• Nenhum resultado encontrado

Proto-historiografia sobre doença(s) e mortalidade de escravos

ESTUDO SOBRE A HISTORIOGRAFIA DE DOENÇA(S) E MORTALIDADE DE ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO

II.1 Proto-historiografia sobre doença(s) e mortalidade de escravos

Ao contrário do que tem ocorrido nos Estados Unidos da América − EUA, no que diz respeito à produção historiográfica voltada para a saúde e doença de escravos, considerada como de longa data50, não se pode afirmar, com igual segurança, que no Brasil os estudos sobre saúde, doença e mortalidade de escravos receberam aqui o mesmo aporte historiográfico recebido lá, sobretudo no que se refere a uma produção continuada, com o respaldo de uma temporalidade que transporte o pesquisador de hoje à primeira metade do século XX. No caso específico dos EUA, a obra American Negro Slavery de Ulrich Phillips, publicada em 1918, é concebida, até certa medida, como pioneira por conter um número considerável de passagens sobre a saúde e longevidade da população escrava. Por não se tratar de uma obra inteiramente dedicada a essa questão específica, não obstante ela tem servido de recurso pelos historiadores norte-americanos devido ao fato de essas passagens, além de serem pioneiras, apresentarem- se como sendo de teor estimulante à pesquisa sobre a temática em apreço. No entendimento de Eugênio (2016), foi a partir dessas passagens presentes na obra de Ulrich Phillips que os estudos de William Dosite Postell (iniciados em 1951) sobre saúde e doença de escravos nos EUA inaugurariam uma tradição desse tipo de produção historiográfica. Assim, o ano de 1918 demarcaria o surgimento de uma proto-historiografia norte-americana sobre a temática em referência. Porém, não se deve esquecer que um período de pouco mais de três décadas se passou desde a primeira edição da obra de Phillips (de 1918) até o marco inaugural de uma historiografia continuada a partir dos estudos de Postell (em 195151). Ao não se levar em conta esse intervalo lacunar entre 1918 e 1951, passa-se a ideia de que desde o início − desde o ano de 1918 − a historiografia norte-americana sobre tal assunto caracteriza-se por uma produção contínua. Em Eugênio (2016), ao que parece, o caráter dessa "continuidade" é sugerido como um traço desse tipo de produção historiográfica, tanto lá quanto cá.

Em face do pressuposto acima, faz-se questão de enfatizar que após 1918 passaram-se cerca de 34 anos até a publicação, em 1951, do livro de William Dosite Postell denominado de The Health of Slaves on Southern Plantations. Este seria reconhecido como uma acurada

50

Eugênio (2016) sugere a existência de um "longo período" de produção historiográfica sobre as morbidades de escravos negros na América do Norte e, de modo peculiar, no Brasil. Segundo percepções desse autor, "Há muito tempo os historiadores estudam a história da saúde da população escrava. Nos EUA desde pelo menos o estudo de Ulrich Phillips [1918] e no Brasil desde pelo menos o estudo de Octavio [1935]" (EUGÊNIO, p. 29).

51

William Dosite Postell "[...] was an authority on Southern medical history and the author of numerous books and articles on the subject, among them The Health of Slaves on Southern Plantations published in 1951 by the Louisiana State University Press and reprinted in 1970 by Peter Smith" (TULANE UNIVERSITY LIBRARIES, disponível no site: http://libguides.tulane.edu/famousalumni/WDPostell).

92 produção historiográfica sobre saúde e doença de escravos se confrontada com as passagens dos estudos de Ulrich Phillips (datadas de 1918) sobre a temática em discussão. No ano de 1968, Philip Curtin publicaria seus estudos sobre Epidemiology and slave trade. Em 1978, os estudos de Savitt Todd −Medicine and salavery − viriam a público reforçar o que se começou a produzir parcialmente em 1918. Percebe-se, pois, que os anos de 1951, 1968 e 1978 estão próximos uns dos outros, compreendendo o período de quase três décadas. A partir dessas três publicações, pode-se afirmar, com certa reserva, que houve a continuidade de uma corrente historiografia sobre doenças e saúde escravas, cujo embrião data de 1918. Por outro lado, entende-se que não é possível conceber a existência de uma produção ininterrupta desses estudos durante o período de 1918 até 1978, o que de fato não ocorreu. Isso só seria possível com a publicação das pesquisas de William Dosite Postell em 1951 em diante.

