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Comentários sobre os "clássicos" da historiografia moderna

ESTUDO SOBRE A HISTORIOGRAFIA DE DOENÇA(S) E MORTALIDADE DE ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO

II.3 Comentários sobre os "clássicos" da historiografia moderna

Depois dessa exposição acerca da contribuição historiográfica da brasilianista Mary C. Karasch relacionada à produção de pesquisas sobre escravidão, doença e mortalidade escrava no Brasil oitocentista, fica a impressão de que antes de sua vinda e durante sua permanência em terras brasileiras pouco ou nada sobre a problemática foi produzido por pesquisadores locais. No ensejo desta reflexão que se inicia, permite-se inserir neste debate alguns nomes e contribuições sobre o assunto. Maria Luiza Marcílio, a principal responsável pela introdução da demografia histórica no Brasil publicou em 1968, na França, seu livro denominado de La

Ville de São Paulo − Peuplemente et Population, 1750-1850, d'après les registres paroissiaux et les recensements anciens. Cinco anos depois, sua obra seria traduzida para o português e

publicada no Brasil em 1973, com o título: "Cidade de São Paulo: Povoamento e População, 1750-1850, com Base nos Registros Paroquiais e nos Recenseamentos Antigos".

Esta nossa tese introduz a Demografia Histórica no Brasil e mesmo na América Latina. É bem verdade que este pioneirismo deve-se menos às nossas virtudes, e mais à oportunidade de que fomos privilegiados ao ter recebido condições de permanecer durante período prolongado em França, junto aos mestres maiores da Demografia Histórica, [...] recebendo então a formação que não nos seria possível na época, no Brasil e, ao mesmo tempo, testando uma documentação brasileira similar em certos aspectos e peculiar em muitos outros à sua correspondente européia, para uma possível adaptação da mesma ao estudo de uma realidade diversa, a nossa (MARCÍLIO, 1973, p. xix-xx).

A diversidade sociocultural e sobretudo as peculiaridades étnicas das "populações brasileiras" aparentemente dificultariam a introdução metodológica e técnicas próprias da demografia histórica, sabido que em sua origem europeia ela fora desenvolvida tendo como objeto de estudo demográfico populações étnicas antigas não diversificadas quando colocadas defronte e ou comparadas com a heterogeneidade das etnias populacionais do Brasil.

Para a França, as pesquisas aplicavam-se a uma população homogênea, em relação à qual o registro civil estava estabelecido com cuidado e bem conservado desde há muito tempo. [...] No Brasil, ao contrário, tratava-se de uma sociedade heterogênea, resultante de etnias diferentes − autóctones, europeus, africanos − vindos de regiões muito distantes, através de uma imigração constante, sociedade essa dividida, do ponto de vista jurídico, em população livre e população escrava (FLEURY e HENRY, 1973, p. xi).

Contudo, tal particularismo não impediria que a introdução da demografia histórica no Brasil fosse inviabilizada tecnicamente, isto é, no seu exercício prático. Já no caso da Europa − especificamente na França −, a unidade populacional contribuiria para que uma coerência étnico-demográfica viabilizasse o levantamento de dados estatísticos, com muito menos

109 dificuldade quando confrontada com a realidade étnico-demográfica brasileira, considerada complexa. Entende-se, pois, que o fator "complexidade" dessa população viria a contribuir para com melhorias futuras no aludido método. "Prova disso não seria a aceitação em nosso continente, de nossa sugestão para que a Demografia Histórica integrasse os programas de pesquisa do CELADE, órgão regional da ONU?" (MARCÍLIO, 1973, p. xx). O método, que fora motivo de críticas por parte dos intelectuais brasileiros72 à época de sua introdução73 no país, ganhava notoriedade e autonomia na proporção em que sua representante era convidada por estudiosos de outras nações para divulgar a importância e cientificidade da demografia em Ciências Históricas na América Latina e, segundo pontuação da autora, em outros continentes. Maria Luiza Marcílio tinha consciência da importância e da dinâmica nos estudos demográficos que despontavam como ferramenta indispensável para as pesquisas sobre populações do passado. Nesse sentido, a historiadora possuía, por assim dizer, o dom da inquietude motivacional. No afã de levar adiante os resultados de suas experiências em demografia histórica, ela reuniu historiadores e demógrafos (num total de nove estudiosos colaboradores) de seis países74, incluindo o idealizador da Demografia Histórica − Louis Henry (1911-1991) −, e organizou a obra denominada de "Demografia Histórica: Orientações e Técnicas Metodológicas", publicada em 1977. Naquele mesmo ano ela afirmaria o seguinte: "Se a Demografia como ciência conta três séculos de existência, a Demografia Histórica, filha mais nova da História e da Demografia, não tem mais que trinta anos" (MARCÍLIO, 1977, p.

