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Saberes médicos no Brasil e no Espírito Santo oitocentistas

PERCEPÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

I.4 Saberes médicos no Brasil e no Espírito Santo oitocentistas

Feitas as narrativas acima sobre alguns conceitos e percepções teórico-metodológicas das ciências médicas na Europa do século XIX, na sequência elabora-se uma história sumária em torno dos saberes e das práticas médicas no Brasil do Oitocentos. Inicialmente, registra-se o fato de que houve duas grandes correntes dominantes e, politicamente, excludentes, as quais foram: a) A que se caracterizou por ter incorporado de modo predominante a medicina oficial e científica do Império; e b) A outra, caracterizada como charlatã por ter incorporado os saberes e práticas baseados no curandeirismo e não reconhecida como científica; portanto, considerada não oficial. Contudo, a despeito das divergências e da supremacia da corrente médico-oficial sobre as práticas não oficiais, ambas lutaram − uma de maneira explícita e outra de forma clandestina − para conquistar seus espaços e imprimir sua hegemonia na sociedade no decurso do Oitocentos brasileiro, com impressionante aceite social das práticas daquela considerada ilegal e charlatã. Para se ter entendimento, ao menos em parte, dessa querela, é necessário explicitar que a corrente científica e médico-oficial advinha de uma tradição formada por dois vieses fundamentados no pensamento médico vigente na Europa desde o século XVIII49 e os quais emergiram como artes de cura baseadas nas modalidades seguintes: a) No ressurgimento dos saberes de Hipócrates, que ficou conhecida como versão neo-hipocrática; e b) Aquelas artes de cura fundamentadas nas perspectivas empírico- positivistas, em conformidade com o que já foi discutido acima. No forjamento dos saberes médicos no Setecentos, surgiriam "[...] as disciplinas científicas e os modelos institucionais que revolucionariam os fundamentos práticos e teóricos da medicina acadêmica europeia, ao longo do século XIX [...]" (EDLER, 2014, p. 9). Ainda segundo postulados desse mesmo

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Em 1982, Alain Corbin publicou uma obra curiosa sobre o imaginário social em torno da arte dos "Saberes e Odores" no continente europeu dos séculos XVIII e XIX. O subtítulo da aludida obra é como segue: ""O Olfato e o Imaginário Social nos Séculos XVIII e XIX". As bases contribuintes para que tal imaginário se formasse na mente das pessoas foram as releituras dos princípios em torno dos saberes hipocráticos, o que deu origem aos saberes médicos renomeados de Noe-hipocratismo. Esse pensamento, conforme já pontuado nesta pesquisa, chegaria ao Brasil ainda no Setecentos e dominaria o imaginário social brasileiro ao longo de todo Oitocentos. Corbin (1987) faz uma abordagem sobre o que ele denominou de "revolução perceptiva" dos odores suspeitos. Essa revolução compreendia não apenas os velhos fundamentos dos saberes médicos de Hipócrates, mas viria a contribuir para a construção de um sistema complexo de perceptibilidades sobre o meio ambiente, em que os ares e os lugares tinham papel importante como causas das enfermidades em geral e da mortalidade de pessoas. Foi desse cenário de ares pútridos e miasmáticos que surgiriam as ideias orientadas para a purificação dos espaços públicos e, em consequência, dos espaços domésticos. No Brasil Império, essas ideias foram recorrentes e impulsionariam os responsáveis pelas questões de ordem sanitária para darem início às políticas higienistas. Pudera: "A lama de Paris forma uma mistura complexa de areia infiltrada entre as pedras do calçamento, de lixo nauseabundo, de água estagnada e de excremento. As rodas dos carros sovam essa massa, espalham-na, espirram os fedores na base das paredes e nos passantes" (CORBIN, 1987, p. 38). Eis um cenário muito parecido com os produzidos pelos viajantes que visitavam ou moravam por um tempo na Capital do Império − Rio de Janeiro.

