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ESTUDO SOBRE A HISTORIOGRAFIA DE DOENÇA(S) E MORTALIDADE DE ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO

II.2 Transição do século XX para o século

Até esta instância, fez-se uma exposição sumária sobre a produção historiográfica da doença e mortalidade escrava no Brasil oitocentista enfocando antecedentes da primeira e, sobremaneira, da segunda metade do século XX. Denominou-se de proto-historiografia esses antecedentes sobre o tema em apreço. Teve-se como propósito a citação dessa "pouca coisa" a qual se considera como contribuinte no processo de uma história social da saúde, morbidades e longevidade da população escrava. É a partir desse embasamento teórico-metodológico de caráter introdutório que se passa a justificar a denominada produção historiográfica recente sobre a temática pertinente, a qual foi impulsionada no período de transição do século XX para o século XXI. Há historiadores da saúde escrava que pontuam o ano 2000 como tendo sido o marco a partir do qual tiveram início as pesquisas orientadas especificamente para a saúde e morbidades das populações escravas. Foi a partir desse marco que se desenvolveram investigações em torno dessa temática, embora não se possa afirmar ainda o estabelecimento concreto de uma "agenda", de compromissos embasados por interesse comuns entre áreas de pesquisas direcionadas para a historiografia da escravidão e história das ciências da saúde.

No Brasil, os estudos sobre doenças e saúde da população escravizada começaram a despontar a partir dos anos 2000. Alguns dialogaram diretamente com a historiografia da escravidão, outros se inseriram no debate acerca da história da saúde. Embora não seja possível identificar uma agenda em comum, várias investigações mais recentes têm indicado a importância de mais pesquisas sobre doenças e saúde das populações coloniais e pós-coloniais, especialmente nas sociedades escravistas, sendo fundamen- tal verificar elementos que compuseram o quadro nosológico dos escravos, indicando doenças, curas, condições de vida e morte (PIMENTA e GOMES, 2016, p. 7).

Dispõe-se acima do conteúdo de uma citação suficiente para se abrir um debate sobre o que está defendido como produção historiográfica recente direcionada especialmente para a

101 saúde, doença e mortalidade de populações escravizadas no Brasil colônia e imperial. Fator inicial "central" é a menção feita aos anos 200061, marco que "delimita" o despontar desses estudos. Afirma-se que não há ainda uma "agenda" que possibilite a detecção de uma só via para o trânsito dialogal entre essa duas áreas historiográficas − historiografia da escravidão e história da saúde. No entanto, está implícito que se vem lutando por isso desde o despontar desses estudos sobre enfermidades e saúde de escravos. Outrossim, independente do número (considerado elevado) de investigações recentes efetuadas no âmbito dessas duas áreas historiográficas, vem-se apercebendo da necessidade de mais estudos orientados para as condições de vida e de saúde das populações escravas no Brasil colônia e império. Ao que parece, os autores estão sugerindo melhorias em questões de ordem teórico-epistemológica. Esse viés, que se considera sugestivo, contribuiria para o estreitamento de diálogos entre os dois campos de pesquisas, ensejando a concretude daquela agenda em "comum".

A citação feita aos "anos 2000", emblemáticos para Pimenta e Gomes (2016), tem seus motivos: reforça-se que naquele ano foi traduzido do idioma inglês para língua portuguesa o livro da historiadora e brasilianista norte-americana Mary C. Karasch, cujo título traduzido é como se reproduz: "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)". Desde então, a essa obra passou a ser considerada como marco histórico a partir do qual "começaram a despontar" pesquisas voltadas para as morbidades e saúde da população escrava urbana e rural do Brasil colônia e "pós-colônia" (referência feita ao período imperial). Em face da "concretude" de tal fato, há de reconhecer-se o "pioneirismo" de Karasch (2000) e também a frequência relevante com que historiadores passaram a referenciar os estudos da brasilianista. No mesmo ano de sua publicação em língua portuguesa, Graieb (2000) noticiou na mídia escrita que uma historiadora norte-americana havia feito nossa lição de casa62. No ano seguinte, Soares