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A obra inédita, inovadora e pioneira dessa historiadora causaria impacto quando de sua apresentação no Brasil da década de 1970. "[...] todo trabalho pioneiro recebe no primeiro impacto mais resistência do que adesões espontâneas. Porém, passado o primeiro momento de surpresa, carreando críticas céticas de alguns de nossos especialistas, duvidosos do valor e eficácia da História Quantitativa, da adaptação de métodos concebidos para um contexto, a aceitação foi, senão [sic] unânime [...] pelo menos espontânea e brotando de setores variados, geralmente os mais dinâmicos" (MARCÍLIO, 1973, p. xx).

73 Os especialistas em geral enfatizam que a introdução da Demografia Histórica no Brasil ocorreu com a

tradução e publicação do livro de Maria Luiza Marcílio, no ano de 1973. Porém, há estudiosos que polemizam as fronteiras dessa ciência no Brasil. Entre eles, Costa (2001), economista da Universidade de São Paulo, lança a hipótese de que a demografia histórica já era utilizada por Gilberto Freyre, desde a publicação de "Casa-Grande & Senzala", em 1933. Esse autor fala de uma demografia com potencialidades de abrangência muito amplas no âmbito das Ciências Históricas. Como suporte, são mencionados trabalhos de Lucila Herrmann (fins da década de 1940); as pesquisas de Altiva Pilatti Balhana e de Cecília Maria Westhphalen (em fins da década de 1950). Porém, é a Maria Luiza Marcílio que o autor credita a instituição efetiva da demografia histórica no Brasil e em muitos países do Ocidente. Segundo sua avaliação do livro "A Cidade de São Paulo: Povoamento e População (1750-1850)", trata-se de um "[...] texto seminal do qual resultou o reconhecimento, em escala internacional e, sobretudo, em âmbito nacional, da demografia histórica brasileira; dá-se, a contar de sua edição em português, a difusão entre nós dos métodos propostos pelos cientistas franceses criadores deste novo ramo do saber demográfico, situado no amplo campo das ciências sociais. Não é exagero dizer que La ville de São Paulo assinalou o surgimento efetivo da demografia histórica no Brasil" (COSTA, 2001, p. 383).

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Reproduzem-se os nomes dos nove colaboradores (seguido do nome de seu país) que fazem parte do livro "Demografia Histórica: Orientações e Técnicas Metodológicas", organizado por Maria Luiza Marcílio, em 1977, conforme segue: Thomas H. Hollingsworth (Grã-Bretanha), Jacques Légarè (Canadá), Giuseppe Leti (Itália), Hubert Charbonneau (Canadá), John Duran (Estados Unidos), Etienne Helin (Bélgica), Louis Henry (França), Jéan-Pierre Poussou (França) e Etienne Van de Walle (Bélgica).

110 1). Certamente, o cômputo de trinta anos tinha como aporte referencial aquele ano de 197775, data de publicação da obra, citada acima, organizada pela autora.

No intuito de corroborar a importância das pesquisas orientadas para a Demografia Histórica, tanto de fins do século XX quanto deste século XXI, comunica-se que elas têm sido imprescindíveis tanto para a história da escravidão quanto para a história da saúde, doença e mortalidade de escravos. No ano de 1984, Marcílio organizou e publicou um trabalho sobre a evolução das sociedades pré-industrias, no qual a historiadora postula a existência de quatro eixos fundamentais de sistemas demográficos, conforme explicitação a seguir: 1) Sistema demográfico das economias de subsistência; 2) Sistema demográfico das economias de

plantations; 3) Sistema demográfico das populações escravas; e 4) Sistema demográfico das

áreas urbanas no século XIX. O que dinamiza a mobilização relacional ou não desses quatro eixos são as relações sociais. O denominador comum são, portanto, as relações humanas na política, na economia, religiosidade, na saúde, jurisprudência; em uma só frase: as relações socioculturais. No que diz respeito à mortalidade e à fecundidade das populações escravas, esses dois fatores apresentavam-se mais elevados nos eixos 2, 3 e 4. Em relação ao eixo de número 3 − Sistema demográfico das populações escravas −, a problemática que se apresenta difere sensivelmente daquela comum aos demais eixos. Confira-se:

[...] as condições de vida, de trabalho, de alimentação, de habitação contribuíram para a elevadíssima mortalidade e morbidade no setor. [...] o sistema demográfico do escravo brasileiro poderia ser definido nos seguintes termos distintos: − Mortalidade extremamente elevada, em todas as épocas e regiões, notadamente na faixa da mortalidade infantil. Frequência de surtos epidêmicos devastadores, particularmente de varíola, e depois dos anos de 1850 de cólera-morbo e febre amarela (MARCÍLIO, 1984, p. 201).

