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ESTUDO SOBRE A HISTORIOGRAFIA DE DOENÇA(S) E MORTALIDADE DE ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO

II.4 Historiografia recente: de coletâneas a livros

A primeira edição do livro de Julita Scarano sobre o cotidiano e solidariedade de escravos no Brasil do século XVIII data de 1994. O contexto são as minas de ouro de Minas Gerais, onde, segundo percepção dessa historiadora, "A categoria mais desfavorecida era constituída pelos escravos [...]" (SCARANO, 2002, p. 9). Apesar das dificuldades enfrentadas para encontrar fontes sobre o cotidiano e as relações de solidariedade entre os escravos das minas auríferas do Setecentos, a autora encontrou no estilo de alimentação das populações do que diluída nos estudos de Freyre (1933 e 1963), de Marcílio (1973), Costa (1976), de Machado (1978), Libby (1979), Mattoso (1982), Somarriba (1982), Mello (1983), Porto (1988), Scarano (1994), entre outros.

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A ideia de reunir as obras de Marcílio (1973), Mattoso (1882) e Karasch (2000) e fazer referência a elas como tendo juntas composto os três clássicos da "moderna" historiografia das últimas três décadas do século XX tem como aporte a abordagem feita por Eugênio (2016) aos três clássicos "maiores" da "moderna historiografia" brasileira de meados da primeira metade do século XX, como seja: Freyre (1933), com "Casa-Grande e Senzala"; Holanda (1936), com "Raízes do Brasil"; e Prado Jr. (1942), com "Formação do Brasil Contemporâneo".

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No caso da tradução do livro de Mary C. Karasch para língua portuguesa, no ano de 2000, deve-se ter em mente que a pesquisa dessa brasilianista foi originalmente publicada em idioma inglês, nos EUA, ano de 1987, o que reforça sua inclusão no que se nominou de os três clássicos das três últimas décadas do século XX.

117 Brasil colônia uma via para adentrar no que ela denominou de alimento dos homens de cor. "É conhecido o fato de que pessoas de todas as classes sociais comiam mal no Brasil Colônia, seja do ponto de vista do gosto e do requinte, ou dos aspectos higiênico, calórico e de saúde" (SCARANO, 2002, p. 68). A partir desse aporte, a autora levanta a hipótese de que os níveis mais baixos da sociedade à época alimentavam-se mal, sofriam mais do que os "outros" os efeitos das carências próprias da comida. Em se tratando dos escravos, ela menciona "comida de doente". Tendo a alimentação como ponto de partida para produzir seu trabalho, Scarano (2002), além de enxergar no compartilhamento da comida uma forma de se construírem relações de solidariedade e de sociabilidades entre os cativos famintos, adentra no universo da saúde precária e, consequentemente, da doença e mortalidade escrava no período e contexto estudados. No livro dessa historiadora, os capítulos relativos a "Comida de doente" e "Saúde e sobrevivência" sobressaem em alinhamento com a temática aqui proposta. "Os problemas de morbidade e mortalidade relacionam-se com as características trazidas pela escravidão" (SCARANO, 2002, p. 132). A escravidão representava um maquinário complexo, um sistema que envolvia etapas e peculiaridades, dentre as quais destacam-se as seguintes: o africano perdia sua liberdade e identidade ao ser capturado e vendido como mercadoria na sua terra de origem − a África; a longa travessia atlântica, a chegada aos portos brasileiros, a mudança de lugar de origem para outro distante − no caso, o Brasil −, o tornar-se escravo no estrangeiro, a longa jornada e condições de trabalho, a alimentação precária, condições de moradia e de higiene deficientes, todos esses fatores em seu conjunto contribuiriam para fragilizar o corpo escravo que ficava à mercê de morbidades adversas das de seus locais de origem.

