitalares eram utilizadas como espaços restritos a pessoas acidentadas e ou a vítimas de eventos fatais. Esse mesmo autor faz referências às denominadas "queixas rotineiras", em números consideráveis, as quais estavam geralmente relacionadas ao "repouso", a úlceras nos membros inferiores, ou ainda, a um tratamento orientado para a "cura" de bronquites próprias de períodos invernosos. No tocante a pessoas com doença grave, praticamente não tinha solução. "Os casos de infecção eram excluídos, já que não haveria nenhuma utilidade em admitir as febres: elas não tinham cura e certamente se disseminariam como rastilhos de pólvora" (PORTER, 2004, 172). Na referência acima, está subentendido que eram comuns os casos de doenças infecciosas e que para elas não havia cura. Em face dessa situação crítica, coloca-se em dúvida o real papel dessas instituições hospitalares, vez que não tendo "cura" para tais casos a sua função se invertia, isto é, o próprio hospital se tornava em locus de "reprodução" e disseminação da doença, quando na verdade deveria contribuir para minimizá-la.

A referência de Porter (2004) feita ao aumento na fundação de hospitais tendo como ideal prático a "caridade", a "compaixão" e a "assistência" cristãs pressupõe a existência de instituições onde esse atendimento assistencial, provavelmente embasado nos saberes médicos hipocráticos, não garantia de todo a cura de moléstias. "Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e exclusão" (FOUCAULT, 1996b, p. 101). Esta citação pode ser melhor compreendida se confrontada com o fato de que na Inglaterra setecentista havia pendências

e que suas concepções básicas estão relacionadas com saberes, usos e práticas ainda hoje utilizadas nos hospitais. No Dicionário Priberam, a clínica vem do "[...] latim clinice, -es, do grego klinikê, -ês, cuidados médicos junto do leito [...]. 1. Prática da medicina. 2. Estudo prático da medicina no corpo do doente. 3. Conjunto de pessoas que são tratadas por um mesmo médico [clientela]. 4. Estabelecimento particular onde se operam e tratam doentes" (CLÍNICA, 2013, p. 1). Isto justifica a utilização da frase "hospitais clínico-modernos".

63 em relação à construção, a contento, de hospitais destinados ao atendimento dos pobres: "Para preencher uma lacuna que se alargava, fundaram-se novos hospitais para os pobres dignos na Grã-Bretanha do século XVIII" (PORTER, 2004, p. 168). A função de "essencialidade" do hospital para pobres, antes do século XVIII, continuou "presente" e atuante ao longo do Setecentos, apesar das reformas que ocorreriam a partir de meados dessa mesma centúria. Para se ter melhor compreensão sobre o perfil assistencialista, de separação e de exclusão do hospital no século XVIII, faz-se necessário buscar aportes sobre suas origens. Nesse sentido, entende-se como oportuno registrar que "Em toda a frança, o hôpital général (semelhante ao asilo de pobres inglês) despontou no século XVII como uma instituição destinada a abrigar e confinar mendigos, órfãos, vagabundos, prostitutas e ladrões ao lado dos doentes e dos loucos pobres. Atendiam-se as necessidades médicas básicas "(PORTER, 2004, p. 168).

Quanto às datas para demarcação do momento em que hospital moderno surgiu, elas variam segundo as interpretações dos estudiosos que se debruçam sobre esse assunto. As percepções de Rosen (1994) se desdobram flexivelmente em conformidade com a ascensão dos hospitais gerais para pobres e operariado da Inglaterra do século XVIII. Paralelo a esse fenômeno social, ocorria o surgimento dos hospícios e dos dispensários.

O desenvolvimento de hospícios caminhou ao lado da ascensão dos hospitais gerais e dispensários. No início do século XVIII, quase não existiam hospitais na Inglaterra, exceto em Londres, mas com acomodações inadequadas. No entanto, e em especial na metrópole, era necessário cuidar dos doentes pobres. [...] Em meados do século, criaram-se hospitais especiais. [...] Ainda mais específico era o objetivo do Hospital de Middlesex, instituído, em 1746, para receber pacientes com varíola e para estimular a inoculação. [...] De 1760 a 1800 o ritmo de crescimento de hospitais, em Londres, diminuiu, mas depois retomou-se o processo. Durante as primeiras quatro décadas do século XIX, fundaram-se quatorze hospitais em Londres (ROSEN, 1994, p. 124).