83 autor, aqueles fundamentos teóricos e práticos da medicina, que aos poucos vinham se impondo desde o século XVIII, "[...] foram sendo apropriados e adaptados pelas elites médicas brasileiras [...]" (EDLER, 2014, p. 9). Havia, por parte do Poder Central, uma preocupação com a expansão e com a legitimação da profissão dos médicos no Império. Para que isso ocorresse, muito tempo seria necessário para o desenvolvimento e também instituição de uma medicina científica, nos moldes do que ocorria na Europa. No Brasil de então, as sangrias, por exemplo, continuavam se sobressaindo como prática cotidiana do saber médico, que, assim como as águas, eram indicadas como solução para todos os males.

Na medicina do século XIX, no Brasil e alhures, a sangria era terapia essencial contra os males diversos, verdadeira panacéia. [...] a medicina oficial [brasileira oitocentista] era uma arena de conflitos diversos, fragmentada pelas disputas entre diferentes sistemas médicos, dividida quanto às terapêuticas mais eficazes para várias doenças, confusa quanto às formas de prevenir e combater a propagação de doenças epidêmicas. Enfim, longe de gozar do prestígio e influência junto ao poder público [...] a medicina oficial não existia como fenômeno coeso e monolítico capaz de reproduzira tal "medicalização da sociedade" (CHALHOUB, 2001, p. 18).

Quanto às denominadas práticas "médicas" não oficiais, isto é, às ilegais, Sampaio (2001), é taxativa ao dizer que não se pode deixar de incorporar os sujeitos dessas práticas à história, visto que sem eles as medicinas no Brasil do Oitocentos estariam incompletas em face de uma silencialidade perturbadora, forçada politicamente. Assim, as práticas de cura dos que exercitavam a medicina na clandestinidade apresentavam-se tão importantes para a saúde do povo em geral quanto as práticas da medicina oficializada. Em muitas situações cotidianas, a medicina oficial era questionada e mesmo rejeitada pelas populações em geral, conforme se explica adiante. Na sequência, importa saber que

Apesar das dificuldades em se chegar mais perto do que pensavam e faziam vários praticantes e freqüentadores das atividades ilegais de medicina do Império, conseguimos ter acesso a muitos elementos daquele mundo distante. Sujeitos históricos ocultados e silenciados como os curandeiros e seus pacientes são sempre muito mais difíceis de ser encontrados do que os médicos oficiais, que deixaram diversos relatos e registros de suas ideias e pensamentos. (SAMPAIO, 2001, p. 153).

Antes de fazer o registro conclusivo acima, na forma dessa citação esclarecedora sobre os caminhos tortuosos e clandestinos do curandeirismo no Brasil imperial, a autora informa que esse tipo de prática era perseguido pela elite médica oficializada, com a ajuda da polícia e o respaldo da imprensa. Ela ressalta, de modo enfático, o seguinte:

No Rio de Janeiro do final do século XIX, assim como em todo o país, as mais variadas práticas de cura conviviam lado a lado com a medicina oficial do Império, aquela que julgava a medicina científica. Embora proibidas por lei e arduamente

84 combatidas por grupos de médicos e por setores da imprensa, as práticas ilegais da medicina estavam presentes com bastante força no cotidiano dos mais variados cidadãos do Império. [...] muitos pacientes tinham suas desavenças com os médicos tradicionais e suas prescrições, buscando, sempre que possível, formas diferentes de tratamento para seus males. Encontramos, assim, a forte presença das outras artes de cura no cotidiano de diferentes pacientes, concorrendo em pé de igualdade com os médicos oficiais (SAMPAIO, 2001, p. 21/22-29).

Esse estado de disputa político-administrativa e institucional-científica, sustentado por aqueles que se apresentavam como sendo profissionais autênticos e representantes absolutos dos saberes médicos versus curandeirismo e charlatanismo, não seria interrompido no século XIX por motivos já abordados, a exemplo da transposição de descobertas e práticas científicas ocorridas na Europa desde o século XVIII, mas não exercidas como tais no Brasil, pois que elas esbarravam, em grande parte, numa política de resistência e de permanência dos saberes médicos tradicionais vigentes. Em fins do Brasil Império, isto é, em 1888, as visões rígidas daqueles que defendiam uma saúde pública operante de fato ainda se encontravam ancoradas em velhas tradições articuladas para serem mantidas no poder.