O tema pertinente às relações de solidariedades construídas na sociedade oitocentista desponta no decurso de toda obra de Betânia Gonçalves Figueiredo, vinda a público em 2002. O eixo central de pesquisas da historiadora é constituído por um bloco envolvendo o exercício prático de quatro "profissionais" responsáveis pelos cuidados de saúde das populações de Minas Gerais, ao longo do Oitocentos. Os profissionais de saúde à época eram os cirurgiões, médicos, boticários e os curandeiros. Pressupõe-se que no exercício de sua labuta diária esses personagens, no processo de atendimento a sua clientela, contribuíam para com a construção gradual de sociabilidades, visando-se a conquista e garantia de um "posto social" no seio da sociedade em que trabalhavam. Em suas próprias palavras: "Mais do que atuar na saúde, esses personagens [...] ocupavam uma posição social diante da comunidade na qual atuavam: prestígio e confiança em alguns momentos e, em outros, posições menos prestigiadas e valorizadas" (FIGUEIREDO, 2002, p. 23). Entre seus objetivos, a autora destaca questões

118 relativas às "nuances" das mudanças ocorridas na medicina do século XIX, da mobilização e atuação desses "profissionais" nos diferentes âmbitos das camadas sociais de então.

Os escravos, enquanto mão-de-obra ou mercadoria de posse, não eram considerados, do ponto de vista legal, um cidadão. Não obstante, isso não constituía de todo impedimento para a construção de solidariedades e, em decorrência desta, o surgimento de sociabilidades entre escravos e entre estes e seus senhores. "Por vezes o relacionamento entre o escravo e seu senhor é mais ameno do que entre dois escravos ou entre um escravo e um liberto" (MATTOSO, 2003, p. 123). Isto permite entender-se porque o negro fazia parte do universo de sociabilidades em que aqueles quatro personagens atuavam, embora na bibliografia de Betânia (2002) não conste a obra de Kátia Queirós Mattoso. Entretanto, a historiadora não se omite em deixar implícito a existência de nuances de solidariedade e sociabilidades entre as populações escravas, sobremaneira quando a situação envolve o adoecimento do corpo escravo e, quando inevitável, a sua morte. É, pois, no Capítulo denominado de "O corpo, a dor, a doença, o remédio e a morte" que o escravo doente desponta como vítima de um conjunto de fatores diversificados; entre eles, a associação do excesso de trabalho e as condições de vida escrava, o que dá a entender que se tratava de alimentação inadequada, moradia e condições de higiene precárias. "No caso dos homens e das mulheres negros, a identificação da causa do mal era com frequência associada ao trabalho e ou condição de vida, como consequência do trabalho escravo. [...] O excesso de trabalho comprometia, sem dúvida, a saúde do escravo" (FIGUEIREDO, 2002, p. 23). A identificação da "causa do mal" tem como aporte os relatos feitos por viajantes84 que estiveram percorrendo a Província de Minas Gerais e, ao longo de suas viagens, fizeram sua anotações com base em suas observações sobre o estado de convalescência dos escravos, anotando as doenças que os acometiam.

Pouco citado, mas de reconhecida importância, é o "Dicionário da Escravidão Negra no Brasil", da autoria de Clóvis Moura, editado pela primeira vez em 2004 com reedição no ano de 2013. Para os iniciantes interessados nos estudos sobre saúde, doença, condições de vida, longevidade e mortalidade de escravos (do período colonial e imperial), essa obra pode ser consultada e nela encontrar-se um "manancial"85 sobre tais questões. Como exemplo, cita- se o elevado número de abortos provocados pelas próprias escravas grávidas, aquelas que não

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Figueiredo (2002) utiliza-se de um levantamento feito por Ilka Boaventura sobre as doenças de escravos que esses viajantes teriam observado e anotado. Na página 96 da obra de Figueiredo (2002) pode ser encontrada uma tabela contendo cerca de vinte males de escravos apontados por um número de quase dez viajantes.

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No Prefácio dessa obra pode está registrada a seguinte referência: "O fôlego de historiador, já testado em seus numerosos livros, está presente nas centenas de verbetes (alguns são verdadeiras teses) que não apenas sistematizam e complementam o que se sabe sobre o regime escravista, mas trazem informações que irão permitir ao leitor formar uma opinião mais nuançada a respeito desse sistema de exclusão − humana, social e cultural − que dominou, soberano, durante quase quatro séculos da história brasileira (PEREIRA, 2013, p. 10).

119 queriam dar à luz filhos cativos, ou escravos de seus senhores. "Entre a fecundação e o aborto calculava-se em 70% a 80% a mortalidade, com uma percentagem enorme de abortos" (MOURA, 2013, p. 16). Verbetes que vão desde a alimentação, passando por cemitérios de escravos, a "engorda" de africanos desembarcados doentes nos portos brasileiros, enterro de escravos, espíritos da morte, mortalidade escrava, navios negreiros e males de bordo, seguro contra a mortalidade escrava, a geofagia e o suicídio, o tempo de vida, banzo, entre outros pertinentes e oportunos, encontram-se na obra em apreço.