O hospício é um hospital psiquiátrico, destinado a internação dos denominados loucos. O que para Rosen (1994) parece ser "natural", para Porter (2004) trata-se de uma "novidade". Esta teria ganhado impulso a partir do século XVIII e com o tempo passaria a receber nomes diferenciados para um mesmo tipo de instituição: manicômio, asilo para os loucos ou apenas hospital psiquiátrico. Se nalguns desses hospícios o recolhimento de pacientes tinha como finalidade o tratamento terapêutico, noutros a solução era o funcionamento de um abrigo adequado para o isolamento de pessoas inconvenientes. Porter (2004) anota que na maioria das nações europeias foram edificados asilos públicos e privados; também houve preocupação com a construção de asilos religiosos e seculares, além daqueles beneficentes e dos com fins lucrativos. Com o tempo, a "novidade" que o hospício representava aumentou em termos de

64 proporções físicas e numéricas, tanto no que concerne ao número de espaços quanto ao número "alarmante" de pacientes acometidos de doença mental que "abarrotavam" os asilos.

À medida que os procedimentos legais de internação se desenvolveram no século XIX, esses manicômios tornaram-se cada vez maiores e ficaram abarrotados de casos sem esperança. Antes do movimento de desinstitucionalização [sic] da década de 1960, havia cerca de meio milhão de pessoas trancafiadas nos hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos e cerca de 150.000 no Reino Unido. [...] O século XVIII trouxe campanhas por reformas hospitalares, como parte das críticas generalizadas a instituições ultrapassadas, corruptas e prejudiciais (PORTER, 2004, p. 172-173).

Os hospitais psiquiátricos do século XIX abarrotados de casos de doenças mentais sem esperança representavam o ápice de uma história que teve início por volta do século XV. Ela é, segundo Foucault (2012), fruto do imaginário sobre a velha aliança entre água, loucura e o barco, ou os barcos que transportavam seus loucos − sua carga insana − de cidade para cidade. Faz parte das origens dessa história da nau dos loucos o imaginário do homem medieval sobre a navegação, ou melhor, sobre as relações do homem com o mar e as grandes travessias em busca de terras distantes. Navegar pelos mares pressupõe a experiência de uma liberdade que se funde com o medo. "A liberdade, ainda que apavorante, de seus sonhos e os fantasmas de sua loucura têm, para o homem do século XV, mais poderes de atração que a realidade desejável da carne" (FOUCAULT, 2012, p. 20). Fica óbvio que essa atração pela liberdade, ainda que aterradora, teria imbricações inevitáveis com a Era das Grandes Navegações e Descobrimentos Marítimos − empreitada pioneira dos portugueses e de espanhóis iniciada no século XV e prolongada até o século XVI. Todorov (1996), ao tratar da "questão do outro", não hesita em afirmar que no caso de "descoberta" das Américas as metas dos navegadores eram bem claras: "descobrir", "conquistar", "compreender", "conhecer", "tomar e destruir"37. No processo de conhecimento, os europeus estranhariam o "outro" − os ameríndios −, tido como "estranhos", de cultura inferior, selvagens, loucos. "[...] conheço ou ignoro a identidade do outro [...]; aqui não há, evidentemente, nenhum absoluto, mas uma gradação infinita entre os estados de conhecimento inferiores e superiores (TODOROV, 1996, p. 183).

A Era das Grandes Navegações pressupõe o desenvolvimento e ou aquisição de um arsenal tecnológico mínimo para que através dos Descobrimentos Marítimos os europeus atingissem seus objetivos, independente dos perigos enfrentados em troca de uma liberdade "insana". A caravela, a bússola, o astrolábio e a balestilha eram aparatos tecnológicos para

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Destruir não apenas por meio das armas tecnológicas, mas também por meio de moléstias transportadas e transmitidas pelos europeus para as Américas e os "selvagens". Para um aprofundamento desse assunto, recomenda-se leitura da obra de Jared Diamond − "Armas, Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas". O livro de Tzvetan Todorov − "A Conquista da América: a questão do outro" e o estudo de David Arnold − "The Problem of Nature: environment, culture and european expansion" também são recomendados.