Na obra sobre o povoamento e as populações da cidade de São Paulo, compreendendo o longo período de 1750 a 1850, a historiadora em apreço conclui que "A importação de escravos da África dirigidos às novas plantações de açúcar, contribuiu igualmente para aumentar a população total" (MARCÍLIO, 1973, p. 101). A autora dá sequência ao estudo sobre a continuidade desse aumento populacional de escravos na cidade de São Paulo, em

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Especialistas no assunto afirmam que "O termo 'demografia histórica' parece ter sido utilizado, pela primeira vez, em 1933, no VII Congresso Internacional das Ciências Históricas, em que J. Bourdon apresentou uma comunicação intitulada de Os métodos da demografia histórica" (DUPÂQUIER, 1993, p. 215). Na sequência, esse autor faz menção ao período de 1954 a 1956, quando foram publicados os três tomos da obra de R. Mols, denominada de Introdução à demografia histórica das cidades da Europa do século XIV ao século XVIII. Esse teria sido o momento "exato" da constituição e instituição de uma demografia histórica propriamente dita. "Ela nasceu no Instituto Nacional de Estudos Demográficos em que Louis Henry [...] aperfeiçoou então, com o concurso do historiador Michel Fleury, um 'método de exame de exploração do estado civil antigo [ano de 1956] (DUPÂQUIER, 1993, p. 215).

111 vilas e campos da Capitania, ao fazer registros sobre o sistema de economias de plantations, quando da transição do cultivo da cana-de-açúcar para o cultivo do café. Percebe-se, pois, que os trabalhos pioneiros de Marcílio (1973, 1977 e 1984) têm contribuído como importante ferramenta técnico-metodológica no auxílio da produção historiográfica sobre doença, estilo de vida, longevidade e mortandade de escravos no Brasil oitocentista. Seus estudos foram antecipados às pesquisas de Mary C. Karasch (2000) por mais de uma década. Vale ressaltar que a historiadora brasileira reuniu uma equipe de historiadores e demógrafos de quatro países europeus, incluindo a Grã-Bretanha, e de dois países da América do Norte − o Canadá e os Estados Unidos da América. Isso permite afirmar-se que Maria Luiza Marcílio não estava limitada ao conhecimento de demografia histórica somente de tradição francesa.

Em relação a um segundo nome, menciona-se o da historiadora Kátia de Queirós Mattoso76. A exemplo da pesquisadora anterior, os estudos desta são reconhecidos em nível nacional e também extrapolaram fronteiras. Em seu trabalho, ela enfoca a escravidão no Brasil do período colonial e imperial. Entre suas produções, destaca-se o livro denominado de "Ser Escravo no Brasil", considerado pioneiro e inédito pela crítica especializada, tendo sido o mesmo alçado ao nível de divisor de águas, de modelo epistemológico, ou paradigma77, no cerne do pensamento intelectual historiográfico brasileiro direcionado para os estudos sobre escravidão. Como exemplo de avaliação crítica dessa obra, ao final do Prefácio da primeira edição em português pode-se encontrar o seguinte: ―[...] saudamos a publicação entre nós de uma obra magnífica, destinada a abrir uma nova era nos estudos da escravidão brasileira‖ (CARDOSO, 1982, p. 10). Para se compreender melhor os motivos de valoração dispensada a essa obra, é necessário fazer-se uma breve incursão no conteúdo dela, tendo-se como objetivo conhecer, ao menos em parte, o que a torna pioneira, inovadora o bastante para ter inaugurado "uma nova era" no âmbito da produção historiográfica brasileira relativa aos estudos de escravidão. Dentro desse contexto e a partir desse enfoque específico, busca-se detectar vieses relacionados a estudos sobre doença, longevidade e mortandade escrava.