No que se refere especificamente ao verbete "doenças" dos escravos, foram dispostas cerca de onze páginas para tratar do assunto. Moura (2013) dá início a esse tema tendo como ponto de partida a captura de africanos no interior da África, o seu embarque nos navios negreiros, a longa travessia atlântica, até chegarem aos portos brasileiros e passarem por um período de quarentena, tempo em que se dava o fenômeno da "engorda", ou seja: os escravos chegavam doentes e magros; eram enclausurados dentro de galpões, recebiam alimentação e tratamento médico adequados para adquirirem massa muscular e uma boa aparência, de modo que seus corpos jovens ficassem robustos e agradassem aos olhos dos consumidores quando na ocasião de compra da "mercadoria" humana. Não obstante o tratamento dispensado, após comprados esses escravos eram submetidos ao rigor do trabalho, fosse nos espaços urbanos ou rural; a alimentação era precária e viviam em situações higiênicas inadequadas, conforme já citado, tornando-se desse modo vulneráveis às moléstias. Em Moura (2013) encontram-se, com detalhes, as ideias de Emílio Goeldi e de Afrânio Peixoto, que juntamente com as de Octavio Freitas, creditavam aos africanos a responsabilidade por moléstias trazidas da África.

No Brasil, durante muito tempo postulou-se que as doenças dos escravos eram originárias da África e contaminaram o território brasileiro. Confundiu-se de tal forma o problema que o escorbuto, uma avitaminose, passou a ser chamado de "mal-de- luanda", como se fosse uma praga contagiosa trazida pelos negros de Luanda, região da África (MOURA, 2013, p. 129).

Dando continuidade aos estudos sobre o tráfico negreiro, Jaime Rodrigues trouxe a público, em 2005, sua obra nominada "De Costa a Costa", oferecendo novas possibilidades ao abordar um assunto que tem recebido a atenção de historiadores da escravidão no Brasil, qual seja: a travessia atlântica. No início da Apresentação de um outro livro86, publicado em 2000, esse historiador enunciava o seguinte: "Esta obra não traz como contribuição a descoberta de um tema inédito; seu objeto − o tráfico de africanos para o Brasil − é um assunto amplamente estudado pelos historiadores" (RODRIGUES, 2000, p. 23). Se o tema não era inédito, um

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120 novo viés sobre a questão era oferecido: trazer o debate à tona, depois de percorrer "novos caminhos", fazer novos questionamentos e utilizar-se de fontes inéditas (LARA, 2000). Cinco anos depois, esse historiador faria sua própria incursão no que Wissenbach (2005) tipificou como tema "complexo" quando se trata da travessia atlântica de africanos escravizados. Endossando as ponderações da autora do Prefácio desse trabalho, o historiador retocaria essa questão do seguinte modo: "[...] poucos temas têm recebido mais atenção do que a escravidão moderna, em seus múltiplos e facetados aspectos" (RODRIGUES, 2005, p. 23).

Em "De Costa a Costa", os caminhos palmilhados por Conrad (1985) em sua obra sobre os tumbeiros na longa travessia do Atlântico e as trilhas percorridas por Florentino (1997) em seu estudo sobre o comércio de escravos da África para o Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX são compartilhados. Entre as novas possibilidades ou entre os aspectos multifacetados da escravidão em que Rodrigues (2005) adentra e desvela no seu estudo, com recorte temporal de 1780 a 1860, destaca-se o Capítulo 8 − Saúde e artes de curar. Importa ressaltar que questões relativas à doença e mortalidade de escravos não estão restritas a esse capítulo apenas. O leitor atento vai encontrar no Capítulo 4 dessa obra várias passagens sobre os níveis elevados de mortalidade de africanos escravizados que adoeciam durante o percurso a bordo dos tumbeiros, na longa travessia atlântica. Porém, é no Capítulo 8 que se encontram quarenta e cinco páginas de texto sobre o que o autor denominou de "[...] um tema clássico87 dos estudos sobre o tráfico negreiro: a saúde de africanos e tripulantes" (RODRIGUES, 2005, p. 40). Se os estudos sobre saúde, doença e mortalidade de escravos são considerados como historiografia recente por especialistas como Pimenta e Gomes (2016) e mesmo por Eugênio (2016), o tratamento dispensado por Rodrigues (2005) a esses estudos, ao que sugere, sinaliza para outras possibilidades que remetem pesquisadores ao que se denominou mais acima de proto-historiografia sobre o tema em pauta, iniciado por Gilberto Freyre (1933), Octavio de Freitas (1935), Sérgio Buarque de Holanda (1936), entre outros.

