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Atualizações pelo erro: a dança que se faz na rua

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

JANINE LEAL ARAÚJO

ATUALIZAÇÕES PELO ERRO: A

DANÇA QUE SE FAZ NA RUA

NATAL/RN

2019

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ATUALIZAÇÕES PELO ERRO: A DANÇA QUE SE FAZ NA RUA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas – Strictu sensu – Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª Drª Karenine de Oliveira Porpino.

NATAL/RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede

Araújo, Janine Leal.

Atualizações pelo erro: a dança que se faz na rua / Janine Leal Araújo. - 2019.

100f.: il.

Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2019.

Orientador: Dra. Karenine de Oliveira Porpino.

1. Dança - Dissertação. 2. Corpo - Dissertação. 3. Cidade - Dissertação. 4. Erro - Dissertação. 5. Performatividade - Dissertação. I. Porpino, Karenine de Oliveira. II. Título. RN/UF/BCZM CDU 793.3

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BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Karenine de Oliveira Porpino

Presidente - Orientadora

__________________________________________________ Prof.ª Dr.ª : Naira Neide Ciotti

Membro Interno - PPGArC/UFRN

________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Larissa Kelly de Oliveira Marques

Suplente – PPGArC/UFRN

_______________________________________________ Prof. Dr. Avelino Aldo de Lima Neto

Membro Externo – PPGEP/IFRN

________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Shulze

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DEDICATÓRIA

Dedico esta pesquisa a Jederson de Pontes Bezerra, pelo caminhar errante e companheiro, presente nas práticas na cidade de Natal e na vida. Por todo incentivo e paciência, por me proporcionar enxergar os percursos essenciais para o meu crescimento.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos amigos que compartilharam o trajeto até o esperado título de mestre comigo, com maior carinho a Monique, Raiana, Roberta, Híkel e Rodrigo, e aqueles que, mesmo fora do âmbito acadêmico das artes, contribuíram para construção desta pesquisa, em especial a Taynah, Ada, Filipe, Júlio, Pollyana, Juliana, Admilson e Luana.

Agradeço à Tamara Araújo, psicóloga que me permite olhar com calma e respeito para os meus processos internos e me ensina a respeitá-los.

Agradeço à CAPES/MEC, por financiar o primeiro ano desta pesquisa por meio de bolsa de apoio à pesquisa acadêmica.

Agradeço à minha orientadora, Karenine Porpino, por toda paciência e carinho ao me guiar pelo mundo acadêmico e por ter acreditado em mim quando eu não pude fazê-lo.

Agradeço aos professores doutores Naira Ciotti e Avelino Neto pela disponibilidade para leitura e avaliação desta dissertação.

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RESUMO

O presente trabalho aborda a temática do corpo que erra por meio da dança improvisada, enquanto possibilidade de atualização estética do espaço na cidade de Natal – Rio Grande do Norte. Considera as práticas de atenção a si para investigação cênica no espaço público e a criação de movimentos improvisados, tendo como mote o sentir a cidade pela caminhada. Parte das seguintes questões norteadoras: que significações são criadas ou atualizadas ao usar de movimentos improvisados nos espaços da cidade pela errância? Como a cidade afeta a dança e a dança afeta a cidade? Posto isso, o trabalho tem como objetivo investigar as relações existentes entre a improvisação do gesto dançado e a errância pela cidade de Natal/RN, bem como compreender a atualização de significados pela relação entre os espaços e lugares da cidade, perceber como se dá a experiência estética da criação em dança em tempo real nas ruas, refletir sobre as possibilidades da vivência poética dos espaços e lugares da cidade de Natal. Divide-se em uma introdução e três capítulos intitulados, respectivamente, “Escrever pelos pés: a cidade, o erro e o corpo que dança”, “Perdida em presença: a poética das ruas” e “Retornar: as pegadas que não deixei para trás”, além de Considerações Finais e Referências. Utiliza-se da descrição, redução e reflexão como procedimentos metodológicos no contexto da Fenomenologia para intepretação dos relatos obtidos como resultado das práticas errantes pela cidade e se apropria também da errância na construção do texto dissertativo por meio das imprevisibilidades poéticas para uma escrita artística-acadêmica. O texto está situado no campo das Artes Cênicas e contribui para área ao refletir e apresentar possibilidades de pesquisar a articulação entre o corpo, a dança e os espaços da cidade, a fim de produzir uma estética do erro e atualizar significados constantemente. Como resultados, o trabalho responde às questões ao relacioná-las às reflexões acerca das vivências descritas, que desvelam-se, durante o terceiro capítulo, na dança em sua ontologia e a atualização de significâncias como aquilo que se sente e se expressa no corpo, pela dança; e as atualizações estéticas da errância dançada, sobre o espaço que afeta a dança e a dança que afeta o espaço à medida que se dança aquilo que se sente da cidade e retribui para ela, suas novas significações.

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ABSTRACT

This work approaches the subject of the body that errs by improvised dance as a possibility of aesthetics update of space in Natal - Rio Grande do Norte/Brazil. It considers the practices of self attention for scenic investigation in public spaces and the creation of improvised movement and has as motto the feeling of the city by walking. It starts from the following guiding questions: what meanings are created or updated after using improvised movements in city spaces by erring? How the city affects the dance and the dance affects the city? That said, the work has the objective of investigating the existing relations between the improvisation of the danced gesture and erring through Natal city as well as understanding the meanings update by the relation between the spaces and places of the city, realizing how the aesthetics experience of creation in dance on the streets in real time, reflecting on possibilities of poetic experience of the spaces and places in the city of Natal. It uses the description, reduction and reflection as methodological procedures in the Fenomenology context for interpretation of the reports obtained as a result of erring practices through the city and also appropriate the erring in dissertation text construction by poetic unpredictabilities for academic-artistic writing. The text is in the field of Scenic Arts and contributes to the area by reflecting and presenting possibilities of researching the articulation between the body, the dance and the spaces of the city in order to produce an error aesthetics and to update meantings constantly. As results, the work responds to the questions by relating them to the reflections about the described experiences that got divided during the third chapter in the topics About the permissiveness of feeling and being: the meanings created that treats the dance in its ontology and discusses the updates of meanings as what is felt and is expressed in the body by dance; and About the updates of the dance and of the city: affections, energies and suspensions, that reflect about the aesthetic updates of the danced erring and discourse about the space that affects the dance and the dance that affects the space as the person dances what is felt in the city and give it back its new meanings. Keywords: Dance; Body; City; Error; Erring.

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SUMÁRIO

LISTA DE IMAGENS ... 10

LISTA DE ADENDOS ... 11

1. Introdução ... 12

2. Escrever pelos pés: a cidade, o erro e o corpo que dança ... 28

3. Perdida em presença: a poética das ruas ... 39

3.1 Afeto, medo e política: Cidade Alta ... 44

3.2 Mais uma vez, o medo: Ribeira ... 50

3.3 Da violência à arte: Passo da Pátria ... 61

3.4 Imprevisibilidades na pele: Alecrim... 66

4. Retornar: as pegadas que não deixei para trás ... 76

4.1 Sobre as permissividades de sentir e ser: os significados criados ... 79

4.2 Sobre as atualizações da dança e da cidade: afetos, energias e suspensões ... 85

5. Considerações finais ... 94

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1: Apresentação de Corpimagem pelo Grupo (Com)Tatos e Improvisações em Dança

pelo Circuito Uni-Verso das Artes na UFPE, 2014. Fonte: Rodrigo Sena... 16

Figura 2: trecho tirado do errário de bordo. Ideias para escrita do texto dissertativo errante, 2017 ... 23

Figura 3: Fonte: Ian Rassari ... 43

Figura 4: mapa maginário do trajeto percorrido pelo centro da cidade, 2018. Fonte: acervo pessoal ... 47