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Importa registrar o fato de que o nome original dessa historiadora é Kyriacoula Katia Demetre Mytilineou, pois aquela que se tornaria a "brasileira" Kátia de Queirós Mattoso nasceu e viveu sua infância em Volos, na Grécia. De acordo com dados fornecidos por Reis e Souza (2013), logo após completar seus estudos na Suíça, em 1956 viajou para o Brasil e reencontrou seu tio e seu pai que já moravam em São Paulo. Nessa cidade viria a conhecer "[...] o engenheiro de minas e geólogo Sylvio de Queirós Mattoso, que se tornaria seu marido [...]. Em 1957, Sylvio Mattoso aceitou um convite para trabalhar [...] em Salvador. Em 1961, ele se tornou professor da recém-fundada Escola de Geologia da Universidade da Bahia. Foi, portanto, nessas circunstâncias que Kátia de Queirós Mattoso chegou à Bahia. Ela narrou com graça e delicadeza esse momento de sua vida na introdução de

Bahia, século XIX: uma província no Império. Nada poderíamos acrescentar ao que ali diz sobre seu itinerário e

sua imprevisível história de amor pela Bahia" (REIS e SOUZA, 2013, p. 366).

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Utiliza-se aqui o termo "paradigma" no sentido kuhniano, em que o mesmo pode também assumir o caráter de metodologia. Ver a obra de Thomas S. Kuhn − "A Estrutura das Revoluções Científicas", edição de 2003.

112 Inicialmente, importa lembrar que, em conformidade com os registros de Reis e Souza (2013)78, essa obra foi publicada pela primeira vez na França, no ano de 1979, com o título

Être esclave au Brésil − Paris: Hachette, 1979. No ano de 1982, foi traduzida para o

português e receberia o título de "Ser escravo no Brasil" − São Paulo: Brasiliense, 1982. Na sequência, foi traduzida para o idioma inglês e publicada nos Estados Unidos da América em 1986, tendo recebido o nome de To Be Slave in Brazil − New Jersey: Rutgers University Press, 1986. Suas reedições e reimpressões em língua portuguesa conferem ao livro dados termométricos que justificam a valoração feita no Prefácio de sua edição em português.

Na acepção de Cardoso (2003), a historiadora produziu uma pesquisa de síntese sobre "o ser" escravo no Brasil, mesmo englobando parte do século XVI, os séculos XVII e XVIII e quase todo o século XIX79, compreendendo, assim, o sistema escravocrata do Brasil colonial e imperial. ―Audácia de querer abordar tema tão amplo, de um país tão vasto, num período tão extenso. [...] Um país vinte vezes maior do que a França‖ (MATTOSO, 2003, p. 11), observa a autora. Uma "síntese" paradoxalmente alongada, que cobre cerca de quatro séculos − uma longa duração inspirada nos "Tempos da História" braudelianos80. Porem, justifica-se que

[...] Kátia Mattoso sabe vincular o local, o regional, com uma visão estrutural de conjunto, além de abordar temas antes negligenciados entre nós (em especial o da alforria e do liberto, em suas ligações com o escravismo em geral). É assim que o livro que ora apresentamos, sendo sem dúvida um trabalho de síntese, não é apenas isto: contém muitos aspectos e abordagens que procuraríamos em vão nos outros textos sintéticos ou monográficos disponíveis acerca da escravidão brasileira (CARDOSO, 2003, p. 8).

Entre os temas "negligenciados" antes da edição em língua portuguesa da obra em apreço − ano de 1982 −, traz-se à baila a problemática em torno da saúde, doença e morte de escravos que ocorreram ao longo desses quatro séculos. Cardoso (2003) não faz referência a tal assunto. Não obstante, em quase todos os capítulos do livro "Ser Escravo no Brasil" podem ser encontradas, em números consideráveis, referências explícitas aos seguintes tópicos: a) Saúde dos africanos antes e durante sua chegada ao Brasil; c) Doença e mortalidade de africanos durante a longa travessia atlântica; d) As epidemias que grassavam a bordo dos tumbeiros; e) Elevado número de morte ao longo do complexo processo de comércio e tráfico

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Confira-se a nota de rodapé nº 9, na página 369, do estudo de João José Reis e Evergton Sales Souza (2013), disponível nas Referências desta pesquisa.

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Quando se faz referência à escravidão no Brasil do século XIX, não se pode deixar de lembrar que a abolição da escravatura deu-se em 13 de maio de 1888, por meio da Lei Áurea. ―Aprovada em última discussão no Senado, a proposta é sancionada pela Princesa Isabel. Extingue-se a escravidão no Brasil‖ (GUIMARÃES, 1967, p. 63). Cerca de 13 anos (pouco mais de uma década do mesmo século) foram reservados para a República que começava a dar seus primeiros ―passos‖, em um país livre de cerca de 400 anos de escravidão negra.

