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Sobre as permissividades de sentir e ser: os significados criados

4. Retornar: as pegadas que não deixei para trás

4.1 Sobre as permissividades de sentir e ser: os significados criados

Estar na rua, sozinha e na condição de ser mulher, fez surgir em mim o sentimento do medo, que marcou a maioria das errâncias. Segundo o Panorama da Violência Contra as Mulheres no Brasil - 2ª Edição, publicado em 2018 na página do Senado Federal, com indicadores estaduais e nacionais, a cada 100 mil mulheres no estado do Rio Grande do Norte, uma taxa de 5,1 é morta em situação de feminicídio. Além disso, só no RN, pelo menos uma taxa de 68,8 (para cada 100 mil mulheres) ligaram – até o ano de 2016 – para o 180 (número de telefone para denúncias de violência contra a mulher) e relataram casos de violência física, violência psicológica, violência moral, violência patrimonial, violência sexual, cárcere privado e tráfico de pessoas.

No âmbito nacional, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan registrou pelos centros de saúde do país, um crescimento de 4559 casos de violência física, 22720 casos de violência psicológica/moral, 14237 casos de violência sexual e 1527 casos de violência patrimonial, em 2014; para 1012018 casos de violência física, 50955 casos de violência psicológica/moral, 27059 casos de violência sexual e 3055 casos de violência patrimonial, em 2016.

Muitos desses números, segundo o Panorama, aplicam-se em situações de violência doméstica (violência cometidas por pessoas próximas às vítimas), entretanto, grande parte de ocorrências policiais atendidas e registradas pelas Secretarias de Segurança Pública, se enquadram no chamado “lesão corporal dolosa”, quando o agressor

comete a violência física ou estupro, pontualmente e não progressivamente. Muitos desses casos não são solucionados.

A sensação do medo reflete no corpo, a apreensão de entrar para estatística. Estar na rua e sozinha foi como assumir o (infeliz) risco de passar por situações, no mínimo, desconfortáveis. O corpo não abandona os reflexos desse sentimento e mesmo na caminhada – a exemplo da primeira errância na Cidade Alta (página 43) –, a percepção da cidade embebida de medo, me foi menos proveitosa do que em momentos em que a sensação não esteve presente – passos acelerados, olhares menos fixos aos detalhes do espaço, vontade de sair daquele ambiente; foram características notadas na situação. A dança, nesses momentos, se apresentou de forma contida ou direta, como no caso em que estive no bairro da Ribeira (página 47). Atingidos pelo medo, ou desconforto, os movimentos registrados se voltaram para dentro, ou aconteceram em um tempo rápido, fluíram por meio do controle e os espaços além da minha própria cinesfera mal se aproveitaram, pois “a fluência do movimento é controlada por centros nervosos que reagem aos estímulos internos e externos” (LABAN, 1978, p. 49).

Entendo que, em uma movimentação, a fluência é influenciada pela ordem em que as partes do corpo são acionadas, sendo assim, relacionando os estudos de Laban às experiências vivenciadas no decorrer da pesquisa, nos momentos de sensações ruins ficaram perceptíveis ações que caracterizam este fator de movimento como controlado, pois

o controle da fluência do movimento, portanto, está intimamente relacionado ao controle dos movimentos das partes do corpo (...), a fluência do movimento é controlada quando o sentido dele toma um rumo para dentro, que se inicia nas terminações das extremidades, progredindo em direção ao centro do corpo (LABAN, 1978, p. 48)

Estudiosos do movimento, da dança e do teatro, como Rudolf Laban, em sua trajetória, propuseram práticas corporais que acreditavam que todo movimento e deslocamento do corpo partem de uma motivação interna, constituída por pensamentos, sentimentos e emoções. Devido a isso, “esses elementos internos ou motivações participam dos processos artísticos, modificam os parâmetros orientadores da criação e do movimento e ampliam as possibilidades de composição” (CHRISTÓFARO, 2019, página 01-02).

Além disso, Laban (1978, p. 51) também frisou que “todos os movimentos humanos estão indissoluvelmente ligados a um esforço o qual, na realidade, é seu ponto de origem e aspecto interior”, sendo esse esforço caracterizado por suas definições de

peso, espaço, tempo e fluência; cada qualidade surgida da junção dessas especificações, representam determinadas ações e apresentam resultados distintos nos gestos.

Dessa forma, ao mesmo modo em que o medo me privou de movimentar o corpo fluentemente livre, pelo espaço, sensações como a gratidão, a liberdade e o bem-estar, bem como a temperatura quente do sol e a textura do vento batendo no corpo de forma agradável, desencadearam em uma dança de maior aproveitamento espacial e maior amplitude de movimentações, a exemplo da vivência no Alecrim (página 64).

Dos sinos imaginários que tocaram músicas pelas pontas dos dedos, às curvas na coluna que se estenderam pelos braços, ao flexionar dos joelhos e movimentos dos pés; nada restringiu a utilização dos espaços da cidade. Percebo aqui, que

os movimentos que se originam do tronco, do centro do corpo, e depois fluem gradualmente em direção das extremidades dos braços e pernas são em geral mais livremente fluentes do que aqueles nos quais o centro do corpo permanece imóvel quando os membros começam a se movimentar (LABAN, 1978, p. 47)

Figura 15: avenida 9, 2018. Fonte: Ian Rassari

Nesse ponto das investigações dançadas, o movimento foi capaz de não apenas ser afetado pela percepção da cidade, como também de marcar naquele espaço, a expressão de uma plenitude e da completude sentida.