Figura 5: Pinacoteca do Estado. Fonte: Ian Rassari. ... 48

Figura 6: Fonte: Ian Rassari. ... 52

Figura 7: áudios e anotações em aplicativo de celular, 2018 ... 53

Figura 8: mapa imaginário do trajeto percorrido na ribeira, 2018. Fonte: acervo pessoal. ... 55

Figura 9: Trecho da música "I'm ready" de Rodrigo Amarante ... 56

Figura 10: mapa imaginário do trajeto realizado no Passo da Pátria, 2018. Fonte: acervo pessoal. ... 63

Figura 11: Avenida 9. Fonte: Ian Rassari. ... 69

Figura 12: Fonte: Ian Rassari. ... 71

Figura 13: Fonte: Ian Rassari. ... 72

Figura 14: Fonte: Ian Rassari. ... 73

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LISTA DE ADENDOS

Adendo 1: Sobre aprender a só ser ... 36

Adendo 2: sobre estar errada ... 59

Adendo 3: sobre quando não saber o que fazer ... 74

Adendo 4: sobre viver o primeiro homem ... 83

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1. Introdução

Ainda vão me matar numa rua. Quando descobrirem, Principalmente, Que faço parte dessa gente

Que pensa que a rua É a parte principal da cidade

Paulo Leminski

Inicio minhas reflexões fazendo um alerta a você que está lendo esta dissertação. Aqui estão dispostas algumas das minhas histórias, dos meus erros de trajetória e minhas derivas pelos espaços da cidade de Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, situado a Nordeste do Brasil. Todavia, antes de me debruçar em meus registros de percurso, acredito ser importante a compreensão dos temas que serão discutidos aqui, bem como a apresentação daquilo que me trouxe até eles, das pessoas que anteriormente transitaram em contextos próximos, e também do formato que este texto dispõe.

Partindo da perspectiva de uma caminhada a qual o destino final não é decidido previamente, mas se faz por meio do percurso que se constrói pelos desejos e impulsos gerados no ato de andar, e que atualiza, qualitativamente, as significações dadas – pelo caminhante – aos espaços da cidade, este texto aborda o conceito de errância, isto édo erro como uma possibilidade de atualização estética dos espaços urbanos.

Porém, pensando em um contexto cênico e compreendendo, dentro do campo das Artes Cênicas, a dança como uma experiência estética e vivência do sensível, capaz de criar sentidos enquanto se produz e, ainda mais, entendendo essa dança, feita de forma improvisada, como a possibilidade de não-cristalização de movimentações e atualização constante de gestos, constroem-se relações a serem tecidas entre a errância produzida pelo andar e a possibilidade de errar pela cidade, também, em forma de gesto dançado e improvisado.

Dessa forma, esta dissertação discute tais relações entre experienciar a cidade pela errância caminhante e a vivência de uma errância feita pela dança, nas ruas da capital do Rio Grande do Norte, pensando nas atualizações de significados gerados nos espaços urbanos, por meio do gesto dançado e improvisado, em momentos descritos em relatos de idas aos bairros da cidade e registrados das mais variadas formas, como veremos mais à frente.

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Sempre, desde bem nova, fui conhecida por estar na rua e gostar desse lugar de não ter um lugar, de maneira que teci minhas redes de relações em espaços que não param de se atualizar de significados pelas minhas vivências. Segundo Yi-Fu Tuan, geógrafo chinês, o “lugar” seria aquilo que é fixo, preso, dotado de valores que o estabilizam. O lugar é a segurança, é o que vem depois, quando atribuímos ao espaço indiferenciado signos que façam com que seja reconhecido de forma conceitual ou íntima. O espaço é o movimento e o lugar é a pausa (TUAN, 1983).

Sendo assim, a intensão constante de não-cristalização, de não pausar em um único olhar sobre os espaços percorridos, fizeram e ainda fazem de mim a pessoa que está nos multi-lugares, aqueles que, ao mesmo tempo em que são embebidos pelos signos construídos com a vivência, não se agarram apenas a essas significações e são atualizados sempre que recebem uma nova vista. O mesmo local do ponto de vista geográfico pode se encontrar em tantas qualificações que passa a ser vários lugares em um só ao receber cada passagem por ele como uma ação que é ato perceptivo e criativo capaz de ser leitura e escrita do território por meio das vivências (CARERI, 2013).

Dessa forma, se na minha vida pessoal carrego comigo a característica de gostar de estar no mundo (de passar mais tempo fora de casa do que dentro dela), na profissão que escolhi – estudar a arte e o movimento da dança – não seria diferente. Minhas primeiras experiências saindo dos espaços convencionais para dançar “no meio da rua” vieram depois do meu ingresso no curso de Licenciatura em Dança na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Logo no meu primeiro semestre na universidade, comecei a pensar sobre o alcance da dança – mais especificamente sobre um curso superior na área – na cidade. Eu percebia que muitas pessoas me questionavam sobre se havia, de fato, a graduação na área, questionamentos que sempre estavam acompanhados de algum comentário sobre o fato de não saberem que pessoas poderiam receber diploma em dança.

Nessas situações, me pegava imaginando o quanto seria importante que os moradores da minha cidade soubessem valorizar o meu curso. Decidi, junto aos meus colegas da turma 2013.1, fazer uma intervenção em algum local público, como um ato de resistência, empoderamento e informação. Dançamos num palco improvisado de linóleo pregado com fita adesiva no asfalto, em frente ao bar do Zé Reeira, localizado na lateral do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, no bairro Cidade Alta, para pessoas que nem esperavam ser público naquela noite. Toda vez que transito por essa rua, onde hoje

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habita o Espaço Cultural Ruy Pereira, não me sinto em um local comum de passagem, pois ali estão contidas algumas de minhas memórias e sentimentos.

Ainda no início do curso entrei para um projeto de extensão da universidade, o (Com) Tatos e Improvisações em Dança, coordenado na época pelo coreógrafo Sávio Jordan Azevedo de Luna. O grupo trabalhava com a técnica do Contact Improvisation (Contato Improvisação, técnica sistematizada por Steve Paxton, que tem como base a utilização da improvisação e o contato entre os corpos e o espaço) e era, eventualmente, convidado para apresentações dentro e fora da UFRN. Dentre as apresentações que fizemos, duas delas e suas particularidades serão destacadas a seguir: uma dentro da própria UFRN e outra na Universidade Federal de Pernambuco. As duas ocasiões foram extremamente distintas e deixaram para mim a reflexão sobre o quão diferente é a percepção e resposta de cada pessoa à mesma composição coreográfica.

Nos dois locais apresentamos a mesma proposta, Corpimagem, uma improvisação com acordos prévios (GUERRERO, 2017), quando se pressupõe previamente algumas “normas” a serem aplicadas no ato da improvisação. No caso de Corpimagem, foi fixada a utilização das pausas – quando um improvisador pausasse seus movimentos, os demais também o fariam – baseados na sensação de “congelar” momentos em fotografias. Usávamos pausas repentinas em que todos os intérpretes contavam com a percepção do outro e do espaço para saber quando parar, quando se movimentar e as qualidades de movimento aplicadas a cada momento.

Fomos convidados a dançar Corpimagem dentro da programação do SIGArte 2014, um projeto do Núcleo de Arte e Cultura (NAC) da UFRN, que tem como objetivo “contribuir com a difusão da cultura artística universitária, promovendo a formação de público para as artes e proporcionando um ambiente favorável e saudável a todos que integram a UFRN” (NAC, 2019). O projeto, na época em questão, levava trabalhos artísticos aos mais diversos setores da universidade. Nós íamos nos horários entre as aulas e dançávamos em lugares que não costumavam receber esse tipo de atividade. A recepção não era sempre a mais calorosa.

No caso do relato em específico, o grupo foi até uma área entre a Biblioteca Central Zila Mamede (BCZM) e o Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), ponto de passagem indispensável a quem necessita se deslocar a pé entre o Setor de aulas II, CCHLA, BCZM, laboratórios de química entre outros departamentos próximos. Na ocasião, iniciamos nossas movimentações usando como estímulo o próprio

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ambiente, ouvimos os sons, observamos o entorno e nos olhamos para entrarmos no mesmo ritmo de movimento e pausa.