O Capítulo 8 da obra de Rodrigues (2005), independente de ser considerado pelo autor como sendo um "tema clássico", trás leituras sobre doença e morte de africanos escravizados nas costas da África e embarcados nos navios negreiros. A inclusão de estudos sobre medicina popular e suas práticas direcionadas para as "artes de curar" a bordo dos tumbeiros possibilita ter-se mais compreensão acerca da engrenagem que envolvia diferentes personagens no complexo sistema de tráfico de seres humanos. É fato que se conhece pouco sobre os

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Denominar os estudos recentes sobre doença, saúde e mortalidade de escravos de um "tema clássico", dá a entender que as pesquisas sobre tal problemática vêm sendo desenvolvidas substancialmente desde pelo menos a segunda metade do século XX, o que não se sustenta. Não obstante, Rodrigues (2005) pode estar utilizando essa frase − "tema clássico" − no sentido de pureza ou originalidade pouco explorada, pouco tocada.

121 cuidados voltados para a saúde dessa "mercadoria" de bordo e de seu transporte através do Atlântico. No Capítulo 8 da referência, seu autor constata que o papel desempenhado pelos curandeiros e por médicos de medicina popular a bordo de navios negreiros foi, consideradas as limitações próprias do tráfico de escravos, relevante. "Havia, no Brasil dos séculos XVIII e XIX, médicos preocupados em divulgar conhecimentos preventivos e terapêuticos − e interessam-me particularmente aqueles que lidaram com doenças e doentes disseminados pelo tráfico de escravos para a Corte" (RODRIGUES, 2005, p. 253).

Os estudiosos interessados pelas morbidades, doentes e mortalidade a bordo de navios negreiros apontam em geral para os baixos níveis de saúde e altos índices de doença e morte ao longo dessas travessias atlânticas. A despeito da presença desses profissionais dos saberes médicos a bordo, os quais estavam "preocupados" com a saúde dos africanos escravizados e também com a saúde da tripulação, nas pesquisas produzidas sobre tal problemática é comum a constatação do grau elevado de mortalidade de escravos. Em seu estudo, Rodrigues (2005) destacou as seguintes moléstias de bordo: escorbuto, varíola, lepra, cólera, febre amarela, disenteria e distúrbios digestivos em geral, além de outros males não totalmente identificados e para os quais os médicos de bordo dispensaram cuidados. No que se refere aos profissionais de saúde embarcados em navios negreiros, esse historiador dispôs na sua Tabela 10 os nomes (também idade, naturalidade e a soldada) e suas respectivas especialidades, que no total eram as seguintes: cirurgiões, barbeiros e sangradores.

Em 2006, foi publicado o livro "Cidades Negras" (reeditado em 2008). Trata-se de uma obra cujo conteúdo gira em torno de aspectos diversificados da vida urbana e semi- urbana dos escravos no Brasil do século XIX. "Ao contrário dos cenários típicos das

plantations, grandes plantéis, agroexportação e feitores, parte da história da escravidão

atlântica foi vivenciada em paisagens urbanas ou semi-urbanas" (FARIAS et al., 2008, p. 9). Entre os doze capítulos que compõem esse trabalho, encontra-se aquele intitulado de "Vida e Morte nas Cidades Atlânticas". A influência de Karasch (2000) é a mais expressiva, sabido que a brasilianista foi a primeira a estudar o assunto, com abundância de dados, na cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Ao se levar em conta a obra completa, são notáveis as motivações advindas de Marcílio (1973, 1977, 1984) e de Mattoso (1982). No capítulo em apreço, fazem-se releituras de temas tais como: as altas taxas de mortalidade durante a travessia atlântica; o período de quarentena dos africanos desembarcados nos portos brasileiros, sobretudo no porto do Rio de Janeiro, antes de sua venda para os consumidores urbanos; as morbidades que consumiam "milhares" de escravos, sobremaneira na primeira metade do século XIX; as epidemias e um número elevado de outras moléstias, elencadas por