Incapazes de acompanhar com a flexibilidade necessária o movimento de especialização do saber médico que revolucionava a medicina acadêmica na Europa, a elite profissional observava a rápida obsolescência de suas instituições, com graves reflexos na prática médica. O prestígio da corporação deteriorava-se de forma vertiginosa. Crescia o perigo representado pelas outras categorias de curadores, num contexto em que o monopólio de exercício da medicina não passava de letra morta (EDLER, 2014, p. 189).

Retomando-se a discussão inicial sobre aqueles dois vieses da medicina acadêmica, embasados no pensamento europeu desde o século XVIII − as artes de cura neo-hipocrática e as artes de cura fundamentadas nas perspectivas empírico-positivistas −, faz-se questão de ressaltar que eles foram decisivos no processo de formação da corrente médico-científica e oficial no Brasil desde início do século XIX. Noutras palavras: o transporte daquelas duas modalidades de pensar a cura das doenças, amalgamadas nas tradições do pensamento médico europeu, encontrariam no Império brasileiro acolhida indispensável, ensejando a instituição de políticas protecionistas, as quais seriam oficializadas pelo Poder Central e orientadas para aceitação, preservação e práticas dessas duas correntes tradicionalistas. Por oportuno, vale lembrar que do cerne dessas duas correntes teriam sido instituídos os denominados "estudos pioneiros" da medicina brasileira, que predominou no decurso do século XIX. Conforme já exposto, mesmo na segunda metade do Oitocentos, essa medicina tradicionalista-pioneira era imposta em face de novos conhecimentos, de novas correntes de pensamento.

85 Os estudos pioneiros da medicina oitocentista foram escritos quase exclusivamente por médicos voltados para o passado de sua profissão com a perspectiva de estabelecer uma certa memória que conduzia inexoravelmente à celebração da medicina vigente. Nestes estudos, fatos, personagens, e instituições do passado encontram-se articulados em narrativas que buscam estabelecer um contraste com crenças e valores corroborados pela prática vigente, traduzindo uma concepção evolucionista das ciências médicas. Tal esquema teleológico apóia-se, geralmente, na armadilha representada pela noção hipostática de precursores − espíritos clarividentes atuando sob um pano de fundo dogmático e tradicionalista (EDLER, 1998, p. 170).

A perceptibilidade desse autor prossegue, na modalidade de esclarecimentos que dão o devido suporte para a corroboração de suas hipóteses lançadas acima. Essa incursão contribui para se penetrar, até certo nível, na complexidade das tessituras de teias políticas da classe médica dominante e defensora de uma memória em cujos labirintos uma medicina de caráter evolucionista deveria ser preservada. Desse modo, deduz-se que a medicina brasileira clássica e pioneira, oriunda do pensamento setecentista e oitocentista europeu, era creditada como sustentável porque estava calcada na periodização de tramas teórico-etiológicas, de práticas curativas associadas a procedimentos terapêuticos consideradas complexas (ou seja: as tramas eram complexas). Por isso, importa saber que as tramas assumiam

[...] a forma de uma dicotomia entre espíritos presos a especulações metafísicas, retóricos e anti-científicos versus espíritos científicos. O saber médico dominante estaria supostamente fundado no antigo paradigma galênico, ou em variantes neo- hipocráticas apresentadas como um conjunto eclético de conhecimentos acumulados sobre fenômenos mórbidos e vitais. Tal saber foi avaliado como um amálgama de preconceitos difusos de cunho irracional e dogmático. Os médicos brasileiros do século XIX teriam, nesta versão, especial aversão à observação metódica e à experimentação científica (EDLER, 1998, p. 171).

Como se pode depreender, os princípios médicos referenciados acima encontravam-se inda à margem da medicina clínica, que se caracterizava por ser experimental, metódica, de laboratório e fundamentada na pesquisa científica. Porém, num sentido contrário à "versão" dos saberes médicos supramencionados, Trindade (2013) apresenta uma outra "versão" da medicina brasileira oitocentista. Esse autor defende a hipótese segundo a qual a pesquisa médica no Brasil teve início em 1850. Essa seria a terceira etapa de uma "evolução natural" conferida à medicina em qualquer parte do mundo. No intuito de conhecer a natureza de cada uma dessas três etapas evolutivas, informa-se o seguinte: a) A primeira delas teria como embasamento as concepções místicas e sobrenaturais; b) A segunda etapa, considerada intermediária, teria como aporte as observações seguidas de interpretações; c) Nesse processo evolutivo, a última etapa tem como fundamento a experimentação metódica associada à pesquisa. "No Brasil, a terceira etapa começou por volta de 1850, quando se iniciaram as