Entretanto, as pessoas que cruzavam seus caminhos conosco além de olharem com estranhamento, acabaram por desenvolver repulsa ao espaço que ocupávamos e um certo desprezo à nossa presença. Meu sentimento (e de alguns colegas do grupo) era o de como se fossemos algo sujo, fedido, ou de má aparência que fazia com que os outros desviassem seus passos e olhares. Nossa presença causou a fuga das pessoas ao projeto que havia sido criado para, justamente, aproximar a arte produzida pelos universitários à comunidade universitária.

Em contrapartida, mesmo sabendo que estávamos lidando com o acaso, visto que a proposta tinha como base a linguagem em improvisação, essa prática na UFRN nos caiu como uma experiência introspectiva que foi influenciada por certa solidão do grupo (tendo em vista a falta de intervenção direta dos transeuntes) e, por isso, em sua maior parte executada em tempo lento, com leveza e fluência livre – qualidades de esforço que variam em quantidade e intensidade de modo que, traçando combinações possíveis, se obtém diversos tipos de movimento e suas formas (GIL, 2001, p.3).

Em minha visão, tais características resultaram da não-interferência direta do público e quietude das proximidades que findaram por ficar praticamente vazias, como uma sala de ensaio sem teto e sem paredes. O espaço que ocupávamos nos influenciou para lentidão assim como nós influenciamos o afastamento das pessoas com a nossa dança.

Ao lembrar da situação, encontro sentido nas palavras de Jardel Sander (2012) quando disse que a experiência com a técnica Contato e Improvisação – da dança de uma forma geral – na rua, ocupando os espaços públicos, desloca a perspectiva daquele que dança, mas também daqueles que transitam por ali, gerando a possiblidade de afetamento daquelas movimentações e ocupações não-cotidianas dos lugares.

Já na segunda experiência que trago, a forma como a dança afetou e foi afetada pelas condições do lugar e público diferenciou-se completamente da anterior. Ainda em 2014, participamos do Circuito Uni-Verso das Artes, que assim como o SIGArte, visava difundir as produções artísticas dos alunos, porém em outra universidade. Fomos para Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Recife, ministrar uma oficina de

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Contato e Improvisação e também apresentar o Corpimagem no Centro de Artes e Comunicação.

Lembro bem que utilizamos, como ponto de partida para a improvisação, a relação com alguns monumentos presentes no Centro de Artes, “interpretando” as estátuas por meio da imitação. Nos movimentamos pelo espaço, nos encontramos e separamos, dançamos em movimentos lineares, diretos e precisos, dessa vez em tempo não tão lento como na experiência citada anteriormente e, quando percebemos, pessoas que transitavam pela universidade já estavam imersas na nossa dança e se relacionando com nossos corpos no espaço.

Muitas das pessoas que participaram entraram em processos tão intensos que não perceberam quando começamos a nos retirar lentamente da cena em tempo real que estava formada. Nós saímos do “foco” da improvisação e caminhamos lentamente para um ponto específico, de onde assistimos o que estava sendo criado a partir dos nossos estímulos. Quando nos perceberam, aqueles que antes eram público e logo se tornaram agentes da dança, cessaram suas movimentações em seu próprio tempo até uma maré de aplausos finalizar aquela Jam1.

1 “Jazz After Midnight”, faz referência aos encontros de músicos de Jazz após seus expedientes de trabalho para tocar livremente, usando da linguagem de improvisação na música como forma

Figura 1: Apresentação de Corpimagem pelo Grupo (Com)Tatos e Improvisações em Dança pelo Circuito Uni-Verso das Artes na UFPE, 2014. Fonte: Rodrigo

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As duas situações apresentadas mostram diferentes vivências referentes ao mesmo processo coreográfico, Corpimagem – apesar do estímulo inicial ser diferente, a proposta sempre se centrava nas pausas e movimentações – realizado pelas mesmas pessoas do Grupo (Com)Tatos e Improvisações em Danças, porém com resultados extremamente distintos.

Com esses relatos, exponho situações que exemplificam o quanto perceber a obra artística improvisada e o espaço gera, em cada indivíduo, uma resposta completamente diferente e imprevisível. Ao apreciar a dança, o espectador estabelece associações constantes entre o que seu corpo sabe – aquilo que já foi vivido – e o que está sendo visto. Cada pessoa lê o estímulo segundo seus próprios processos dialógicos entre dança, corpo e mundo (MARQUES, 2010) e por isso apresentar uma mesma proposta para públicos distintos, em locais distintos, em momentos distintos, é lidar com um completo acaso de possibilidades de respostas e se adaptar a cada momento.

Quando repenso o modo de criação e apresentação da dança, ao tirá-la de seu espaço convencional e ao sair de seu formato habitual, como foi o caso dos relatos anteriores, assumo ainda mais a necessidade de lidar com variadas formas de recepção. O público, nos casos já apresentados, não esteve preso em um lugar de espectador-observador, mas indiretamente, no primeiro caso, e diretamente também, agiu como coautor da obra. Pensar nessa relação como influenciadora do processo de improvisação é também entender as dinâmicas de funcionamento de uma dança nômade que promove a interação de setores pouco habituados ao contato com essa linguagem artística (NAVERÁN, 2012).

Acrescento que, também devido a isso, trabalhar com a linguagem de improvisação exige do intérprete amplo domínio do momento presente, assim como extrema atenção às condições atuais e a capacidade de desapego, para que seja possível transformar e atualizar movimentações e o uso do espaço de acordo com estímulos que, por vezes, surgem do acaso. É necessário “dedicar-se a esquecer, no sentido de permitir que aconteça a desarticulação, a transformação, a criação de novas conexões e significados” (LEAL, 2009, p. 49).

Entretanto, é importante deixar claro que utilizei as experiências relatadas para explicitar que propor a criação e apresentação de percursos de improvisações dançadas

de diversão nos Estados Unidos no início do século XX. Atualmente, a dança utiliza deste termo para falar também de momentos de improvisação em dança.

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em localidades, onde não há costumeiramente a presença dessa linguagem artística, é entregar-se inteiramente ao risco de não poder pré-determinar a ação a se realizar a seguir. As reações do intérprete-criador não seguem uma determinada ordem e são alteradas em função de cada lugar e cada pessoa que nele estiver (BARRETO, 2012).

***

Neste trabalho, portanto, o foco não será apenas na influência do público na experiência da improvisação, mas prioritariamente nas relações de sentido construídas ao levar o movimento e a improvisação – do erro pela cidade – aos espaços urbanos, enquanto uma investigação particular dessa condição de imprevisibilidade que tanto aparece na linguagem de improvisação quanto na experiência dos urbanistas errantes.

Sendo assim, ao perceber o quanto me identifico com questões como o erro pelo espaço e a imprevisibilidade, como fugir do que é conveniente me é mais atrativo que estar em caixas fechadas, resolvi me propor um desafio: sair a esmo para reconhecer os pontos da cidade, que abrigam certos significados referentes a experiências já vividas – ou mesmo os que ainda não conhecera a fundo – e perceber a construção estética e simbólicas desses locais a partir da inserção de movimentações improvisadas que, ao mesmo tempo, também podem ser influenciadas por eles e ser modificadas pelas suas condições atuais.

Utilizei a palavra “reconhecer” no parágrafo anterior por entender que dentro do tema apresentado, reconhecimento é a capacidade de conhecer novamente o lugar antes já visitado, pois

cada vez que prestamos atenção novamente a um mesmo objeto, a uma mesma paisagem ou a um mesmo belo corpo que transita pela rua, podemos encontrar nesses novos sentidos, novas associações, pois de cada nova percepção de um mesmo objeto é possível brotar novos significados (PORPINO, 2006, p. 58) Dessa forma, o erro, a errância, o errar, é tratado aqui enquanto uma forma específica de reconhecer e se apropriar do espaço público, forma que não foi pensada por arquitetos e urbanistas. É se achar em novas perspectivas ao “se perder” voluntariamente e em meio ao erro provocado, realizar uma apreensão ou percepção diferenciada do que se iniciou, do que vinha junto à sua memória (JACQUES, 2006).