A partir dessa exposição sinóptica sobre algumas peculiaridades da historiografia norte-americana, fazem-se ponderações sobre especificidades da produção historiográfica brasileira orientada para doença e mortalidade de escravos, sem excluírem-se as similaridades existentes entre as duas correntes historiográficas, como as pontuações feitas por Eugênio (2016) em seu trabalho recente52. Segundo perceptibilidade desse autor, no que concerne ao pioneirismo da historiografia brasileira sobre saúde e morbidades de escravos, o ano de 1935 − ou "[...] desde pelo menos [1935]" − pode ser sugerido, até certo grau, como marco definidor. A produção inaugural dessa historiografia teria ocorrido quando da publicação do livro denominado de "Doenças Africanas no Brasil", de autoria do médico, sanitarista e tisiologista Octavio de Freitas. No entanto, é fato que ao contrário da obra de Ulrich Phillips − de 1918 −, o livro de Octavio de Freitas − publicado em 1935 −, em sentido contrário, tornou- se "emblemático", passou a ser motivo de referências e ou de abordagens polêmicas desde pelo menos 1998, com certa progressão até os dias atuais. Todavia, importa registrar o fato de que mesmo antes de 1998, precisamente no ano de 1934, as hipóteses de Octavio de Freitas

52

Ao mencionar-se "similaridades" entre a história da escravidão nos EUA e a história da escravidão no Brasil, fazem-se inferências às potencialidades do método comparativo em História. Eugênio (2016) utiliza-se desse suporte no Capítulo I de seu livro "Lágrimas de Sangue", quando desenvolve um texto orientado para a produção historiográfica brasileira sobre a saúde dos escravos. Aos interessados em conhecer mais sobre esse método, faz- se recomendação do texto "O Método Comparado em História das Doenças", da autoria de Nascimento e Santa (2006). Em "As Pestes do Século XX: Tuberculose e AIDS no Brasil, uma História Comparada", Nascimento (2005) afirma que ao escolher essas duas moléstias para estudo, teve entre seus objetivos a utilização do método comparativo em História. Apresenta-se também o texto de Jörn Rüsen − "História Comparativa Intercultural" −, que é um capítulo disponibilizado em MALERBA, Jurandir (Org.). In: "A História Escrita : Teoria e História da Historiografia" (2006). Recomenda-se também o livro "História Comparada", de José D'Assunção Barros (2014). Esse autor coloca em evidência algumas das tendências historiográficas utilizadas na atualidade, tendo como embasamento práticas da História Comparada surgidas na primeira década do século XX.

93 sobre "Os Males Importados"53 da África para o Brasil já suscitavam comentários polêmicos em seu próprio tempo. Como exemplo, notificam-se observações pontuadas por Gilberto Freyre (1900-1987), que fez citação a um trabalho de Octavio de Freitas em um congresso ocorrido em 1934; portanto, um ano antes da publicação do livro do aludido autor. O conteúdo dessas observações pode ser conferido em nota de rodapé − ano de 193454. Mais recentemente, Carvalho (2007) publicou trabalho cujo impulso de abertura é o conteúdo do livro de Octavio de Freitas. Essa autora iniciou seu estudo com um parágrafo no qual registra a obviedade preconceituosa do referido autor:

O médico Octavio de Freitas (1871-1949), sanitarista, tisiologista, fundador da Faculdade de Medicina do Recife, em seu livro Doenças Africanas no Brasil (1935), atribui aos escravizados a responsabilidade pela introdução no país de quase todas as grandes endemias e de muitas doenças epidêmicas. Seu preconceito é tão óbvio e sua argumentação tão precária que hoje ninguém o refere para fundamentar análises da situação de saúde dos africanos no Brasil (CARVALHO, 2007, p. 1).

Sem motivos para levantar discussões contrárias ao pensamento dessa autora, registra- se que referências têm sido feitas (desde final do século XX e ao longo das duas primeiras décadas do século XXI) à obra de Freitas (1935), levando-se em conta diferentes aspectos da mesma. Nesse sentido, há aqueles historiadores que pontuam o caráter de ordem técnica, raro e periférico da referida obra em relação às visões institucionalizadas e tradicionalistas da medicina do período imperial brasileiro (EDLER, 1998); há aqueles estudiosos, em números maiores, que têm enfocado questões de ordem racista ou feito críticas de cunho reflexivo (CARVALHO 2007; PÔRTO, 2008; RODRIGUES, 2012); há também os pesquisadores que têm levantado discussões em torno da natureza científica orientada para a profissão do médico (SOUZA e CAVALHO, 2015); e há os estudiosos que pautam o fato inédito de esse livro ter sido uma publicação específica e pioneira sobre doença de africanos, ou de escravos, no Brasil (EUGÊNIO, 2016). A despeito das críticas feitas por Carvalho (2007) aos tons racista e preconceituoso presentes no estudo de Freitas (1935), há que se levar em conta o contexto científico e político da época em que o autor de "Doenças de Africanos no Brasil" viveu. Isto