65 que empreitadas de grande risco fossem concretizadas. Porém, essa tecnologia material e explícita contribuía para dar "invisibilidade" a uma espécie de tecnocracia político-jurídica. Foucault (1996c) faz referência a uma tecnologia à qual procedimentos jurídicos e políticos seriam incorporados. Trata-se daquela tecnologia que tem por função superar a maturidade da verdade feita por meio daqueles aparatos tecnológicos de fácil visibilidade e destinados à constatação e prova da existência das coisas concretas. Essa superação tecnológica objetiva alcançar os instrumentos cuja funcionalidade seja trespassar as distâncias, atingir outras perspectivas, levantar obstáculos que separam as pessoas da verdade. É aquela que

[...] nos espera em toda a parte e em todos os tempos. Esta grande reviravolta tecnológica data sem dúvida do momento da navegação, das grandes viagens, desta imensa 'inquisição', que não era mais dirigida para os homens e seus bens, mas para a terra e suas riquezas. Ela data mais da conquista do mar do que das conquistas da terra. Do navio, elemento sempre móvel, o navegador deve saber em cada ponto, e a todo instante, o lugar onde se encontra (FOUCAULT, 1996c, p. 117).

Em face de tal constatação, ao questionar-se sobre as "grandes funções" das ciências médicas na sociedade, Foucault (2011) é incisivo ao postular, mesmo de modo simbólico, que os médicos passaram a utilizar a terapia médica como estratégia de repressão. A "máquina" de controle repressivo das pessoas não operava tendo como objeto de cura as moléstias ou a doença fisiológica, a exemplo das infecções, febres, disenterias ou tuberculose. Esses tipos de doença eram "visíveis", detectáveis, denunciantes de uma medicina pré-moderna assistencial e como tal necessitava de reformas. A estratégia seria utilizar a "loucura", ou o imaginário da loucura, para que ocorresse uma mudança de paradigma: a substituição do ideal de assistência prática cristão de "caridade" e "compaixão" pela "novidade" que seria o hospício. Este vinha sendo gestado a partir dos sonhos, do imaginário sobre os fantasmas da loucura que possuía o homem do século XV, ávido pelo poder da liberdade de navegar, singrar os mares, ainda que esses fossem habitados por monstros aterradores (que na realidade só existiam na mente desse homem sonhador). Ora, os "desvios religiosos" em relação às "curas" milagrosas seriam apropriados pelos saberes médicos de então e a partir disso surgiria o hospício, o manicômio − a hospedaria preparada para receber os loucos. Limitado aos espaços da imaginação, o poder dos sonhos fantasmáticos seriam, segundo percepção de Foucault (2011), redobrados em profundidade. Com e a partir do imaginário da loucura nos saberes médicos, o mundo se tornaria, paulatinamente, em um hospício global. Em assim sendo, os elos entre poder e conhecimento ocorreriam inevitavelmente.

66 Ora, desde o século XVIII uma das grandes funções da medicina, da medicina psíquica, psiquiátrica, psicopatológica, neurológica, foi precisamente substituir a religião e reconverter o pecado em doença, mostrar que aquilo que era um pecado talvez não fosse punido naquele tempo, mas certamente o será agora. Essa foi uma das grandes funções da medicina do século XVIII (FOUCAULT, 2011, p. 306).

A noção médica de crise, que se dá a partir dos denominados "desvios religiosos" e os quais seriam incorporados e adaptados pelos saberes médicos − instituição da loucura −, seria prolongada até fins do século XVIII. Isso não significa que o hospício fecharia suas portas em fins do Setecentos. Conforme já mencionado, o imaginário da loucura38 se estenderia até a década de 1960, quando, segundo Porter (2004), a quantidade de hospícios abarrotados de "loucos" atingira o número de meio milhão só na América do Norte. Importa conhecer que se ao final do século XVIII os saberes médicos passavam por "importante" mudança crítica, isso ocorria por motivos que Foucault (1996c) entende como sendo resultado de "tecnologia médica" envolvendo uma ocasião "fatal", que na realidade era efeito de uma estratégia que era imposta como sendo o momento da "verdade" para a medicina terapêutica que nascia.