Em meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) realizado no contexto do curso de Licenciatura em Dança da UFRN e intitulado “Corpo e Espaço na Dança: a improvisação como criação de um corpo cênico” orientado pela Professora Doutora Karenine de

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Oliveira Porpino, entendi que devido ao seu caráter imprevisto e mutável, a linguagem de improvisação em dança pode ser tida como uma forma de errância. Portanto, dando continuidade à pesquisa iniciada no TCC, formulei as seguintes questões de investigação para esta dissertação: que significações são criadas ou atualizadas ao usar de movimentos improvisados nos espaços da cidade pela errância? Como a cidade afeta a dança e a dança afeta a cidade?

Sendo assim, tenho como objetivo geral nesta pesquisa investigar as relações existentes entre a improvisação do gesto dançado e a errância pela cidade de Natal/RN. Os objetivos específicos elencados foram: 1. Compreender a atualização de significados pela relação entre os espaços e lugares da cidade; 2. Perceber como se dá a experiência estética da criação em dança em tempo real, nas ruas; 3. Refletir sobre as possibilidades da vivência poética dos espaços e lugares da cidade de Natal.

Para tanto, apoiei-me na Fenomenologia de Merleau-Ponty como um método que se propõe pesquisar o vivido, a experiência como foco de um estudo não solucionável, pois diferentemente das ciências duras as quais trabalham com coletas de dados que devem permanecer fixos e imutáveis para o sucesso da pesquisa, a Fenomenologia é um outro modo de conhecer e refletir; por isso “a facticidade que a filosofia de Merleau-Ponty procura é a experiência e a consistência de nós mesmos antes de ser objetivada pelas significações da linguagem científica” (PAVIANI, 1998, p.16).

Neste trabalho, o método fenomenológico dá o aporte para pesquisa e escrita no uso da descrição, redução e reflexão, tendo na primeira uma volta ao fenômeno vivenciado em sua forma mais pura, como disse Paviani (1998), o experimentado como tal e do pensado assim como o fez no fato vivido para poder retornar à evidência da intuição. Ainda segundo a interpretação do autor, o mundo se constrói em sua experiência imediata e, apenas entendendo o indivíduo como ser corporal e mental, é possível descobri-lo, assim “retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala [...], o mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4-5).

Nesta pesquisa, considero como experiências as minha errâncias pela cidade para articular um pensamento sobre o corpo, o gesto e a cidade. Elas foram registradas em meus diários de bordo – relatos escritos das errâncias, descrições segundo a abordagem fenomenológica, – e são usadas também como parte desta dissertação por acreditar que, não só guardando minhas experiências, mas também compartilhando-as, conseguiria

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passar para você, leitora ou leitor, o conteúdo que pretendo apresentar. Baseio-me em um escrito de Jussara Miller (2012) para justificar a minha escolha, pois

Procuro não distanciar as reflexões do estudo acadêmico (...) e artístico da minha prática corporal investigativa e criativa, sempre atenta ao corpo em ação e reflexão (...). A pesquisa orientada pela prática e para prática, tal como esta, talvez ajude a diluir a fronteira existente entre a teorização e as práticas de trabalho nas salas de aula e criação (MILLER, 2012, p. 61).

Entretanto, a palavra “diário” segundo o Dicionário Aurélio (2018), é um registro ou publicação que se sucede diariamente, em ordem cronológica ou proximidade de datas. Devido ao caráter imprevisto de escrita e sequência com que serão apresentados os meus registros e devido ao fato de que muitos desses registros terem sido armazenados em formato de áudios ou mensagens de textos arquivadas em um aplicativo de celular, decidi carinhosamente chamar minhas anotações/áudios de errários de bordo.

Portanto, não estranhe caso, em vários momentos, eu fale de mim, daquilo que senti e percebi. É o sujeito que constrói o mundo com suas vivências à medida que impregna de sentidos as experiências, afinal “a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência. Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele” (TUAN, 1983, p.10). O significado dado às situações vividas só se configura nas teias traçadas pelas relações com os outros, ou com objetos, com as diferenças de percepção do mundo; e são nas minhas vivências às quais me apegarei para construir a minha escrita de forma que seja compreensível o sentido empregado por mim a elas e para que se criem sentidos aos que lerem, pois

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada [...] minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3).

No atual contexto, a escrita é um testemunho do que foi vivido. Trata-se da realidade já apreciada, sentida e executada. Escrever, aqui, é o registro e o retorno de situações que outra pessoa jamais vivenciaria da mesma forma, tendo em vista que cada percepção é única de indivíduo para indivíduo e “viver, bem lá no fundo, ninguém pode fazê-lo por nós. No trabalho, podemos conseguir um substituto, mas não para caminhar. Eis o critério fundamental” (GROS, 2010, p. 94). Dessa forma,

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tem-se de buscar essa escrita do real: escrever unicamente no prolongamento desses passos solidamente estampados, martelados. Porque aí não se buscará senão o sólido, até no pensamento. Com isso quero dizer: escrever tão somente o que foi vivenciado, intensamente. Tomar por base sólida tão somente a vivência (GROS, 2010, p. 100).

Ainda sobre esses registros das experiências vividas - anotações nos errários de bordo – os textos escritos após cada visita à cidade estão dispostos aqui em diálogo com a referência bibliográfica estudada e propõem a interlocução entre autores de diferentes áreas, a exemplo de Frederic Gros contextualizando o caminhar para a filosofia, Merleau-Ponty, Antônio Damásio, Virgínia Kastrup refletindo sobre percepção e atenção, Francesco Careri e Yi-Fu Tuan com suas discussões sobre a atualização do espaço e do lugar pela experiência, até estudiosos do movimento e da dança como Rudolf Laban, Karenine Porpino, Terezinha Petrúcia Nóbrega, Isabel Marques, Patrícia Leal, Mara Francischini Guerrero.

Os errários de bordo, portanto, foram construídos pela descrição do ato de andar e dançar na rua em diferentes pontos da cidade. Trouxe neles a descrição dos momentos em que vivi na rua, as sensações percebidas e como elas se transformaram em movimento de dança. Descrevi como foi criada a dança nos determinados contextos e as especificidades dos movimentos executados, entretanto entendo que ao definir um movimento em palavras, não consigo trazer, inteiramente, a experiência do dançar, pois “os desenhos visíveis da dança podem ser descritos em palavras mas seu significado mais profundo é verbalmente inexprimível” (LABAN, 1978, p. 53).

Durante as experiências nas ruas, após decidido o ponto inicial dos deslocamentos, utilizei práticas de atenção a si, como preparação para as errâncias, tais práticas são aquelas “na qual o dado é fenomenológico, no sentido daquilo que aparece para o sujeito, como experiência, a partir da atenção que o sujeito porta sobre si próprio” (SADE, 2009, p. 46). Na pesquisa, práticas como a Yoga e a Meditação foram usadas como forma de voltar minha atenção a mim mesma, ou seja, para a vivência do caminhar/dançar pelas ruas da cidade.

À medida que percebia a cidade e as sensações causadas pela caminhada, expressava em gestos de dança, no espaço em que estivesse, e depois escrevia sobre. Em alguns momentos sentia a necessidade de fazer um registro mais rápido e gravava áudios de celular, descrevendo o que acabara de acontecer. Já em outros casos, apenas sentava e escrevia, ou ainda esperava chegar em casa para anotar tudo o que havia sentido e como havia me movimentado.

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O destino seguinte a cada caminhada só era escolhido, também, de acordo com o fluxo do dia em questão e, dessa forma, foram pontos de partida para errância dançada, os bairros: Cidade Alta (em 10 de abril de 2018), Ribeira (12 de abril de 2018), Passo da Pátria (24 de agosto de 2018) e Alecrim (24 de outubro de 2018). A escolha de cada ponto de partida foi feita com base nas impressões e impulsos gerados nas errâncias anteriores.