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Conforme já citado em nota de rodapé, enfatiza-se que o século XX findou em 2000 e o século XXI começou em 2001. A referência feita a "anos 2000", ao que sugere, diz respeito às duas primeiras décadas do século XXI. Porém, 2000 é o último ano do século XX. E essa menção a 2000 tem uma razão ao mesmo tempo justa, incerta ou ambígua, pois o número cronológico é uma referência óbvia ao ano de tradução da obra da historiadora norte- americana Mary C. Karasch − "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)". A razão é justa quando a menção feita aos "anos 2000" objetiva o registro de início das pesquisas sobre enfermidades, saúde e mortalidade de escravos tendo-se como aporte a obra traduzida para o idioma português, facilitando o acesso de estudiosos desprovidos de domínio do idioma inglês. Porém, esse marco numérico é incerto e ambíguo quando confrontado com a publicação original da aludida obra, no ano de 1987, em língua inglesa, dificultando a leitura para aqueles que se enquadram no perfil mencionado acima. O pioneirismo de Mary C. Karasch, propalado por estudiosos de história da saúde e de doenças da população escrava brasileira, é, pois, muito anterior ao ano de 2000, quando da tradução e publicação de seu livro no Brasil. Sobre tal assunto, faz-se exposição dele no corpo deste texto tópico.

62 A manchete tem o caráter de um puxão nas orelhas de historiadores e pesquisadores brasileiros em geral. Para

reforçar a hipótese, reproduz-se trecho desse escrito: "O intuito de Mary Karasch não é propor uma nova teoria sobre o sistema escravista. Fiel ao estilo 'pé-no-chão' dos melhores historiadores anglo-americanos, ela prefere descrever a realidade a elucubrar. E a realidade que lhe interessa está no cotidiano dos cerca de 80.000 escravos que viviam no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX – a maior população urbana de cativos das Américas" (GRAIEB, 2000, p. 2).

102 (2001), definiria essa obra como sendo ―destruidora‖ de velhos paradigmas da historiografia escravista brasileira. Até onde se conhece, foram duas as repercussões imediatas e que se reprisa: uma na imprensa midiática e outra na imprensa de pesquisa histórica. É notório um certo tom agressivo por parte da mídia impressa na divulgação da aludida obra em idioma português. Ignorou-se o fato de que antes dela havia antecedentes historiográficos sobre essa problemática dirigida para a doença e mortalidade escravas. Àquela "pouca coisa" de historiografia levantada por Eugênio (2016), pode-se acrescentar mais "coisa". No livro de Julita Scarano, primeira edição no ano de 1994, por exemplo, a questão sobre doença e saúde de escravos mineiros do século XVIII é tratada em mais de três capítulos, conforme exposição adiante. Igualmente, não se pode ignorar o fato de que a primeira edição do livro de Karasch, em língua inglesa, no ano de 1987, estava, de certa forma, disponível para os historiadores brasileiros de escravidão. No livro pioneiro de Kátia M. de Queirós Mattoso63, publicado em língua portuguesa no ano de 1982, contém considerável número de tópicos referenciando as condições de vida, saúde, alimentação, doença e mortalidade de escravos. Se historiadores brasileiros não despertaram para essa problemática antes do ano de 2000, deve-se reconsiderar a afirmação de que a brasilianista norte-americana veio ao Rio de Janeiro e "fez nossa lição de casa", segundo os argumentos de Graieb (2000). Por oportuno, é mister mencionar que no mesmo ano de 2000 Eugênio (2000) publicou um artigo sobre morbidades de escravos64 enquanto problema médico local, de fins do século XVIII, na Província de Minas Gerais.

Esse impacto imediato de "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)", na mídia impressa de 2000 e na pesquisa histórica impressa de 2001, reverberaria na academia brasileira. Não seria de se esperar imediatamente a produção de teses e ou publicações de livros por parte de historiadores nacionais. O estudo, a pesquisa em Ciências Históricas tem naturalmente seu tempo de gestação, desde a consulta, a escrita, as revisões, até sua evolução comunicativa e possível publicação. Em 2004, ocorreu o "I Seminário História das Doenças", fruto dos Programas de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz − FIOCRUZ em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ. Naquele mesmo ano, em tempo recorde, seria publicado o Volume I da coletânea denominada de "Uma História Brasileira das Doenças", na qual foi incluído um capítulo sobre doença de escravos. Em 2006, realizou-se o "II Seminário História das Doenças", seguido de publicação, também

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Parte do conteúdo do livro de Mattoso (1982) − "Ser Escravo no Brasil" − será abordado mais adiante.