86 primeiras atividades de pesquisa científica médica, com a denominada Escola Tropicalista Baiana que trazia novas ideias e concepções de ensino e pesquisa para as ciências médicas" (TRINDADE, 2013, p. 113). Ainda em conformidade com os postulados desse mesmo autor, a medicina de laboratório de Louis Pasteur aos poucos chegaria ao Brasil, embora isso viesse a ocorrer nas últimas décadas do Império.

D. Pedro II mantinha estreitas relações com Pasteur e teve o seu primeiro contato com o cientista em uma das sessões da Académie des Sciences, na França. Em 1873 visitou-o em seu laboratório e expôs-lhe o problema do surto de febre amarela em algumas cidades brasileiras. A troca de correspondência entre eles tornou-se rotineira e Pasteur colaborou para o desenvolvimento da ciência brasileira enviando vários trabalhos de pesquisas dos seus laboratórios e recebendo dez médicos brasileiros para participarem de cursos no Instituto Pasteur em Paris (TRINDADE, 2013, p. 64).

Pode-se lançar a hipótese de que a partir de 1850, marco das primeiras atividades de pesquisa médica científica no Brasil, teve início essa medicina de laboratório. Deve-se atentar para a afirmação de Trindade (2013), quando ele pontua que a partir de 1850 "novas" ideias surgiam e eram orientadas para novas concepções de ensino e também de pesquisas médicas. Essas novas ideias pressupõem o início dos primeiros passos em relação ao exercício prático de uma medicina de laboratório, mesmo que rudimentar, a qual, por seu turno, viabilizaria, tempos mais tarde, o início da medicina clínica no Brasil.

O encontro de D. Pedro II com Louis Pasteur, na década de 1870, foi motivado pelo interesse natural que o monarca brasileiro nutria pelas ciências em geral − assim pressupunha- se. Não se pode deixar de registrar que esse monarca governava um Império escravocrata e que, por ocasião de sua visita ao cientista francês, a escravidão e a mão-de-obra cativa eram legais e defendidas de modo ferrenho, sobretudo depois da interrupção do tráfico negreiro em 1850. Na segunda metade do século XIX, o regime escravocrata brasileiro era visto como um problema grave pelos governos de outros países. O Brasil era, pois, considerado "[...] uma anomalia política [e econômica] nas Américas" (SKIDMORE, 1989, p. 19) e, igualmente, no contexto do mundo ocidental. Além do mais, enfermidades e epidemias caracterizavam um Império vulnerável às doenças. Apesar desses problemas, a economia cafeeira dos nominados "barões do café" estava em alta. Nessa época, a sociedade tinha interesse por modernização, a despeito de um sistema escravocrata decadente, mas vigente e operante a todo vapor. D. Pedro II tinha outros interesses que não somente o "amor diletante" pelas ciências.

Na década de 1870, o imperador brasileiro visitou o laboratório de Pasteur na Escola Normal Superior de Paris e concedeu-lhe a comenda da Ordem da Rosa. [...] A visita do monarca brasileiro não foi motivada apenas pelo amor diletante às ciências. O país que governava dava início à modernização que ia conduzi-lo a outro patamar da

87 divisão internacional do trabalho, transigindo com os interesses e mais raramente vencendo a resistência dos grupos ligados ao trabalho escravo (BENCHIMOL, 2018, p. 233).

Os surtos de epidemia de febre amarela apavorando populações de centros urbanos do território brasileiro poderiam ter caracterizado o interesse precípuo de D. Pedro II ao visitar Louis Pasteur em seu próprio laboratório em Paris. Mas, não foi o que ocorreu. Como já se adiantou acima, havia outros interesses, a exemplo do viés político e do transporte de conhecimento técnico no processo de manipulação de germens e a produção de vinhos.