Cada um deles resultou em trajetos distintos e na criação de mapas imaginários – desenhados a posteriori –, que podem ser encontrados, no decorrer da descrição das vivências. Baseei-me em uma palestra da Prof.ª Dr.ª Naira Ciotti, em 2017, durante a semana de Artes Visuais da UFRN, para desenhá-los. Na ocasião, a professora pediu aos presentes que desenhassem em um papel, o trajeto que eles imaginavam ter feito durante uma marcha em protesto político, acontecida há pouco tempo na cidade de Natal (mesmo que não estivessem presentes na manifestação, seria compartilhado o trajeto de cada pessoa, no momento em que o ato acontecia).

Lembrei-me desta proposição enquanto refazia (mentalmente) o trajeto percorrido na Cidade Alta, para escrever minhas impressões. Entendi essa forma de registro do percurso, como uma maneira de tornar visível os caminhos não-lineares e imprevistos, bem como, deixar perceptíveis os pontos dos trajetos que mais me chamaram a atenção.

Somando a isso, a forma de expressar as imagens que me vieram à mente durante o processo de descrição às vezes não podiam ser materializadas por meio de palavras, por isso alguns desenhos e pinturas também foram considerados como registros tendo nas ideias de Laban (1978, p.29) um suporte, visto que “as ideias e sentimentos são expressos pelo fluir do movimento e se tornam visíveis nos gestos, ou audíveis na música e nas palavras”.

Assim, a pesquisa abarcou diversas formas de registro de minhas caminhadas e danças errantes, todas elas consideradas como descrições da experiência, numa perspectiva fenomenológica. Este procedimento se ampara na ideia de Paviani (1998) de que é possível existir vários métodos fenomenológicos, e não apenas um método, uma vez que não há regras e procedimentos rígidos, mas a necessidade de adequação entre a abordagem metodológica e filosófica.

Desde que se possam mostrar as possibilidades epistemológicas da fenomenologia também é possível elaborar uma metodologia para cada caso [...] o essencial é não perder a articulação necessária entre a investigação fenomenológica enquanto filosofia e enquanto método (PAVIANI, 1998, p. 28).

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Portanto, em alguns momentos esta leitura pode ficar confusa e talvez passe a sensação de certa bagunça pela forma que adotei para, nas palavras de Paviani (1998, p.27) “descrever reconstituindo o vivido da história para chegar ao sentido da cultura”. Por isso, para melhor compreensão deste escrito, aqui vão algumas explicações necessárias para compreensão de características que serão encontradas a seguir, durante o texto.

Como talvez já possa ter sido notado até o momento presente da leitura, muitas experiências pessoais (assim como as que estão delimitadas pela pesquisa) também estão contidas neste trabalho, pois não considero coerente que, em um texto que fala da vivência como criadora de significações não conste nele próprio, aquelas que contribuíram ou atrapalharam a sua execução. Por isso, trouxe a quem estiver lendo a possibilidade de lidar com imprevistos durante a própria leitura. Você encontrará alguns adendos, estes de cunho existencial, advindos de minhas reflexões de cunho pessoal, profissional e/ou acadêmico, surgidas durante a construção deste texto. Os adendos trazem consigo minhas verdades, mesmo que provisórias, e nem sempre fazem uma relação direta com o conteúdo da pesquisa.

Os adendos também são trechos dos errários de bordo, tais quais foram escritos originalmente, com todas as marcas da oralidade que um texto cheio de emoções e significações próprias podem carregar. Porém, por se tratarem de escritos baseados em questões que envolvem a minha construção pessoal, minhas experiências fora do contexto da pesquisa – mas que acabaram influenciando no rumo que decidi dar ao meu trabalho – e algumas referências para além dos artigos científicos, teses e dissertações, aparecem no texto assim como apareceram para mim: ao acaso.

Figura 2: trecho tirado do errário de bordo. Ideias para escrita do texto dissertativo errante, 2017

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Além dos adendos, são parte também da investigação algumas poesias, letras de músicas, desenhos, fotos, quase tudo o que compôs o processo criativo de escrita artística. Errar é lidar com a imprevisibilidade, imaginei que minha errância seria somente dançada pelas ruas da cidade, mas no decorrer da pesquisa minha escrita também se tornou errante, foi pintada, declamada. Como afirmaram Ginot e Launay (2003) cabe aos dançarinos pensarem práticas que escapem aos discursos que enquadram o corpo muito além da dança assim o corpo vivido como corporeidade, ou veio sensorial, emerge gesto musical, gesto vocal, gesto de artista plástico, gesto de ator ou ainda de produtor audiovisual, de escritor.

Alguns desses materiais expressivos não estão contidos aqui nesta escrita. Registros fotográficos, poesias e desenhos podem ser encontrados no Blog Um Convite ao Erro, criado com o intuito de se constituir um acervo de materiais que surgiram durante a escrita desta dissertação, mas que não couberam no texto, necessariamente – por serem demasiadamente pessoais, por terem uma estrutura que não se adequaria ao corpo do texto, ou mesmo por não se interligarem diretamente a algum tema específico tratado aqui.

O acesso ao Blog pode feito a partir do código QR indicado – basta instalar em seu aparelho celular, qualquer aplicativo de leitura de códigos QR. Tais aplicativos são encontrados por meio de uma busca simples em dispositivos Android - no Google Play -, ou IOS – App Store). No decorrer do texto dissertativo, outros códigos QR também estão disponíveis para que o leitor tenha acesso aos conteúdos específicos do Blog Um Convite ao Erro e possa relacioná-los,

oportunamente, ao texto escrito. Trata-se do acesso a músicas, entrevistas, livros, galerias de fotos, entre outros registros que se fizeram significativos no decorrer da escrita.

Durante a investigação vários registros postados no Blog foram sendo trazidos ao corpo do texto, alguns tardiamente, mas outros permaneceram on-line, embora ainda sejam importantes para a leitura da dissertação. Portanto, Blog tem a função de anexo, um complemento, uma forma de acessar outras produções que se relacionam com a escrita, mas não podem ser expressos por meio desta.

Em meio a tantas manifestações artísticas insurgentes do errar pela cidade, este trabalho se situa no campo das Artes Cênicas e contribui para refletir e apresentar

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possibilidades de pesquisar a articulação entre o corpo, a dança e os espaços da cidade, a fim de produzir uma estética do erro e atualizar significados constantemente, assim como obras já produzida por outros artistas e pesquisadores como Patrícia Leal no seu trabalho artístico Errática, Naira Ciotti em Reperformando o Afeto e grupos de vanguarda artística na Europa como o Grupo Stalkers, bem como em pesquisas acadêmicas acessíveis no portal da Associação Brasileira de Pesquisadores e Pós-graduação em Artes Cênicas – ABRACE, tai como: A rua como potência compositivia em Dança de Caroline Castelo, doutoranda em Artes e Professora do curso de Licenciatura em Dança pela Universidade Federal do Pará (UFPa); e Dramaturgias Periféricas: Nóis de Teatro e a Potência do Caminhar no Teatro de Rua Contemporâneo de Altemar di Monteiro, doutorando em Artes Cênicas pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG).

Este texto fará parte do acervo de dissertações do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN – PPGArC/UFRN, e foi produzido no contexto do Grupo de Pesquisa Corpo, Dança e Processos de Criação - CIRANDAR dando, assim, continuidade a outras reflexões realizadas pelo mesmo grupo, a exemplo outras dissertações também orientadas pela Profª Drª Karenine de Oliveira Porpino como a de Luana Menezes de Oliveira, de texto intitulado Corpo Diário: da escrita de si à escrita da cena em que a autora aborda o uso dos seus diários na construção de um espetáculo teatral e também no próprio processo dissertativo; e a de Hianna Camila com a dissertação Ato de Transver: Preparação Corporal De Atores Para Um Espetáculo Não Visual que estuda a ausência de visão e sua influência nas práticas corporais com atores e como isso interfere na percepção de si (trazendo autores como Kastrup, utilizada neste texto).