64 Em realidade, nesse artigo Eugênio (2000) propõe-se levantar algumas questões em torno do conteúdo de um

Tratado Médico de autoria do francês Jean Barthelemy Dazille, traduzido para o idioma português por Antônio José Viera de Carvalho, português que trabalhava nas Minas Gerais de fins do Setecentos. O título do tratado é: "Observações Sobre Enfermidades de Negros: suas causas, seus tratamentos e os meios de prevenir". Mais adiante, faz-se uma abordagem acurada de parte do conteúdo desse tratado.

103 em tempo recorde, do Volume II da coletânea de mesmo nome65. Não obstante, problemas de ordem diversos caracterizariam essas publicações efetuadas logo após a realização dos seminários. O exemplo de publicação do Volume I da mencionada coletânea foi considerado a um só tempo problemático e, paradoxalmente, extraordinário. "A lamentar, de início, a falta de uma revisão editorial cuidadosa, que teria vetado alguns trechos de mau português" (CASTRO-SANTOS, 2006, p. 1). O tempo disponível para a realização do evento e publicação da coletânea apresentava-se exíguo. Esse autor cita outros problemas, mas não é omisso em relação ao que ele considera extraordinário, conforme excerto a seguir:

Mas esses problemas não são graves se atentarmos para o porte da empreitada. Assinale-se, desde logo, para a dificuldade das organizadoras bem como da presente resenha de realizar um balanço crítico de tantas contribuições de peso, alinhavando o sentido geral, as diferentes perspectivas, os meio-tons de sentido e de observação, os recortes específicos de mais de uma dezena de doenças, endemias e epidemias. Talvez alguma observação cuidadosa sobre metodologias históricas (no plural) ou sobre a viabilidade da utilização de múltiplas propostas histórico-sociológicas, fosse uma forma de encaminhar aquele balanço crítico. Afinal, a pouca familiaridade com o método e com a interpretação é, não raro, a pedra no caminho dos autores que se interessam pela historiografia das doenças. Mas não é o caso da presente obra (CASTRO-SANTOS, 2006, p. 2).

Percebe-se que o tempo decorrido entre 2000 e 2004 (inclui-se também o seminário de 2006) não foi suficiente o bastante para se produzir "algo" em conformidade com pontuações elencadas por Castro-Santos (2006) em sua resenha. O próprio autor toma para si mesmo o problema do tempo recorde para produzir seu estudo crítico-reflexivo sobre a coletânea referida. A publicação do livro de Karasch em 2000 repercutiu sensivelmente nas decisões tomadas sobre a produção do seminário em 2004. As influências da obra da brasilianista são naturalmente notórias. Logo após 2006, data do segundo seminário e publicação do Volume II da coletânea, em 2007 ocorreria um evento pioneiro e inteiramente dedicado a doença, saúde e mortandade de escravos no Brasil dos séculos XVIII e XIX, com prioridade para o século XIX. "Doenças e Escravidão"66 foi não apenas uma demonstração de historiadores da doença, saúde, longevidade e mortandade de escravos, mobilizados pelo interesse no avanço produtivo dessa problemática e de suas possibilidades, mas foi também uma forma de reconhecimento motivacional do trabalho e influência da historiadora norte-americana.

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As publicações resultantes das Comunicações, a partir de elaboração de estudos e apresentação de pesquisas nos "Seminários História das Doenças", que receberiam no ano de 2013 a denominação de "Colóquio de História das Doenças", serão referenciadas neste estudo, na modalidade de um "bloco" narrativo mais adiante.

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Nome completo do evento: "Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas". Constituiu o simpósio temático de número 25 do XII Encontro Regional de História − ANPUHN, Rio de Janeiro ano de 2006. Os trabalhos apresentados no referido simpósio foram coletados, organizados por Ângela Porto e publicados na modalidade de CD-ROM pela Casa de Oswaldo Cruz/COC e FIOCRUZ no ano de 2007.