53

Este é o título do Capítulo II do livro "Doenças Africanas no Brasil", a partir do qual Octavio de Freitas enumera as doenças africanas e faz descrição delas nos capítulos seguintes − do Capítulo número III ao XV.

54 Na 51ª edição do livro "Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia

Patriarcal", originalmente publicado em 1933, Gilberto Freyre faz alusão, na nota n° 137 − Capítulo V, aos estudos do médico pernambucano, nos seguintes termos: "Segundo o professor Otávio de Freitas, em trabalho lido no 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife (novembro, 1934), foram as seguintes as doenças trazidas ao Brasil pelos 'negros bichados': bicho-da-costa, maculo, bouba, guandu, frialdade, ainhum, bicho-de-pé, filarias. O assunto – a origem dessas e de outras doenças outrora comuns no Brasil – pede estudo mais demorado, como já observou outro médico que se vem inteligentemente dedicando ao estudo de doenças e de medicina no Brasil, o Dr. Eustáquio Duarte" (FREYRE, 2006, p. 572).

94 justificaria, até certa medida, o caráter polêmico do livro, ao mesmo tempo em que permitiria ensejar o levantamento de discussões em torno de outros vieses dessa obra (não apenas o viés racista e preconceituoso) e despertar interesse de pesquisadores motivados pelo assunto.

Em Edler (1998), encontra-se uma referência feita a esse médico, em uma nota de rodapé − justo a de número 1 −, onde a obra de Octavio de Freitas está referenciada como exceção à normatividade da produção historiográfica pioneira sobre a medicina brasileira, considerada como "puramente" intelectual − de caráter positivista e triunfalista. "[...] raras e periféricas foram as contribuições dos médicos do Império ao manancial técnico e teórico validado pelo saber médico europeu" (EDLER, 1998, p. 170). A obra do referido médico estaria, nesse sentido, no âmbito da contribuição rara e periférica. Em sua abordagem, esse historiador cita o nome de Octavio de Freitas, levando em consideração seu livro publicado em 1935 sobre morbidades envolvendo escravos tanto do período colonial quanto imperial, o qual fora uma exceção, ao ser confrontado com a produção historiográfica pioneira, triunfal, de natureza teórica e metodologicamente simplista. Embora Octavio de Freitas não tenha escapado de todo ao pensamento positivista e triunfalista de sua época, Edler (1998), ao que sugere, reconhece o aspecto técnico-científico e a natureza teórico-metodológica da aludida obra. No intuito de comprovar o teor desse reconhecimento, reproduz-se o conteúdo da nota de rodapé: "Exceção à esta regra é o livro de Freitas (1935), onde são apresentados os estudos originais realizados durante o período colonial e monárquico sobre as doenças africanas importadas para o Brasil juntamente com o tráfico de escravos" (EDLER, 1998, p. 170).

Em dois trabalhos, Pôrto (2006 e 2008) relata que existe uma escassez de estudos de médicos e historiadores sobre as morbidades de escravos. Em 2006, essa autora pontuou que "Algumas análises como as de Rodrigues (2004 e 1935) e Freitas (1935) têm uma visão determinista biológica, e refletem, portanto, a concepção da influência racial das doenças [...]" (PÔRTO, 2006, p. 1023). Em 2008, essa percepção evolui para os seguintes termos: "A atribuição de determinadas doenças provenientes da África é um assunto que está presente no pensamento médico até nossos dias, e cuja argumentação se consolidou com os estudos clássicos de Rodrigues55 (2004) e Freitas [ano de 1935]" (PÔRTO, 2008, p. 728). As hipóteses lançadas por médicos de que o tráfico de africanos favoreceu também a vinda de doenças que no Brasil colonial e imperial não existiam e que eram, portanto, morbidades desconhecidas, recebem o mesmo tratamento pontuado acima na seguinte sitação: "[...]