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113 de africanos para se tornarem escravos no Brasil; f) Sobre os escravos doentes quando de seu desembarque no Brasil; g) O período de quarentena destinado aos escravos, depois que eles eram desembarcados doentes nos portos brasileiros, cuja finalidade era recuperar a saúde e promover a "boa" aparência dos escravos, de modo a contribuir para facilitar sua venda nos mercados escravistas nacionais, como os do Rio de Janeiro e de Salvador; h) As prováveis causas do número elevado de morte de escravos nos centros urbanos do Brasil colonial e imperial; i) Questões relacionadas à diversidade de alimentação dos escravos, às condições de vida, de trabalho forçado, de higiene e moradia. Gráficos e tabelas sobre doença e morte de africanos que eram escravizados são encontrados ao longo dos capítulos da obra.

No entanto, o livro de Kátia Queirós Mattoso é muito mais lembrado pela introdução de reflexões sobre questões não abordadas no Brasil, até a sua publicação no ano de 1982. São abordagens novas, de cunho teórico-metodológico, feitas, por exemplo, em trono de questões tais como "solidariedade" e "sociabilidades" envolvendo relações de escravos entre si e entre estes e seus senhores e proprietários. O fator desumanização do africano a partir do momento em que é vendido, ocasião em que o "ser" perde sua liberdade e sua individualidade, é um viés relevante que caracteriza a obra da autora em todas as discussões nela pontuadas, sejam locais ou regionais, conferindo ao título do livro um caráter histórico-filosófico, sociológico e antropológico. "[...] devemos tentar conferir ao escravo seu verdadeiro valor na sociedade dos senhores. Quem diz valor não refere preço e, sim, peso, estima, limite. É de um valor subjetivo que se pode falar quando encaramos, como escravo, esta questão" (MATTOSO, 2003, p. 117). Diante de tal afirmação, enfatiza-se que em consonância com as relações de solidariedade e de sociabilidades, construídas em diferentes situações, tempos e contextos, somam-se as questões de ordem teórica e metodológica. "O estudo da demografia dos escravos [...] apenas desponta entre nós em alguns estudos pioneiros, aqui e ali, às vezes obra de historiadores estrangeiros" (CARDOSO, 2003, p. 7). Ao pioneirismo dos estudos sobre demografia histórica de Marcílio (1973, 1977 e 1984), já abordado acima, soma-se o dos estudos de Mattoso (1982), os quais são anteriores, também, ao "pioneirismo" de Karasch (1987 ou 2000), assunto também já tratado acima.

Mattoso (2003), logo na Introdução de seu livro, publicado no idioma português, em 1982, questiona-se sobre sua audácia ao pretender, por meio de sua pesquisa, ir ao "encontro" do africano escravizado no Brasil. A historiadora não se permite deixar essa pergunta no ar, sem uma conclusão, e reserva o primeiro parágrafo de seu trabalho para a resposta.

114 Em primeiro lugar, audácia excessiva porque se trata de uma multidão obscura que jamais teve voz própria, cujas sabedorias não são as nossas, requerente de uma aproximação plena de ternura para que comece a ser compreendida e não permaneça reduzida à escravidão se for novamente mergulhada no anonimato coletivo da simples "força de trabalho" ou, ao contrário, se for tratada como soma extravagante de vidas exemplares (MATTOSO, 2003, p. 11).

Em "Ser Escravo no Brasil", a historiadora denuncia a existência de ―graves lacunas‖ nos estudos sobre escravidão desenvolvidos por intelectuais brasileiros, ao longo de um período de 50 anos, que vai de 1930 a 1980. Essas "graves lacunas" referem-se, conforme já pontuado, a questões de ordem teórico-metodológica (CARDOSO, 1982). As pesquisas de Mattoso (2003) contribuiriam para início de operação daquele paradigma caracterizado como "divisor de águas", ao que se passou a denominar de história social da escravidão no Brasil. ―A partir dos anos 70, ocorreu uma mudança de paradigma na história social do Brasil, como o de Kátia Mattoso em Ser escravo no Brasil‖ (PÔRTO, 2006, p. 1020).

A questão levantada por Karasch (2000) sobre os reais motivos do elevado número de morte de escravos no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX não é conclusiva, pois a brasilianista suscita algumas dúvidas a cerca tanto do que é justificado pelos abolicionistas da época quanto pelo que é encontrado na documentação pesquisada. Mattoso (2003) levanta