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Da violência à arte: Passo da Pátria

3. Perdida em presença: a poética das ruas

3.3 Da violência à arte: Passo da Pátria

Quando terminei minha última errância pela Ribeira, voltei para casa com o desejo de ir ao Passo da Pátria, uma comunidade pertencente ao bairro do Alecrim, localizada entre a linha do trem e as margens do Rio Potengi. Contam os mais antigos – fontes que obtive dentro da comunidade por meio da transmissão oral – que durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) o general encarregado foi até o bairro do Alecrim para convocar os homens a marcharem em direção ao rio e lutarem. Em suas palavras, ele ordenou que aqueles soldados recém convocados dessem os primeiros passos para defender a pátria. O então Presidente da Província, José Olinto Meira, após a guerra, nomeou o lugar de Passo da Pátria para homenagear os homens que tomaram a iniciativa na linha frente, por isso o nome “Passo” é escrito com dois “s”, visto que se trata do ato de dar a passada, caminhar, diferentemente de “paço” com “ç”, que se refere a habitação (ex: Paço do Frevo, em Recife/PE).

O Passo da Pátria tem a fama de ser o que midiaticamente entendemos como Favela – o estereótipo do lugar onde moram pessoas pobres, traficantes de drogas, bandidos; onde só tem violência, onde é perigoso entrar. Esse é o pensamento que muitos têm, inclusive o que eu tinha antes de entrar lá. Fiquei bastante tempo presa a esse entendimento e já havia desistido de visitar o local para minha pesquisa, visando a minha segurança.

Eis que no início de agosto me apareceu uma oportunidade de fazer a seleção para uma vaga como Arte Educadora na Associação para o Desenvolvimento de Iniciativas de Cidadania no Rio Grande do Norte (ADIC/RN)4 que tem sua sede dentro da comunidade. No primeiro momento não dei tanta importância, entretanto o anúncio da vaga me apareceu nas redes sociais tantas vezes que resolvi entrar em contato. Até então não havia percebido as coincidências entre a minha vontade, anteriormente abafada, de ir ao Passo da Pátria e o aparecimento de uma vaga de emprego lá.

Fui no dia 06 de agosto pela primeira vez e tive o primeiro choque: vivenciar uma realidade completamente diferente. Vi o esgoto a céu aberto e as pessoas que passavam por cima como se fosse água limpa – para elas talvez não haja realmente diferenças visíveis, mas isso é julgamento meu – e casas feitas de papelão. Mas também vi muitas,

4 Organização de Terceiro Setor que oferece atividades socioeducativas para crianças residentes no Passo da Pátria que estejam matriculadas em escolas da rede básica de ensino.

inúmeras pinturas de grafite5 nas paredes. Pensei “aqui então existe alguma ocupação artística”. Fiz a entrevista, passei para segunda fase.

Neste ponto trago uma reflexão sobre a potência do caminhar na cidade, segundo Gros (2010). O autor aborda a caminhada como uma possibilidade de estar no lugar periférico, às margens de uma sociedade de trabalho e consumo em ritmo acelerado. Vê- se no ato de caminhar errantemente, uma forma de “estar fora” do próprio caminho – aquele que normalmente se percorre quando busca-se cumprir obrigações. Sendo assim, entende-se que

não é necessário ir muito longe para caminhar. O verdadeiro significado da caminhada não está em rumar para a alteridade (outros mundos, outros semblantes, outras culturas, outras civilizações), está em ficar à margem dos mundos civilizados, quais quer que sejam. Caminhar é pôr-se fora do caminho: ocupar uma posição marginal com relação aos que trabalham, marginal às autoestradas de alta velocidade, marginal aos produtores de lucro e de miséria, aos exploradores, aos trabalhadores esforçados, posição marginal com relação aos indivíduos sérios que sempre têm coisa melhor para fazer do que dar uma boa acolhida à pálida suavidade de um sol de inverno ou ao frescor de uma brisa primaveril. Caminhar é uma questão não só de verdade, mas também de realidade. Caminhar é passar pela experiência do real (GROS, 2010, p. 98)

Ainda dentro do processo iniciado, dia 14 de agosto retornei para segunda fase. Por mais famoso (no mau sentido) que o Passo da Pátria fosse para mim, o medo que senti quando fui ao Centro da Cidade ou à Ribeira, por exemplo, não me acometeu dessa vez. Não sei explicar o porquê. Talvez o fato do meu caminho ser cheio de artes urbanas tenha me passado a sensação de que o local que estava também me pertencia enquanto artista.