Destaco ainda a contribuição dos diálogos com professoras (e suas obras) do mesmo grupo de pesquisa como a Profª Drª Karenine Porpino (autora de Dança é Educação: interfaces entre corporeidade e estética, 2006), a Profª Drª Larissa Marques (autora da tese A Poética do Corpo no Mito e na Dança Butô: por uma educação sensível), Profª Drª Patrícia Leal (autora de Amargo Perfume: a dança pelos sentidos), Profª Drª Naira Ciotti,(autora de O Professor Performer) entre outros.

Dessa forma, tenho o que poderia ser chamado de não-objetivo: entregar uma obra pronta para ser apreciada e passar uma verdade absoluta. Entretanto, entendo o poder de provocação deste trabalho. O resultado desse processo – se é que chegarei a um só resultado – é a abertura de possibilidades de conhecer a cidade, por meio da dança, para além do cotidiano de forma autônoma, sendo esta autonomia definida pela capacidade de

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redefinição, de variação e flexibilidade dos limites nos quais opera a cognição; limites estes que são indefinidos e “não pressupõem uma resposta verdadeiramente adequada, mas sim múltiplas possibilidades de enação de si e do mundo” (SADE, 2009, p. 47).

Sendo assim, faço minhas as palavras de Porpino (2006) quando afirmou que o momento de pesquisar é também um compartilhar de vidas e significados, pois somos ao mesmo tempo cultura e natureza, corpo e espírito, parte de um mundo que construímos ao mesmo tempo em que somos construídos, apreendendo e dando significados.

Com isso, trago a contribuição que esta dissertação pode dar em proporcionar discussões sobre a vivência estética da cidade pelo erro em forma de dança e sua possibilidade de criação de novas formas de compreender o espaço e o mundo. Desejo aqui trazer uma visão da dança que foge do pensamento de criação espetacular e reprodução de moldes; a dança sobre a que falo é a possibilidade de viver o sensível e poetizar os espaços e lugares da cidade de Natal entendendo a experiência estética e epistemológica enquanto criação de novas significações.

A estrutura adotada nesse texto se divide em três capítulos além desta introdução que você acabou de ler. O primeiro intitulado Escrever pelos pés: a cidade, o erro e o corpo que dança contém a apresentação dos conceitos e temas que serão relacionados à prática vivida na cidade de Natal, esta que será descrita no segundo capítulo Perdida em presença: a poética das ruas juntamente com as reflexões que surgiram durante sua concepção.

O terceiro e último capítulo intitulado Retornar: as pegadas que não deixei para trás trata-se da interpretação dos sentidos apresentados nos capítulos anteriores, o retorno aos temas que se tornaram mais significativos, abordados ao longo do texto e das conclusões obtidas durante todo o estudo tendo em vista que tais conclusões são também inconclusas, pois vivemos no mundo e nossas reflexões se fazem presentes no espaço-tempo que procuram captar, ao olhar daquele que redescobre o mundo sem si, como explicitou Merleau-Ponty (2006, p. 11) “não existe pensamento que abarque todo o nosso pensamento”.

No último capítulo, reuni tópicos que se repetiram durante os relatos dispostos no segundo capítulo e aqueles que considerei importantes para construir uma relação de contrapontos e complementos entre as qualidades de movimento apresentadas, de acordo com cada percepção e sensações resultantes do estar na rua. Utilizei como norte, as questões de pesquisa levantadas nesta introdução e procurei respondê-las a partir dos

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tópicos escolhidos. Ao final, as considerações finais encerram este texto com as últimas observações resultantes das práticas errantes.

Convido você, agora, leitora ou leitor, a perder-se comigo nesse percurso incerto, por entre as ruas da cidade de Natal e também por entre os fluxos de pensamentos e produções que permearam esta escrita. Que você possa sentir um pouco da imprevisibilidade do acaso, da permissividade, dos sentimentos ruins e dos bons; de tudo aquilo que está aqui descrito e que possa aproveitar essa errância textual e, quem sabe, aplicá-la ao seu próprio cotidiano. Que o erro faça o seu trajeto ser surpreendente. Tenha uma boa leitura!

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2. Escrever pelos pés: a cidade, o erro e o corpo que dança

Entendo que o corpo que se movimenta altera lugares onde habita desde os mais primórdios tempos da humanidade, tomando como partida o ato de caminhar e a atividade nômade. Caminhar é, desde o conhecimento da existência de habitantes bípedes no planeta, a atividade mais comum dos povos. A fim de encontrar comida, os seres humanos obrigavam-se a ampliar fronteiras ao explorar o território sem imaginar um destino final, ainda desconhecido.

Como consequência dessa busca às cegas por alimento, desde a era paleolítica e o surgimento de atividades nômades desenvolveram-se intermináveis “errâncias de caça” (CARERI, 2013, p. 28) que resultaram na primeira interferência humana ao espaço: o caminho, o qual permitiu a espécie humana o entendimento da capacidade de lidar com o espaço e tomada da consciência de que se pode habitar a terra (PAESE, 2006). Caminhar sem rumo certo se tornou para estudos geográficos o erro voluntário, que agrega valores e gera lugares.

Em meados do século XX, quando as consequências do processo de industrialização e crescimento das metrópoles estavam em grande discussão, nasciam práticas de aproveitamento da cidade que visavam subverter a aceleração da produção de trabalho e consumo no dia-a-dia das cidades. Movimentos de vanguarda como o Dadá, o Surrealismo e a Internacional Situacionista, marcaram o campo das artes enquanto ato político em confronto à exacerbada crescente mercantil (ENCICLOPÉDIA CULTURAL, 2017).

A produção artística dessa época evidenciava a necessidade de conhecer os centros urbanos através do perder-se dentro deles, não seguindo direções prévias, mas sim, despindo a cidade e descobrindo-a por meio da desorientação espacial; como forma de ir contra o uso da cidade apenas para produção industrial e comercial, mas também para prazer e contemplação próprios de seus habitantes. O caminhar pela cidade apareceu como premissa da experiência de errar – do erro como uma forma de valorizar o lugar por meio das impressões percebidas durante seu ato.

Conta Careri (2013) que os vanguardistas iniciaram no Dadá e nas suas deambulações o pensamento da antiarte, ou seja, ter na visita aos “lugares insossos” da cidade a capacidade de substituir a representação artística. Mais do que deslocar o lugar real para um designado por meio da representação (fotos, exposições, elementos de locais da cidade apresentados em outros mais “adequados” ao público), esse movimento desejava que o próprio ato de caminhar fosse por si só a apreciação artística – sem a necessidade

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de intervir propriamente dito no espaço deixando objetos que marcassem sua passagem, apenas contando com a documentação de seus participantes, daquela experiência.

Ainda segundo o mesmo autor, o Surrealismo surge do Dadá com o intuito de transformar a experimentação em uma escrita automática no espaço real, este que se apresenta como um sujeito ativo, produtor de afetos e relações. A ideia de suas deambulações era realizar mapas baseados nas percepções obtidas durante os percursos no ambiente urbano e compreender as pulsões e afetos provocados no pedestre. O Surrealismo foi uma forma de investigação psicológica da própria relação com os espaços urbanos.

Os Situacionistas (que anteriormente eram os Letristas), entretanto, consideraram as ações surrealistas, de acordo com Careri (2013) “imbecis”, por não terem entendido as potencialidades da deambulação como uma prática artística coletiva de operação estética que tinha a capacidade de anular componentes individuais da obra de arte. Surge daí o conceito de deriva – dérive – uma atividade lúdica coletiva que investiga os efeitos psíquicos que o contexto urbano produz no indivíduo.