55

Aqui, Pôrto (2008) faz referência à obra "Os Africanos no Brasil", da autoria do médico e antropólogo Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906). Escrita entre 1890 e 1905, essa obra seria publicada após o falecimento do autor, no ano de 1933, com Prefácio de Homero Pires.

95 Octavio de Freitas [passou a ] imagem do Brasil como lugar de uma 'salubridade admirável', tendo os africanos vindo contaminar uma terra 'salubérrima' com suas doenças peculiares" (RODRIGUES, 2012, p. 20). Conforme já mencionado, dependendo do viés escolhido pelo estudioso, o conteúdo dessas abordagens altera-se, sem necessariamente excluírem-se as percepções sobre o teor racista e preconceituoso pontuadas acima. Exemplo disso está no viés escolhido por Edler (1998), o qual foi reverberado na modalidade seguinte: "[...] é como uma tese válida em seu contexto e apreciada por seus pares que pensaremos a obra de Freitas [...] não nos preocuparemos com o problema do preconceito em seu texto, mas buscaremos compreender os elementos que davam sustentação às suas formulações" (SOUZA e CARVALHO, 2015, p. 82-82). Ainda em conformidade com a leitura desses dois autores, o livro "Doenças Africanas no Brasil" começou a aparecer em artigos recentes, e aos poucos foi surgindo uma preocupação com a historiografia sobre morbidades da população escravizada, dando-se maior ou menor relevância segundo os interesses e ou olhares de cada pesquisador.

Para Eugênio (2016), conforme parcialmente relatado acima, o livro de Octavio de Freitas publicado no ano de 1935 demarcaria, de certa maneira, o início de uma produção historiográfica brasileira sobre a saúde e doença de escravos dos períodos colonial e imperial. Para justificar a importância desse marco inicial, o autor cita o período compreendido entre 1930 e 1949 − ou seja: as décadas de 1930 e de 1940 −, no decurso do qual a historiografia brasileira moderna foi inaugurada, "[...] quando a organização do ensino profissional e da pós- graduação em história estava sendo ainda iniciada" (EUGÊNIO, 2016, p. 38). Vale ressaltar que em defesa desse período "inicial" da organização do ensino profissionalizante em história no Brasil, esse autor toma como aporte historiográfico três obras consideradas clássicas dentre os "maiores clássicos" de grande repercussão nacional e as quais assinalariam aquelas duas décadas. Essas obras são: "Casa Grande e Senzala" (1933), de Gilberto Freyre; "Raízes do Brasil" (1936), de Sérgio Buarque de Holanda; e "Formação do Brasil Contemporâneo" (1942), de Caio Prado Júnior. Os autores desses três clássicos "maiores" teriam se esforçado no sentido para dar respostas a questões de ordem básicas e solícitas feitas, por assim dizer, pela classe de intelectuais brasileiros sobre a história nacional. Em relação à problemática direcionada para os estudos sobre saúde e doença de escravos, até fins da década de 1970 pouca "coisa" havia sido historiado. No cerne dessa pouca "coisa" disponível, Eugênio (2016) faz menção ao livro de Freitas (1935) como tendo sido algo de contribuinte, mesmo em face de suas delimitações teóricas, para o entendimento da temática relativa à saúde e doença da população escrava, temática até então pouco discutida.

96 Importa registrar que Eugênio (2016), a exemplo de Edler (1998), não faz apologia ao livro de Octavio de Freitas56. Igualmente, não tece críticas a conteúdo de teor racista presente nos estudos desse médico, para quem, vale enfatizar, os negros teriam sido os responsáveis pela vinda de patologias da África para o Brasil. Essas doenças teriam contribuído para agravar tanto o quadro nosológico quanto para elevar os níveis de insalubridade em âmbito nacional (FREITAS, 1935). Se a postura racista, preconceituosa e degradante dos males que esse médico pontuou em sua obra suscitou percepções críticas por parte de Carvalho (2007), Pôrto (2008) e Rodrigues (2012), por exemplo, no caso de Eugênio (2016) a motivação é especialmente historiográfica, isto é, fazer menção a um livro publicado em 1935 e no qual as doenças de africanos, ou dos "escravizados"57, são mencionadas e fazem parte daquela "pouca coisa" relacionada à produção historiográfica sobre o tema em pauta.