Assim, cada sentimento transpassado em movimento, fez do espaço, também, uma extensão daquilo que foi sentido. Um lugar de transmissão instantânea e união entre o corpo e a cidade, que vivem o mesmo momento e sua efemeridade – tendo em vista que as sensações são atualizadas a cada etapa da vivência. O espaço passa a ser, mesmo que por um curto período de tempo, o meu corpo e tudo aquilo que trago com ele. Eu viro o espaço pela dança, o espaço vira o corpo pelas sensações que a dança produz. O espaço se transforma em lugar, por receber toda carga de significâncias que carrego em mim.

Nesse momento, em que corpo e espaço se unem em suas singularidades, aprendo a encher-me de afeto por mim, tendo em vista que não há nada mais a perder, basta caminhar e dançar, sem qualquer expectativa. É então que posso chegar ao “benefício” principal de uma errância pelo gesto dançado: o ser.

O ser no sentido de encher-me de presença e vivenciar o momento, apenas observando toda e qualquer mudança dentro de mim e no espaço, minhas reações e percepções do ambiente. Ser, compreendendo que para ser é preciso estar, estar ativo e atento, pois “não ter nada para fazer exceto caminhar permite resgatar o puro sentimento de [...] redescobrir a simples alegria de existir” (GROS, 2010, p. 87).

Retomo ao ponto deste capítulo em que Gros (2010) reflete sobre encontrar em si o primeiro homem a habitar a terra. Revelar esse homem é reencontrar o que há de mais selvagem possível, o natural, remover em si mesmo o verniz do homem social e moldado, não para encontrar uma identidade própria, mas para despir-se da ideia de identidade e sentir-se intuitivo na relação com o meio.

Quando danço na rua, entendo que sou, quando consigo prolongar aquilo que sinto ao transpor minhas sensações no espaço e criar lugares através disso. Sinto a temperatura, o vento, o medo, a angústia e também o prazer, a contemplação. Sinto tudo o que diz respeito a mim, naquele momento, e imprimo nas ruas da cidade, a expressão de um sentir único – é meu, é efêmero, é singular.

Aqui, compreendo essa dança errante, perdida, como uma forma de despir-me de todo e qualquer julgamento pré-concebido, toda e qualquer marca que identifique uma história já vivida, e mesmo que, quando evocadas memórias de um passado, saber atualizá-las em novos significados, como uma possibilidade de “abrir-se ao inesperado ou arrebatador, ou apenas ao que não tem referências explícitas exige de quem se move e de quem é movido uma sensibilidade aberta a novas conquistas do sentir” (PORPINO, 2018, p.69).

Despi-me de julgamentos, de toda vergonha e expectativas, para permitir que, na cidade, eu pudesse ter a capacidade de apenas ser. Ser de várias formas, vários sentimentos, inúmeros cheiros e diferentes visões de espaços e lugares que criei e deixei para serem vividos novamente. Em todos eles, fui.

Fui, por meio de uma dança permissiva, aberta a deixar vir os prazeres e inquietudes do sentir, trocar com a cidade as experiências. As ruas me contaram sobre suas marcas através do movimento dos espaços urbanos, e em contrapartida, me comuniquei com elas pela dança que surgiu desse contato “como um modo de estar, de ser com o outro, de aquiescer o sentir como um gesto que permite ser outro no interior de si mesmo” (PORPINO, 2018, p.69).

Vi emergir no corpo, sendo provocada por um mundo de formas, cores, sensações, sentimentos; uma série de afetos, desafetos, desejos e intencionalidades surgidas da relação com a cultura, os lugares e objetos ressonantes em inúmeras possiblidades de produção de gesto que, além de estéticos, transbordaram e registros escritos, pintados, gravados, entre tantos outros que me fizeram perceber que

As intensidades estesiológicas geradas pela ressonância entre o corpo que dança e um mundo infinito de apelos estéticos parece exigir de nós uma abertura maior para além de nossa compreensão de nos mesmos até onde nos conhecemos (PORPINO, 2018a, p. 9)

Essa dança, que passa a existir pela própria vida, como uma ação do corpo transposta no mundo em um espaço e tempo que se distingue do cotidiano, em que o corpo destaca-se dos seus equilíbrios costumeiros e nos retira da vida prática ao criar

novas formas de habitar o mundo, faz transcender os limites do que é biológico e o que é comportamental para sentir e ser inteiramente medo, prazer, alegria, desconforto, ou o que mais surgir (NÓBREGA, 2015).

Esse espaço, que me perfura e que também sou eu, me dá todos os sinais de como pode ser ocupado (pelo gesto, pelo olhar, pelo sentir) e, por ser construído por mim, no momento em que danço, permite que encontre nele as possibilidades de criação. É ele quem me possibilita intervir com movimentos e é nele que descubro todos os limites do meu próprio ser (PORPINO, 2018).

E então, toda e qualquer sensação expressa pelo gesto nesse ambiente, faz dele o lugar onde são criados novos significados e atualizados àqueles já vividos em outros momentos. A comunicação que se faz pelo movimento improvisado na dança é aquela que sinto quando percebo a cidade e as significações que a preenchem. Respondendo à primeira pergunta que fiz no início, pela dança errante se criam e se atualizam, nos espaços da cidade, tudo aquilo que a própria cidade oferece de sensações e que o corpo vive por meio da percepção.

Essa atualização acontece quando, pela dança, evocam-se as memórias de um passado que traz consigo seus próprios sentidos – passado do corpo dançante e do próprio espaço visitado – e, “as recordações e associações de ideias conduzem a um estado de espírito contemplativo e a uma atividade interior de meditação” (LABAN, 1978, p. 31). Ao perceber, para além das lembranças, o que mais surgir de inspiração ao corpo nesse estado meditativo, estar aberto para deixar expressar no gesto, todo impulso de movimento guiado pelo percebido.