104 Em 2007, "Doenças e Escravidão" foi publicado na modalidade de um CD-ROM contendo os seguintes elementos: um Prefácio, Apresentação e uma coletânea dos Resumos (distribuídos em quatro Capítulos) com um total de quinze estudos, dez dos quais privilegiam a temática doença, saúde, longevidade e morte de escravos em tempos e contextos sociais diversificados. No que concerne à obra de Karasch (2000), confere-se no Prefácio o seguinte: "Na historiografia brasileira − como assinala Ângela Porto e muitos outros autores desta coletânea − o estudo de Mary Karasch foi pioneiro [...] inaugurou uma vigorosa tendência − que se mantém até os dias atuais − de análises sobre as nações africanas no Brasil" (WISSENBACH, 2007, p. 4-5). Na Apresentação, o pioneirismo da brasilianista é justificado nos seguintes termos: "A Profª. Mary Karasch teve sempre uma palavra de incentivo aos trabalhos e aos pesquisadores por mais iniciantes que fossem" (PORTO, 2007, p. 1). Numa outra ocasião, Porto (2008) falaria da necessidade de se abrirem caminhos em história de enfermidades e saúde de escravos no Brasil, ressaltando a importância de se diversificar a documentação consultada, não se atendo o pesquisador em apenas registros de óbitos. Para justificar sua hipótese, essa historiadora lembra que "Os resultados demonstrados por Karasch (2000), em seu estudo até hoje incomparável [...]" (PORTO, 2008, p. 730) foram embasados numa diversidade de fontes consultadas. Dito isto, reforça-se a hipótese, defendida por muitos historiadores, de que os estudos sobre doença, saúde e mortalidade de escravos no Brasil ainda estão em fase de fundamentação, sobretudo se comparados com as pesquisas em torno da mesma problemática desenvolvidas nos EUA (em fase bastante avançada, conforme já se mencionou acima). Daí as inferências feitas por Pimenta e Gomes (2016) sobre a inexistência de uma agenda comum (e ou concreta) entre a historiografia da escravidão e os debates em torno da história da doença e da saúde.

Apesar de já ter sido abordada em nota de rodapé, retoma-se a questão sobre a data de publicação − o ano de 1987 − do original de "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808- 1850)"67. Ora, a presença de Mary C. Karasch no Brasil, especialmente na cidade do Rio de Janeiro68, data de 1968 (SOARES, 2001). Suas pesquisas sobre o cotidiano de escravos vivendo em contexto urbano culminariam com a defesa de sua Tese de Doutorado-Phd em História na Universidade de Wisconsin em 1972. Quando a historiadora norte-americana

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Título do livro no original: Slave life in Rio de Janeiro (1808-1850), by Princeton University Press, 1987.

68 Entre os anos de 1968 e 1987, Mary C. Karasch ―[...] lecionou como professora visitante da Universidade de

Brasília‖ (SOARES, 2001, p. 422). Segundo Karasch (2000), suas pesquisas não poderiam ter vindo a público sem suas experiências culturais vividas em cidades e no interior do Brasil: "[...] o produto final não poderia ter sido escrito sem as experiências culturais que tive ao morar em Brasília durante dezoito meses, enquanto lecionava na Universidade de Brasília [...]. Viajar pelo interior do Brasil e ver tradições religiosas e culturais do século XIX, sobre as quais eu apenas lera, permitiu-me escrever os capítulos que tratam da religião e da cultura dos escravos" (KARASCH, 2000, p. 11).

105 desembarcou no Brasil, as pesquisas acadêmicas de então − fins da década de 1960 e década de 1970 − giravam em torno da produção de ensaios sociológicos, com certo ―desprezo‖ por parte dos pesquisadores universitários pelos acervos históricos. ―Mary encontrou salas de arquivos vazias de gente, mas repletas de documentos, contradizendo a máxima tão falada à época de que Rui Barbosa tinha queimado todos os registros da escravidão nos primórdios da República‖ (SOARES, 2001, p. 421). Vinda "[...] de uma tradição historiográfica africanista e ligada aos estudos do tráfico da escola de Winsconsin [...]" (WISSENBACH, 2007, p. 4), a brasilianista norte-americana não enfrentaria dificuldades para encontrar farta documentação disponível nos arquivos do Rio de Janeiro. "Quando iniciei minha pesquisa [...], no final da década de 1960, estudantes de pós-graduação estrangeiros, como eu, e homens grisalhos que pesquisavam a história de suas famílias pareciam ser as únicas pessoas a trabalhar em arquivos" (KARASCH, 2000, p. 12). Mesmo em face dos resultados comprobatórios obtidos em suas pesquisas, a autora não compreendia as razões de os brasileiros desacreditarem em seus estudos sobre a escravidão no Rio de Janeiro. "[...] disseram-me que não encontraria nada, pois todos os documentos haviam sido queimados na época da abolição. [Tendo traba- lhado] durante anos nos extensos registros da escravidão [...] e manuseado pessoalmente os documentos, os brasileiros insistiam que meu projeto era impossível" (KARASCH, 2000, p. 12). A experiência da autora, aliada ao passar do tempo, provaria o contrário. Pouco mais de três décadas depois (considerando-se os dias atuais), essa mentalidade mudou e pesquisadores universitários brasileiros de escravidão passaram a frequentar os arquivos.