Da deriva letrista/situacionista a cidade passou a ser lida inicialmente em sua subjetividade – como iniciado pelos surrealistas – mas tendo o intuito de transformá-la em um terreno passional objetivo, e não subjetivo-inconsciente: “era preciso agir, e não sonhar” (CARERI, 2013, p.85).

Tais formas diferenciadas, porém próximas, de ver o espaço da cidade deram origem às errâncias urbanas (termo estabelecido pela Internacional Situacionista). Entretanto, apesar da discussão de práticas de uso diferenciado da cidade terem sido fomentadas pelos dadaístas, surrealistas e situacionistas na segunda metade do século XX, pensar na ocupação do espaço por meio do erro para criação de uma nova cidade simbólica, ainda é muito atual. Os centros urbanos não pararam de crescer em ritmo acelerado assim como seus espaços continuam empregados em abrigar funções cotidianas, por isso ainda hoje se tem a necessidade de

tomar a cidade por seu movimento, pela forma como o espaço é apropriado, produzido e reproduzido, e não percebê-la apenas por meio de seus aspectos exteriores. Vivenciar a cidade, com suas cercas e muros, delírios de controle e segurança. Mas também com toda a sua potência de devir, toda sua profusão de imprevisto. Entender, enfim, que intervir nesse espaço é transformar sua vivência cotidiana. É tornar o gesto um problematizador poético da vivência do dia-a-dia. (SANDER, 2012, p.3).

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Para tanto, impõe-se uma necessidade de revisitar o lugar, no mundo atual, e encontrar seus novos significados, uma possibilidade dada através das reconsiderações sobre o cotidiano. É assim que se constroem e refazem valores, através de um incessante processo de interação com o ambiente. Quando os simbolismos providos desse movimento de interação prolongam a própria atividade do sujeito, leva-o a tomar consciência de que é a totalidade dos espaços que dão o verdadeiro sentido à sua existência singular (SANTOS, 2006).

Neste sentido, o erro continua tendo uma grande importância nas construções simbólicas de lugares e assumindo-se como forma de intervenção urbana transformadora para além das suas características físicas. Atualmente, o conceito de errância também se relaciona diretamente com a criação dos espaços arquitetônicos enquanto funcionais-práticos, ou vivenciais-subjetivos. Segundo Careri (2013), há duas formas de enxergar a arquitetura: aquela entendida como construção física do espaço e aquela entendida como sua construção simbólica. A primeira é a projeção da funcionalidade espacial, preenchida de materialidades artificiais. A segunda se relaciona ao preenchimento de significados, apegada ao percurso, que vê no caminhar um instrumento estético capaz de modificar espaços urbanos ainda vistos como estruturas úteis.

Dentro mesmo das cidades é possível notar a existência dessas duas formas de pensar a arquitetura, porém enquanto para uns os espaços são vazios e inúteis, para aqueles que vivenciam a errância esses vazios na verdade estão cheios de rastros invisíveis: toda deformidade é um evento, é um lugar útil para orientar-se e com o qual construir um mapa mental desenhado por pontos (lugares específicos), linhas (percursos) e superfícies (territórios homogêneos) que se transformam no tempo (CARERI, 2013).

Além dos estudos geográficos/arquitetônicos sobre os atos de caminhar e perder-se voluntariamente, a filosofia também se utilizou destas práticas, as quais aparecem em diversos textos de autores consagrados – Nietzsche (1884-1900), Rousseau (1712-1778), Thoreau (1817-1862), entre tantos outros filósofos – que se apropriaram da caminhada como mote para seus escritos.

Gros (2010) relembra que Nietzsche via nos pés uma testemunha confiável das andanças, pois pensar caminhando seria como avaliar a qualidade de uma música (é necessário confiar nos pés, o próprio dançarino mantém seus ouvidos nos dedos para ‘escutar a música’) e assim, só se escreveria bem com os pés, não apenas com as mãos. Pausar é necessário apenas para escritura, mas somente pela caminhada seria possível contemplar os vastos espaços.

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Dessa forma, segundo o mesmo autor, é preciso que sejam provocadas partidas e transgressões, alimentar a loucura e sonhos para, de certa forma, libertar-se do tempo e do espaço e alienar-se à pressa. É como uma liberdade suspensiva em que se acentua um processo de desligamento: escapa-se das obrigações, livra-se de hábitos (GROS, 2010).

Compreendo que é durante uma errância que se “provoca a inversão das lógicas do habitante da cidade (GROS, 2010, p. 37)”. Fica-se no espaço do entre: a transição de onde se está, para onde se vai – o lado de fora, aquele onde se sente que está “aqui”. A sensação é a de viver o agora. Sendo assim, então “a caminhada na verdade faz com que se sinta melhor sua participação: sinto em mim o vegetal, o mineral, o animal [...] de modo bem diferente, caminhar preenche o espírito com outra consistência (GROS, 2010, p. 101)”.

Tomando estes entendimentos como base para o contexto desta pesquisa, dentro da cidade de Natal, me pus na posição de errante, aquele que faz prevalecer as vivências e apropriações dos seus devidos atalhos para criação de um espaço novo, mesmo que este permaneça fisicamente intacto. Compreendi, baseando-me em Jacques (2006), que para o errante, o espaço está em constante mutação, pois sua forma de experienciar se modifica enquanto o seu corpo vive.Segundo a autora, o ato de errar acarreta na aparição de três características ao errante: a desorientação, a lentidão e corporeidade. A primeira, a desorientação, trata da capacidade de não se deixar prender a condicionamentos urbanos, uma vez que toda educação urbana é ligada ao buscar uma orientação espacial e o objetivo do erro é exatamente não se orientar.

Uma vez desorientado, o praticante da errância assume a lentidão. Esta acaba por ser tanto uma premissa quanto uma consequência do perder-se, pois é com a lentidão que é possível melhor ver, aprender e perceber a cidade e o mundo – a lentidão também aparece como uma crítica a toda aceleração urbana e pode estar presente mesmo em meios rápidos, pois trata-se da capacidade de buscar outras referências espaço-temporais.

Por fim, a corporeidade daquele de se perde por si só, devido a lentidão e desorientação, acaba por ser de percepção aguçada. A corporeidade do errante é aberta à imersão dentro das sensações da cidade, de modo que se mistura com ela e a incorpora (JACQUES, 2006).

Incorpora a cidade por meio dos sentidos, da percepção, por isso, é necessário entender o corpo que experiencia a cidade como estesiológico, ou seja, o que Nóbrega (2015), ao interpretar Merleau-Ponty, diz ser aquele capaz de sentir e atribuir sentidos, estes que são aquilo que a percepção capta – o que o objeto é aos olhos antes de ser aquilo que se definiu para ele. Sendo assim, atribui-se ao corpo a “corporeidade vivida como

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abertura ao mundo, modulação típica dos acontecimentos, o que inclui o mundo cultural, a historicidade, o mundo da linguagem e dos símbolos” (NÓBREGA, 2015, p. 76), pois de acordo com o próprio Merleau-Ponty (2006) o mundo não é o que pensamos dele e sim aquilo que vivenciamos e ao estarmos abertos a ele, comunicamo-nos indubitavelmente com ele, sem possuí-lo.

Neste viés, a experiência segundo Yi-Fu Tuan (1983) se volta ao mundo constituindo-se por constituindo-sentimentos e pensamentos cinestésicos advindos da combinação de faculdades “espacializantes” – olfato, sensibilidade da pele, audição e visão – que, quando vividas atentamente, enriquecem as apreensões do meio e se faz importante pensar que buscar sentir o mundo não é procurar o que ele é nas ideias e sim aquilo que ele de fato é para nós, porque “nós temos a experiência de nós mesmos, dessa consciência que somos, e é a partir dessa experiência que se medem todas as significações da linguagem, é justamente ela que faz com que a linguagem queira dizer algo a nós” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 12).