Isto posto, dá-se sequência a esta abordagem partindo-se de dois pressupostos: a) Não se levam em conta rigorosa as pontuações levantadas acima relativas aos antecedentes proto- historiográficos sobre doença e mortalidade de escravos na primeira metade do século XX por serem descontínuos; b) Enuncia-se a hipótese segundo a qual uma produção historiográfica com tendência a continuidade de estudos direcionados especificamente para essa problemática surgiu, sem dispensar o suporte daquela, na segunda metade do século XX58, com acentuação

56

Por oportuno, ressalta-se que José Octavio de Freitas (1871-1949) foi contemporâneo de Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906). O primeiro, nascido no Piauí, ainda criança foi com os pais morar em Recife. Ao completar 16 anos de idade, decidiu estudar na Faculdade de Medicina da Bahia e lá permaneceu durante um ano. Para completar seu Curso, transferiu-se para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Juntamente com os médicos e amigos Martins Costa, Ascânio Peixoto e Soares Avelar, Octavio de Freitas fundou, em 16 de julho de 1920, a Faculdade de Medicina do Recife (VAINSENCHER, 2008). O segundo, nascido no Maranhão, foi estudar em Salvador: matriculou-se na Faculdade de Medicina da Bahia em 1882. No ano de 1885, solicitou transferência para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde estudou durante um ano, pedindo transferência de volta para a Bahia, onde se formou no ano de 1888. Nina Rodrigues "[...] em 1889 tornou-se professor adjunto da cadeira de clínica médica na Faculdade de Medicina da Bahia. Por seus trabalhos na faculdade, ganhou prestígio e tornou-se um dos maiores nomes da medicina do Brasil [...] foi fortemente influenciado pelas teorias de antropologia criminal, que tinham como expoente máximo o médico italiano Cesare Lombroso. [Entre muitas publicações em vida, deixou] a obra póstuma Os africanos no Brasil" (LOPES, 2008, p. 1-2-3), prefaciado por Homero Pires, no Rio de Janeiro, em 18 de janeiro de 1933. Nota-se, pois, que Octavio de Freitas e Nina Rodrigues, além de contemporâneos, estudaram na Faculdade de Medicina da Bahia e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Compartilharam, em diferentes níveis, o pensamento médico da Escola Tropicalista Baiana de fins do século XIX. Segundo Pôrto (2006), Octavio de Freitas e Nina Rodrigues compartilharam, em seu tempo, a mesma visão direcionada para um determinismo biológico, o que lhes permitiam concepções sobre o caráter racista de africanos e suas doenças trazidas para o Brasil.

57

Em seu texto, Souza e Carvalho (2015) destacam as pontuações da autora Diana Maul de Carvalho (2007) sobre o teor racista e preconceituoso presente na obra de Octavio de Freitas. Não obstante, esses pesquisadores levantam a seguinte reflexão: "Afinal, eram doenças dos africanos ou dos escravizados? Pergunta latente que não será explicitamente o foco de nossa análise, mas que compõe nosso universo de indagação na medida em [que] abordaremos os termos raça e ambiente" (SOUZA e CARVALHO, 2015, p. 82). O texto de Diana Maul de Carvalho tem o seguinte título: "Doenças do Escravizados, Doenças Africanas?"

58

Para evitar mal entendimento acerca do ano que encerrou o século XX, informa-se que 2000 foi o último ano daquela centúria. Para esclarecimentos sobre as normas de contagem cronológica de séculos e de milênios, favor consultar "Século: anos de início e fim dos séculos". Acesse o site <http://www.jogral.com.br/seculos/>

97 produtiva em fins dessa mesma centúria. Pode-se reforçar esse viés hipotético afirmando-se que no decurso de transição do Novecentos para o "Novo Milênio" as pesquisas foram caracterizadas pelo que Aggio e Lahuerta (2003) denominaram de "síntese simbólica". Menos impactante nas duas últimas décadas do século XX, a continuidade da historiografia em discussão receberia sensível visibilidade na primeira década do século XXI, isto é, a partir de 200159, e, de modo mais acentuado, a partir de 2004, conforme exposição adiante. Outrossim, não se pode ignorar parcela importante do levantamento indiciário de Eugênio (2016), o qual gira em torno de uma proto-historiografia da saúde escrava e que foi desenvolvida ao longo da segunda metade do século XX, sobressaindo-se para além das polêmicas em torno do livro de Freitas (1935). Trata-se de um levantamento de obras, ou parte de obras, pouco "visíveis", ou pouco referenciadas, na historiografia sobre saúde e doença escrava de hoje, a qual esse historiador considera como estando em processo de maturidade e com sinalização para uma produção historiográfica especializada60. Tendo-se como propósito contribuir para minorar a