122 Mary C. Karasch (2000); morbidades acometidas por escravos nas prisões, entre outras. "As epidemias que assolavam as cidades negras eram de uma variedade espantosa" (FARIAS et al., 2008, p. 16). O estudo é válido por nele ser relembrada a vida de escravos que adoeciam nos centros urbanos do Brasil imperial e por serem revistas as moléstias novas da cidade do Rio de Janeiro. Dá-se prioridade à cidade do Rio de Janeiro, mencionada várias vezes, apesar de citarem uma vez Porto Alegre, Recife, Salvador e São Luis. Sugere-se que a menção feita pelos historiadores às "cidades negras" é uma forma de representar todos os centros urbanos do Brasil oitocentista. Os autores deixam implícito que o modelo urbano de vida escrava no Rio de Janeiro e as moléstias, velhas ou novas, que grassavam na capital do Império eram as mesmas em todo o território nacional.

No ano de 2007, veio a público o livro "Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo" e nele está incluído um capítulo sobre saúde e doença de escravos no Brasil do século XIX, da autoria de Ângela Porto. Trata-se de um estudo em defesa de uma história da saúde e das morbidades no cativeiro oitocentista. Segundo a autora, esse texto temático é uma versão melhorada e ampliada de um trabalho seu publicado em 2006.

O século XIX marca, no Brasil, a ocorrência da maior importação de escravos [...] A forma como o transporte dos escravos era feito e suas condições de trabalho, moradia e modo de vida são em grande parte responsáveis por seu estado de saúde. No entanto, a questão da saúde do escravo só aparece pelas frestas da história e apresenta muitos pontos controversos a ser esclarecido (PORTO, 2007, p. 207).

Por oportuno, chama-se a atenção para o final da citação logo acima, onde se pode depreender que a problemática relacionada à saúde e às condições de vida dos muitos escravos desembarcados no Brasil do século XIX, com preponderância para o porto do Rio de janeiro, só é pautada quando ela (a problemática) vasa através das "frestas da história" e que, mesmo assim, as narrativas sobre o assunto apresentam um elevado número de pontos controversos e os quais necessitam, pois, de esclarecimentos. Isto corrobora o fato de que não se pode fazer referência a essa questão como se ela fosse um "tema clássico".

Um outro viés sobre saúde, doença e mortalidade de populações escravas é oferecido por Engemann (2008) em seu trabalho intitulado "De Laços e de Nós". O estudo tem como foco a comunidade escrava da Real Fazenda de Santa Cruz, localizada nas proximidades do Rio de Janeiro do período colonial e imperial. Ao prefaciar a obra, Florentino (2008) avalia as pesquisas desse historiador e qualifica-as como sendo fruto de sua instigante perseguição

123 ginzburguiana88 por pistas e ou sinais sobre a vida comunitária na localidade. O fato é que, conclui o prefaciador, Engemann (2008) utiliza-se do rigor de sua inventividade. Nesse ponto crucial, o autor faz uso de aporte da teoria de White (2008) sobre meta-história89. Assim, a comunidade que ele "desenhou" é considerada frágil porque frágeis também foram as vidas de escravos que moraram em comunidades e lá estiveram e ou existiram tão apenas como mão- de-obra. Tratava-se, pois, de africanos "[...] constrangidos pela violência, presas fáceis de doenças mil, vendidos e revendidos sabe-se lá quantas vezes cada um [...]" (FLORENTINO, 2008, p. 9). Mesmo privados de sua liberdade, nem a doença nem o medo da morte impediu esses escravos de criarem laços de solidariedade e de sociabilidades entre si.

Não há um capítulo por inteiro sobre saúde e morbidades de escravos em "De Laços e de Nós". O que lá se encontra sobre tal assunto é um sub-tópico denominado de "Saúde", que por sua vez é parte do tópico "Vestígios da Comunidade" escrava na Real Fazenda de Santa Cruz. Ora, por se tratar de um texto com apenas quatro páginas e meia, contendo duas tabelas e dois gráficos, o mesmo destaca-se por seu valor qualitativo e quantitativo. No que concerne ao primeiro valor, o bem-estar comunitário apresenta-se como sendo um "Outro indicador sensível da diferenciada vida em comunidade [que] poderia ser o estado de saúde dos cativos"