É assim que, ao compreender a individualidade de cada um como única, devido às suas experiências, penso em uma dança estesiológica, que se dê pelas percepções e transformações das sensações que temos internamente em um movimento que as expressa, na sua relação com o espaço, e se desdobra em uma dimensão estética em forma de arte. Trata-se aqui de uma arte em que não são necessárias narrativas, a presença do gesto dançado, por si só, já é o suficiente para comunicar – mais do que isso, para sentir.

A dança que trago aqui é entendida como uma experiência estética, vivência do sensível que possibilita a criação de novos sentidos para a cidade, assim como a caminhada errante. É a essa vivência do sensível que atribuo, concordando com Porpino (2006), a possibilidade estreitar a relação entre ser humano e mundo por meio de um gesto que é poetizador do espaço da cidade na errância. Considerando essa perspectiva lembro que Rudolf Laban, ainda no início do século XX, já considerava a dança em sua potência poética, em suas palavras “a dança pode ser considerada como a poesia das ações corporais no espaço (LABAN, 1978, p. 52)”.

Indo de encontro ao pensamento de uma dança espetacular, de uma dança pensada para apresentações a um público, o modo de pensar e operar a dança entendido por mim tanto em minha prática pessoal, quanto academicamente, foge dos resultados fechados e exposição em palcos. Apoio-me mais uma vez no coreógrafo, arquiteto, estudioso do movimento, o alemão Rudolf Laban (1978) para reiterar a necessidade de uma dança que

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parta de uma ação interna – a ação externa de dançar está subordinada ao que sinto –, onde valores intangíveis inspiram as movimentações. Segundo o autor

o ator que tenta fazer mais do que representar a vida, de modo habilidoso, usa os movimentos de seu corpo e das cordas vocais com o interesse centrado naquele ponto que deseja transmitir para sua plateia e menos nas formas e ritmos externos de suas ações. Este tipo de artista concentra-se na atuação dos impulsos internos da conduta, que precedem aos seus movimentos, dando pouca atenção, em princípio à habilidade necessária à apresentação (LABAN, 1978, p. 27)

Pensando por essa ótica e concordando com Nóbrega (2015), entendo o estudo fenomenológico com base no gesto dançado e o movimento do corpo no espaço da cidade como uma possibilidade de pensar poeticamente na criação de uma estética singular pautada na própria existência. Essa estética da existência seria então a capacidade de escolhas que libertem de amarras (sociais, culturais, etc.) e tenham o poder de reinventar, durante seu processo, a própria vida.

Pensar estesiologicamente o corpo, a dança e a cidade é também pensar nos atravessamentos gerados por esse movimento que poetisa o cotidiano e ultrapassa a vida ordinária como uma “arte derivada da própria vida” (NÓBREGA, 2015, p.126). Ainda conversando com Nóbrega, a produção de sentido em um acontecimento não deixa intacto o corpo do “observador” – aqui coloco como aquele que observa a dança como no contexto da autora, todavia mais ainda, considero a mim mesma uma observadora da cidade como acontecimento que afeta o meu corpo – a medida que o vê (o acontecimento) e o sente enquanto imediatamente o corpo trabalha cinestesicamente para sua interpretação.

Quando penso na minha dança, na estesiologia, no corpo, na cidade, visualizo o que a autora anteriormente citada entende como “transporte”. Nóbrega diz que

Na partida de um trem, por exemplo, acontece de não sabermos se é o nosso trem que parte ou aquele que está no exterior. No caso de um espetáculo de dança, essa distância eminentemente subjetiva que separa o observador do dançarino pode singularmente variar, provocando certo efeito de “transporte” (NÓBREGA, 2015, p. 132).

A autora fala da experiência do espectador de dança como um transporte de sua distância com relação ao intérprete (distância da obra, estar imerso ao ponto de não senti-la), entretanto trago este trecho também para explicitar a relação com a dança errante na cidade. Enquanto errante, ponho-me como espectadora do “espetáculo” do movimento

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urbano, da dinâmica dos espaços e suas imprevisibilidades. Meus sentidos e atenção plena ao momento presente me proporcionam o transporte de pedestre para vivente da cidade por meio dos movimentos dançados. Já não se sabe mais quem se movimenta: a cidade ou corpo que dança?

Assim, tenho na dança o reflexo do vivido, daquilo que é cotidiano transpassado a ser estética existencial. Uma ação do conjunto do corpo humano transportada no mundo em um espaço-tempo próprio que difere totalmente daquele que utilizo em minhas atividades rotineiras da vida prática (NÓBREGA, 2015).

Ainda pensando pela mesma ótica do que é a dança e sua relação com o mundo, acrescento baseando-me em Porpino (2017) que a dança é diretamente contagiada pelas “aventuras”, segundo a autora, do corpo no mundo. Os modos de sentir o mundo, por sua vez, desvelam-se em movimentos de dança em uma intensidade de contágio mútuo que se faz impossível descrever. A potência da experiência da dança, assim como da experiência da cidade é apenas possibilitada sentir por meio do ato de vive-la, pois as palavras não são capazes de contemplar a magnitude de tais sentimentos.

É necessário um mergulho na dança para viver as características que nos faltam à fala e à escrita sobre o que se sente no movimento. Sendo assim, o uso da improvisação na dança faz-se importante, pois permite um aprofundamento das sensações do corpo que deixam latentes elementos do próprio gesto, os quais poderiam ter passado despercebidos anteriormente e ao notá-los criam-se novas possibilidades de dançar de outras maneiras e intensidades (PORPINO, 2017).

Ao pensar nessas novas possibilidades de dançar e, também, nas outras maneiras de produzir a arte a partir da percepção e aprofundamento de sensações, muitas dúvidas me apareceram sobre utilizar o termo “dança” para falar do que estou fazendo. Escrever sobre o gesto, ou o movimento performativo, me pareciam abraçar mais o entendimento que tinha da minha prática. Porém, concordando com Ginot e Launay (2003) a esfera de atividades daquele que dança, raramente se restringe ao gesto dançado, unicamente.

É muito comum que, em sua formação, o dançarino tenha também contato com o teatro, a música, entre outras linguagens artísticas que, para as escolas de dança, podem aparecer como “extra-curriculares”, logo não se misturam e não atrapalham a busca pela produção de uma “dança pura”. Ainda de acordo com as autoras, tornar-se bailarino além das escolas é ter a capacidade de abrir horizontes que elas mesmas acabam por restringir, ou seja, ser bailarino além das escolas é se permitir viver um “além do gesto”.

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Assim, a contemporaneidade trouxe para a dança a possibilidade de acrescentar afetos ao gesto de forma que há “o outro” na dança: texto, voz, imagem, música. Até mesmo a utilização de práticas antes complementares como as de Educação Somática (Feldenkrais e Eutonia), Yoga e Aikido na procura de movimentações que não sejam as dadas por elas, mas que juntas (ou mesmo ainda complementares) à dança geram outras corporeidades, sem deixar de ser dança (GINOT e LAUNAY, 2003). O híbrido formado por dança e outras formas de expressão artística ou corporal, mesmo em toda sua mistura, continua sendo dança.

O movimento de dança trabalhado aqui durante a minha prática é ritmo, voz, texto, pintura, canção, poesia e é também gesto corporal. É a cidade e aquilo que ela faz tocar em mim, assim como é aquilo que também comunico a ela. O gesto é errante da dança, do teatro, da performance, da música, da literatura e mesmo assim continua sendo gesto e continua sendo dança.

Então, esse gesto dançado enquanto errante aparece de forma improvisada. São os espaços da cidade e sua relação com o corpo que dança que possibilitam ao corpo se expressar. É da cidade que vem a dança e é com a cidade que o movimento conversa. A improvisação é necessária nesse caso por não se cristalizar, estar sempre em fluxo, em trânsito. Dialoga com o espaço em caráter efêmero, se baseia na percepção consciente e perde-se nesses fluxos de percepção e comunicação cambiantes, em movimentações que agregam em si informações capazes de atualizar simbolicamente os espaços (LEAL, 2014).

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Referências

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