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Afeto, medo e política: Cidade Alta

3. Perdida em presença: a poética das ruas

3.1 Afeto, medo e política: Cidade Alta

A primeira ida às ruas foi feita no bairro de Cidade Alta. Segundo a SEMURB – Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (2009), o bairro também conhecido como o Centro (comercial) de Natal, foi o primeiro núcleo de povoamento do estado do Rio Grande do Norte. O local onde se encontra a Praça André de Albuquerque – ponto

alto do bairro – continha vista privilegiada para o Rio Potengi e as aldeias indígenas da tribo Potiguaras.

Devido a isso, foi escolhido pelos Portugueses como lugar para construção da primeira capela e da Câmara. Natal cresceu ao redor da Cidade Alta (habitado pela população mais abastada) e bairro da Ribeira (habitado por tribos indígenas e pescadores). Até onde se tem registro nos meios oficiais, no ano de 2009, o bairro Cidade Alta/Centro ocupava uma área de 94,1 hectares, com cerca de 2.253 domicílios permanentes, além de uma população residente de 7.247 pessoas. Reflito sobre a importância da Cidade Alta como o primeiro bairro a ser visitado, pois

o centro da cidade, o espaço urbano é sempre locus de produção da vida pública, pois possui a dimensão do humano em todos os seus cantos e em sua produção simbólica. Também é aí que vivenciamos o espaço do conflito.(SANDER, 2012, p.3).

Preciso ressaltar que o centro é um lugar que me encanta desde muito pequena, principalmente por isso comecei por lá. Quando nossos atos estão preenchidos de algum sentido é porque nos apropriamos das redes de significações que encontramos pela vida, isso é o que faz com que formulemos nossas escolhas (MARQUES, 2010). Dessa forma, foi difícil tomar decisões sem tendenciar ao lado afetivo, pois somos seres carregados de realidades construídas nas interações com o mundo.

Meu pai e eu costumávamos pegar nossas bicicletas nos domingos e pedalar nas ruas da cidade alta conhecendo os prédios importantes, as casas mais famosas. Lembro de uma vez sentarmos em um casarão com pequenas “fotos” feitas em alto relevo na parede com os rostos dos antigos moradores. Esse casarão é conhecido na cidade pelas suas histórias de terror envolvendo a velha Viúva Machado, uma senhora que carregava nas costas a lenda urbana de ser sequestradora de crianças intrometidas para comer seus fígados. Meu pai me contou essa história em um desses passeios e nunca mais esqueci. Nós sempre entrávamos em ruas e mais ruas para desbravar aquele território, exatamente como fiz em minha pesquisa. Entretanto, agora tenho outros objetivos e me perco a pé.

Saí então da casa do meu pai, já em uma rua onde não se sabe exatamente a que bairro pertence, fica na intersecção entre Cidade Alta e Ribeira. Fiz minha meditação em pé, parada, contando em quantos segundos eu inspirava e expirava, ouvindo os carros passarem e as pessoas que riam e conversavam quase tão alto que parecia uma briga – primeira dificuldade: conseguir atingir um estado de atenção a si – e caminhei. Nesse

primeiro momento escolhi só caminhar, respirar e observar em busca de descobrir coisas que ainda não tivesse percebido no centro.

Decidi iniciar meus perdidos dessa forma, pois me inspirei nos anti-arquitetos do movimento Internacional Situacionista, já citado aqui, que nas décadas de 1950-1960 carregou consigo as articulações entre arte e política e arte e cidade, agregando a elas a ideia de intervir nos ambientes por meio de práticas como a deriva, a psicogeografia e o desvio – atividades que defendem o ato de andar a pé, ao acaso, pelas cidades como uma forma de reinterpretar os espaços por meio da experiência de seus praticantes. Foi a partir das derivas situacionistas que a cidade passou a ser medida de acordo com afetos e paixões decorrentes da subjetividade do frequentar lugares e escutar seus próprios impulsos (CARERI, 2013).

Apesar da Internacional Situacionista ter sido precursora de tal pensamento que agrego a minha pesquisa atualmente, no dia-a-dia é comum que a cidade seja o lugar de passagem e que andar por ela seja apenas uma forma de translado. Ir de um ponto a outro, cruzar as calçadas, passar pelos centros. Os corpos se movem automaticamente em busca de cumprir objetivos e não se atentam à experiência do andar, que seria, então, a capacidade aproveitá-la. É muito difícil para nossa sociedade ocidental aceitar que errar pode ser também uma porta para novas possibilidades, novas formas de se ver o mundo.