Aquilo me fez refletir sobre a necessidade de as comunidades externarem (não no intuito apenas de fazer o que está fora daquele ambiente olhar para lá, mas na própria necessidade de expressar, lá dentro, os sentimentos que não saem na voz) suas questões de uma maneira muito mais subjetiva do que pela linguagem falada ou escrita, pois

A vida nos desafia a criar novas formas de viver, e a arte nos oferece um espaço de criação, de inspiração, em que podemos apreender a expressividade da existência. A obra de arte desloca o nosso olhar e nos faz ver de outros modos situações do cotidiano, oferecendo-nos outros pontos de vista sobre as coisas, sobre as pessoas, sobre a cultura. (NÓBREGA, 2015, p. 124).

5 Pinturas feitas em muros, paredes, edifícios, etc. O estilo foi iniciado nos Estados Unidos da América nos anos 70 e ganhou força pelo mundo como uma forma de intervenção urbana artístico- política.

A arte naquele lugar é também uma forma de amenizar para os próprios moradores, a dor de estar em um local que constantemente vive em guerra, entre as próprias facções e também entre facções e a Polícia Militar.

Fui aprovada para vaga, iniciei meus trabalhos na semana seguinte.

Logo na minha primeira semana de trabalho, toda ADIC/RN fez um passeio a pé pelo bairro e imediações. Nada mais apropriado para mim, poder juntar meu tema de pesquisa ao meu emprego recém assumido e na comunidade que já havia sido foco para minha próxima errância.

Por mais que o caminho já fosse previamente decidido pelas professoras que conheciam o Passo da Pátria muito mais do que eu, aquela experiência para mim era completamente nova e, literalmente, me encontrava perdida naquele lugar – a sensação de que se me deixassem por ali, não saberia voltar. A caminhada saiu da sede da ADIC/RN na Rua Ocidental de Baixo, nº120, e seguiu por dentro da comunidade. Fiquei responsável pelo último grupo de alunos e, coincidentemente ou propositalmente, o meu grupo se apossou de um estado de lentidão contemplativa muito maior que os outros. Ficamos algumas vezes para trás.

Figura 10: mapa imaginário do trajeto realizado no Passo da Pátria, 2018. Fonte: acervo

Na primeira rua que entramos à direita, me deparei com a sede do projeto social INarteurbana formado pelos artistas urbanos e crianças do bairro, responsáveis por todas as pinturas que lá estão nas paredes, o que me deixou animada. Seguindo caminho, passamos por uma ponte sobre o que eu suspeito ser uma mistura do Rio Potengi com um canal de esgoto aberto – o canal com o esgoto se encontrava ao rio mais a frente e desembocava todos os dejetos e lixos em seu leito. Continuamos caminhando e a cada elemento que me chamava atenção, ia perguntando aos alunos e às professoras do que se tratava.

Todas as ruas pelas quais passamos estavam recebendo, naquele exato momento, intervenções urbanas visuais. Todos os artistas do projeto que mencionei anteriormente, estavam em atividade e presenciamos seus processos criativos acontecendo em tempo real. A sensação que tive foi muito boa. Por um momento não queria sair dali, sentia apenas a necessidade de pausar e observar aquelas pessoas, conversar com elas e entender suas criações e manifestações artísticas que aconteciam em frente aos meus olhos.

A experiência de apreciação artística, segundo Kastrup (2012), mobiliza a atenção e suspende a atitude natural do apreciador. A atenção então passa a voltar-se a si, do exterior para o interior, o que pode ser tido como um movimento de saída de si.

Trata-se de um tempo de reverberações afetivas, de ressonâncias das forças captadas na experiência estética. As forças e os afetos que a obra traz consigo e oferece ao percebedor funcionam como dados exteriores e objetivos (KASTRUP, 2012, p. 28).