Um dos motivos da visita de D. Pedro II a Pasteur foi obter a indicação de um químico versado nos processos de fermentação para a Escola de Minas organizada pelo físico e matemático Claude-Henri Gorceix (1842-1919), nos moldes da École de Saint-Étiene. Ela [a escola] seria inaugurada em outubro de 1876, em Ouro Preto capital da Província de Minas Gerais (BENCHIMOL, 2018, p. 234).

Os interesses político-econômicos do imperador brasileiro, ao fazer sua visita a Louis Pasteur, eram óbvios. A medicina, os remédios para a cura de doenças não foram, como se sugere, o motivo essencial de sua ida a Paris em 1873. De acordo com o postulado do autor da citação acima, foi somente em 1881, depois de concluir seus estudos envolvendo descobertas microbiológicas, que Pasteur começou a pesquisar a febre amarela (BENCHIMOL, 2018).

No Espírito Santo provincial, não se tem elementos o suficiente para se desenvolver uma abordagem a contento sobre o exercício de práticas médicas baseadas na corrente médica de pensamento oficial na mesma proporção do que acontecia em outras províncias do Brasil Império. Havia carência de profissionais dos saberes médicos de então. Ao se pesquisar sobre o assunto nas fontes disponíveis, descobriu-se que tal carência era grave por motivos diversos: argumentava-se que a falta de finanças para suprir as deficiências da salubridade pública era o impedimento principal. Eis um indício de que o curandeirismo era recorrente no Espírito Santo provincial. Não obstante, afirma-se que o pensamento médico e oficializado pelas elites do Poder Central era o mesmo dos gestores que demonstravam suas preocupações com a denominada "saúde pública" provincial. Detectou-se nas fontes o fato de que a partir de 1850 a presença de cirurgiões e de sangradores em Victoria era patente, mesmo contando-se tão poucos para darem conta dos problemas relacionados às enfermidades, mortalidade e luta pela preservação da saúde na província. Ao consultarem-se as fontes, comprovou-se, por exemplo, que devido a questões de cunho político-econômico, a corrente médico-científica teve menos representatividade local do que a corrente considerada não científica − aquela formada pelos curandeiros em geral e charlatões. Embora os sujeitos representantes dessas práticas de curas

88 não oficiais (as quais eram publicamente repudiadas pela elite médica oficial) não sejam mencionados explicitamente na documentação consultada, as pistas de que eles trabalhavam suas práticas no cotidiano de Victoria e da Província são bastante evidentes.

Isto posto, afirma-se que em relação ao grau de domínio dos saberes médicos oficiais operantes no Espírito Santo do século XIX encontravam-se em nível daquela segunda etapa voltada para a "observação e interpretação" preconizada acima por Trindade (2013). Seria duvidoso admitir-se que na Comarca de Victoria da segunda metade do Oitocentos a experimentação metódica e pesquisa médica tenham ocorrido. A despeito de sua proximidade geográfica da Corte, a Província fora classificada como sendo de terceira categoria, conforme narrativa oferecida mais adiante. O Espírito Santo era uma dentre as seis províncias mais pobres do Brasil Império, sendo que as outras cinco estavam geograficamente bem distantes da Capital imperial. Não seria, pois, de se esperar nem o exercício nem uma quantidade elevada de profissionais em práticas médicas iguais aos da Corte, por exemplo.

Para se ter uma ideia sobre o estágio em que os saberes médicos se encontravam na Comarca de Victoria, é necessário compreender que falta de profissionais de medicina, de boticas, de hospitais, de enfermarias e de atendentes hospitalares era alarmante. Contava-se com apenas um único hospital, o qual pertencia à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, cujos recursos financeiros e materiais eram bastante escassos. Só por volta do ano de 1855, o Presidente da Província asseguraria a contratação de um médico profissional para trabalhar e residir na Capital. Não é redundante mencionar que os saberes médicos na Comarca de Victoria tinham como fundamentação a medicina popular baseada nas experiências pessoais de vultos proeminentes locais, ou advinha de alguma pessoa que dera início ao Curso de Medicina e, mesmo tendo interrompido seus estudos, exercia a profissão de médico. Exemplo desse tipo de médico popular foi Basílio Carvalho Daemon (1834-1893), que frequentou as primeiras etapas do Curso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tendo desistido dos estudos e passado a atuar como médico amador. "[...] tinha vocação especial para essa