A experiência

daquele que erra é o que possibilita a “construção” de uma nova cidade no território explorado, pois através da sensorialidade humana e a capacidade de assimilação de

símbolos, criam-se

significados que qualificam aquele espaço em outro, ao pensar que os lugares se formam como centros onde são atribuídos valores de modo íntimo e conceitual por meio da vivência (TUAN, 1983). Dessa forma, é a errância que modifica a

concepção de novos

territórios a serem

explorados, novos espaços a serem habitados e novas rotas a serem percorridas (CARERI, 2013).

A decisão sobre qual o percurso a ser feito foi tomada no ato da própria caminhada, por meio de

Figura 4: mapa maginário do trajeto percorrido pelo centro da cidade, 2018. Fonte: acervo pessoal

sentir a intuição movida à curiosidade e à quebra de expectativas. Em muitos momentos – na maioria deles –, o fato de visualizar o espaço em que me encontrava, automaticamente fazia com que fossem criados na mente os trajetos a serem percorridos, como um mecanismo do cérebro de gerar planejamento, uma garantia de segurança. A saída, portanto, foi estar atenta aos possíveis locais que poderiam surgir “do nada” e procurar segui-los, quebrando a construção do caminho já estabelecido em pensamento.

Percorri, assim, pelas ruas da cidade alta que já conhecia e também lugares onde nunca ousei entrar – vielas e becos, onde por segurança acabava mudando de rota – tomei consciência sobre algumas questões que antes não notava e que me fizeram perceber o quanto os centros são espaços potentes de articulação e história e o quanto são perigosos também.

Figura 5: Pinacoteca do Estado. Fonte: Ian Rassari.

Em muitos momentos senti medo por estar sozinha, por ser mulher, por ter sempre algo a mais a perder. Esse sentimento de que a qualquer momento eu poderia ser invadida de alguma forma – fosse por meio de comentários feitos em minha direção, ou de algum tipo mais efetivo de assédio – passava pelo meu corpo toda vez que sentia o impulso de entrar em algum lugar mais escuro ou apertado.

Segundo Sade (2009, p. 50) estudos neurofenomenológicos realizados a partir da exposição de figuras em 3D para identificar as imagens cerebrais de algumas pessoas e após isso a coleta de seus relatos da experiência, concluíram que “os dados sobre o contexto subjetivo podem ser correlacionados aos padrões de sincronização medidos pelo

EEG (eletroencefalograma)” e também que “os estados de preparação e percepção modulam as repostas comportamentais e neurais”, ou seja, a percepção do contexto em que se insere o sujeito e aquilo que ele sente, se relaciona com os padrões cerebrais percebidos. Um exemplo “é o caso dos estímulos que amedrontam, os quais frequentemente ativam as amigdalas e conseguem desencadear a cascata do medo” (DAMÁSIO, 2011, p. 145).

Passei por locais que nunca havia entrado, mas, devido ao medo sentido, o resultado da experiência me foi menos proveitoso (em termos de atenção aos espaços) que nas avenidas mais movimentadas. Considero esse ponto da experiência como um ônus resultante do sucateamento da segurança pública e pela falta de programas sociais que valorizem uma educação de qualidade também como prevenção da violência. Pude notar o quanto o centro de Natal é cercado por prédios abandonados, públicos e privados, que tiveram suas antigas funcionalidades levadas a lugares distintos que cumpriam determinadas demandas, talvez. O centro é o lugar que abraça os bares frequentados pelas pessoas que quando jovens vivenciavam toda rotina de morar em uma cidade que crescia. O centro é o lugar da política. Gravei um áudio no celular enquanto caminhava e falei que

O centro de Natal, além de ser um ponto de comércio é também o lugar que abriga todos os sindicatos, sedes de partido... quase todos... que se intitulam de esquerda ou que tem

um pensamento voltado pra questões sociais ou do trabalhador. Parece que o centro da cidade é como se fosse pólo da política de esquerda de Natal (áudio gravado pela autora em 10/04/2018)

Visitar locais como a Cidade Alta e não adicionar criticidade às condições sociais e políticas me é muito difícil, entretanto é necessário ocupar a cidade pelo seu movimento, pela forma como seu espaço vem sendo utilizado e não apenas pelos aspectos exteriores, como frisou Sander (2012), vivenciar a cidade tanto com suas cercas e muros como também com a sua potência de transformação e imprevisibilidade.

Ainda concordando com o autor e refletindo sobre as próximas experiências, ficam as seguintes inquietações: pensar nas possiblidades além da própria caminhada, intervir com o gesto e fazer desta intervenção uma possibilidade de modificar a vivência cotidiana, tornar o movimento um fator problematizador das experiências comuns do dia- a-dia.