Dessa forma, o olhar é transmutado daquele que procura àquele que encontra e acolhe os afetos mobilizados. O percebedor da obra acaba por abrir-se sem intencionalidade e “deixa-vir” algo que não é visado pela consciência intencional, como se a redireção da atenção causasse uma mudança em sua relação com o mundo “no sentido de uma conversão do interesse natural dedicado ao objeto, em direção ao ato que me permite acessá-lo” (KASTRUP e SADE, 2011, p. 143).

Entretanto, como o passeio seguia, continuei caminhando junto aos alunos. Para minha alegria, até chegarmos à linha do trem haviam artistas trabalhando, assim como pessoas conversando na rua com suas cadeiras nas calçadas, tranquilas, apreciando a vida em um tempo lento que do outro lado da cidade não se vê.

Segundo Milton Santos (2006), na cidade o tempo que comanda é aquele dos homens lentos, pois quem tem na cidade um meio de mobilidade e pode percorre-la, acaba

por pouco vê-la, pouco apreciá-la, porém os homens lentos – aqueles menos abastados – constroem nela outro tipo de imagem.

São aqueles em condições econômicas menores, os ditos pobres, os que residem em sua maioria em locais marginalizados, “zonas opacas” como o Passo da Pátria, que detém a construção de espaços criativos e dotados de afinidades – das percepções de grupos que mantém similaridades culturais – que encontram “novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva” (SANTOS, 2006, p.221).

O que vi ali foi muito diferente daquilo que passa na mídia. Não quero dizer aqui que a violência não está presente na comunidade, muito pelo contrário, ela está por lá e é vivenciada diariamente por todas as crianças a quem dei aula e suas famílias. Infelizmente a violência no Passo da Pátria é algo muito naturalizado, é rotineiro e reflete diretamente na educação daqueles que estão crescendo lá dentro – as crianças a quem ensinei, de 5 até 19 anos, entendem que qualquer desavença é resolvida com agressão e conversar não é uma atividade praticada.

É certo que há um abandono notável do Passo da Pátria pelo poder público, assim como vi na Cidade Alta e também no bairro da Ribeira. São espaços a serem indagados por seu caráter familiar – fazer parte da cidade em que vivo – ao mesmo tempo que desconhecidos. Locais dualistas no sentido de serem não-frequentados e evidentes para a população residente de bairros mais privilegiados, espaços banais e inúteis que, como tantos, não teriam mais razões úteis para existir (CARERI, 2013).

O que reflito sobre o Passo da Pátria e que quero frisar aqui é que ainda com toda violência e abandono, encontram-se lá características interioranas e uma forma de apreciar a cidade praticamente extinta em outros bairros de Natal. A presença da arte em todas as paredes, até mais que em lugares considerados nobres – muitos deles palco de uma arte inacessível, elitista – evidenciou o quão distinto é o olhar dessas pessoas à dinâmica acelerada da cidade. Isso me remete ao que Laban constatou sobre parecer que “o homem (...) tem necessidade de uma profunda penetração nos mais íntimos recessos da vida e da existência humana que, se trazidos à tona, poderiam ajudá-lo a recuperar algumas de suas qualidades” (LABAN, 1978, p. 28).

Continuei com a vontade de voltar ao Passo da Pátria (assim como no Centro da Cidade) e experimentar suas ruas por meio da dança. Infelizmente, no dia 15 de setembro de 2018, iniciaram-se novas ações policiais no bairro. Moradores foram mortos e outros baleados e eu estava lá no momento em que a população se reuniu para confrontar a

Polícia Militar. Precisei me ausentar do bairro na situação e achei de bom grado focar nas minhas idas para lá apenas para dar aulas. Permaneci por alguns meses e finalizei minhas atividades na ong, ainda no ano de 2018.

Ouvi os tiros

No lugar onde um dia

O homem deu o primeiro passo Para salvar a pátria

A fumaça preta dos pneus

Já não me deixava ver a cor do céu Azul

O corpo no chão era o de mais um José Morto por um João fardado

Mas qual é o problema?

Se só foi preciso caminhar cinco minutos Para o lado oposto

E já não se ouvia Já não se via

Já não se falava mais Ninguém se importa

Eu quis chorar No meio das pessoas gritando Mas não era por medo Era tristeza De ver que no passo A violência é tão banal Que simplesmente entram Matam E não tem ninguém de terno e gravata Que consiga olhar para lá A pátria não tem salvação