A exemplo de Phillips (1918), que em sua obra American Negro Slavery incluiu um determinado número de passagens sobre a saúde e longevidade da população escrava nos EUA, no livro de Karasch (1987), originalmente intitulado de Slave life in Rio de Janeiro

(1808-1850), encontram-se três capítulos cujo conteúdo é dedicado a essa temática. Importa

ter em mente que Mary C. Karasch não publicou um livro inteiramente dedicado ás doenças, saúde e mortalidade de escravos brasileiros. Por outro lado, deve-se reconhecer que se trata de uma obra robusta, ambiciosa69, com 646 páginas, contendo um total de onze capítulos e dois apêndices70. O Capítulo 4 − As almas: os que morriam − gira em torno de mortes, taxas de

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A utilização dos termos "robusta" e "ambiciosa" tem como aporte a própria definição da autora sobre sua obra: "Ao escrever um livro, mesmo uma obra tão grande quanto A vida dos escravos, há sempre algo que fica de fora [...]" (KARASCH, 2000, p. 12). Ressalta-se que a autora pontuou cada capítulo de sua obra com tabelas sobre a demografia escrava do período de 1808-1850, privilegiando assim o método quantitativo sem se descuidar do aporte qualitativo. Os dois apêndices de 22 páginas estão repletos de dados estatísticos.

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Tem o Apêndice A e o Apêndice B. O primeiro contém uma farta quantidade de dados demográficos sobre as "Origens Africanas do Tráfico de Escravos para o Rio de Janeiro", compreendendo o período de 1830 a 1852. Quanto ao segundo, ele é de importância para esta pesquisa por se tratar de um levantamento de dados sobre as

106 mortalidade consideradas elevadas, da longevidade, de nascimentos e batismos dos escravos nascidos de africanos chegados ao Rio de Janeiro. "Moléstias pustulentas, mortes prematuras, medo de canibalismo, bruxaria e feitiçaria: seriam esses os terrores físicos e espirituais que traumatizariam os africanos enquanto se adaptavam à cidade estrangeira [...]" (KARASCH, 2000, p. 142). Percebe-se uma preocupação por parte da autora no que concerne a análises demográficas da população escrava. No Capítulo 5 − Sob o açoite −, as questões se voltam para os maus-tratos físicos, prisões e doenças das prisões, as condições de vida: roupas, moradia, alimentação, o atendimento médico, etc. "Os registros de sepultamento e as taxas de mortalidade começam a estabelecer as dimensões do problema da sobrevivência dos escravos no Rio, mas a questão permanece: por quê? Por que morriam tantos escravos com tão pouca idade?" (KARASCH, 2000, p. 168). A autora não tem uma resposta, uma definição para uma problemática que a incomodou tanto. Ela cita as justificativas dos abolicionistas do passado, segundo os quais era a crueldade do tratamento dado aos escravos e as punições excessivas que contribuíam para tantas mortes. No entanto, os pontos de vista da época sobre essa violência divergiam e para Karasch (2000) ainda hoje essa questão é difícil de ser avaliada: requer mais estudos sobre esse tratamento dispensado aos escravos, cujas consequências eram impactantes e o grau de mortandade era, portanto, elevado.

O Capítulo 6 − "As armas dos feiticeiros: doenças" − é geralmente o único ou o mais citado pelos pesquisadores que vêm se debruçando sobre essa problemática a partir de 2000. Ao que parece, os capítulos 4 e 5 não têm sensibilizado os estudiosos sobre a importância do