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Sobre as atualizações da dança e da cidade: afetos, energias e suspensões

4. Retornar: as pegadas que não deixei para trás

4.2 Sobre as atualizações da dança e da cidade: afetos, energias e suspensões

Essa forma de atualização dita anteriormente, talvez seja a principal distinção entre a caminhada errante e a dança errante, na cidade: as derivas, pelo caminhar, atualizam mais as estéticas no campo visual, pelo olhar os espaços de outra forma e descobrimento de uma nova cidade e sua arquitetura; para mim, essa experiência se apresentou com menor mobilização para o sentir, mais receptiva, pouco houve de influências corporificadas na transformação de um espaço em um lugar. A experiência permaneceu centrada muito mais na relação ver-perceber-ressignificar pelo pensamento, do que na possibilidade de sentir-perceber o que se sentiu-ressignificar pelo movimento.

Isso se dá pelo fato de que os trabalhos voltados para as artes plásticas e estáticas – a pintura, a escultura e a arquitetura – exigem uma determinada durabilidade sólida e

podem acrescentar uma funcionalidade útil, que carrega em si os traços de sua criação artística. Em oposição, os trabalhos em artes como o teatro e a dança, carregam em si uma transitoriedade fluida, que não se percebe apenas em uma observada (LABAN, 1978).

Ao pensar nessa fluidez da transitoriedade, é perceptível que a dança pensa em um movimento do próprio corpo, sendo assim, não há como olhar as formas e movimentações sem voltar-se a um olhar para si mesmo. Na dança, o corpo produz a arte por meio de gestos, estes que surgem a partir do corpo. A arte da dança tanto é feita e expressa de dentro para fora, do interno ao externo, como também do que há fora e faz sentir e ressignificar movimentações. É preciso sentir, para criar e assim, criam-se fluxos cambiantes de percepção e movimentos.

Dessa forma, errar pelo gesto dançado, em minhas experiências, foi uma forma mais ativa de pertencer à cidade. Para além do julgar o que vejo, está ligado a deixar vir o que sinto e responder pela dança, tendo em vista, que, enquanto artista dessa linguagem, reconheço-a como uma prática sensível e perceptiva, que não se relaciona, necessariamente, a uma finalidade espetacular.

Compreendo, então, pelas minhas vivências, que a percepção dos espaços para criação em dança, não apenas altera o meu olhar de praticante para a cidade, como também modifica a forma como o meu corpo sente ao estar nela e as próprias memórias relacionadas aos lugares. Dançar na cidade, para mim, foi criar conexões com a própria movimentação do espaço urbano. As ruas estão sempre em movimento, sempre dançando seus próprios ritmos – sejam eles intensos, ou não – e cabe a mim enquanto errante, responder ao ritmo da cidade pelo meu próprio movimento.

Quando esse processo de perceber os espaços, mas principalmente, os sentimentos e sensações é consciente, tomo noção de cada mudança em relação ao corpo. Isso resulta na motivação para criação de novos movimentos, com eles, novas significações. A rua é o lugar gerador de grandes quantidades e qualidades de paisagens, um fluxo de ambientes perceptivos exigente de uma atenção e preparação para “transitar consciente por um vasto conjunto de informações, escolhendo e recriando mobilidades no momento da cena, interpretação e criação integrados” (LEAL, 2014, p. 245).

Ao afirmar que a prática do erro pela dança pode ser uma maneira mais potente de ocupar a cidade, do que a caminhada errante, quero dizer que essa dança improvisada me permite ser errante e construir significações gestuais por espaços que habito, assim como posso tornar cada percepção importante para criação de relações tecidas nesse fluxo entre corpo e espaço; bem como, permito a disposição para abrir, ainda mais, os campos

perceptivos e sensoriais do corpo, complementando e enriquecendo as maneiras como são modificadas e atualizadas tais relações (LEAL, 2014).

Como afirma Porpino (2018), encontro um modo de ocupar o espaço pelo que enxergo nele, mas para além do sentido da visão, percebo um modo de ser do corpo por completo. Pelo olhar e pelo sentir, aquilo que enxergo quando caminho, se transforma em movimento de dança quando a errância é, também, pelo gesto da dança. O meu corpo se confunde com o que é visto e passa a perceber tantas outras formas de ver daquele novo olhar e novo sentir, que se diferencia do primeiro. É esse o corpo que não se define por uma essência para além dele mesmo, mas pela sua corporeidade vivida e abertura ao mundo, incluindo sua cultura, historicidade, linguagem e símbolos. O meu corpo que se move e, pelo movimento, desdobra-se (NÓBREGA, 2015).

Além da percepção que se modifica entre o andar e o dançar, existe outra diferenciação entre as práticas, que se apresenta na sua intenção. Caminhar como caminhamos diariamente, exige do corpo uma determinada carga de tensões que têm como finalidade, apenas, o executar dessa tarefa involuntariamente. Não se cobra uma determinada postura, ou ritmo, ou tonificação muscular específica para um caminhar virtuoso, apenas se caminha.

Ao pensar no mesmo caminhar, porém aplicando a ele uma intencionalidade cênica, entende-se que – mesmo que a ação seja, aparentemente, a mesma – criam-se diferentes tensões e equilíbrio (ou energia, segundo Barba) para construir um andar que se diferencie daquele que utilizamos no dia-a-dia. Muda-se a energia do caminhar ao mudar também a forma como o corpo precisa trabalhar para tornar a ação cênica (BARBA, 2009).

Um exemplo é o da artista Pina Baush - coreógrafa, bailarina, diretora alemã, que viveu entre 1940 e 2009, que em algumas composições, cenas ou gestualidades cotidianas trabalhou a partir repetições exaustivas até o momento em que já não se mais reconhecem os movimentos inicialmente executados. Reflito, assim, sobre experiência do extracotidiano vivida no palco, que ao agir sobre razões das ações humanas, transporta o espectador para outras realidades e temporalidades, quiçá próximas aos devaneios (NÓBREGA, 2015).

Sobre a obra Café Muller (1985), Nóbrega comenta as características acima citadas

Café Müller é a peça mais curta de Pina Bausch, ela dura 50 minutos. Há o

tempo social do café e aquele da dança. Temporalidades que se cruzam, tocam- se. O café é o lugar de ações, de encontros e de sentimentos. O casal se desfaz, se refaz, reencontra a solidão. As cenas são retomadas na peça. Em uma cena considerada antológica, um bailarino abraça o casal, aproxima as cabeças, os lábios, coloca a mulher nos braços do homem e se afasta. A mulher desliza até o chão, levanta-se rapidamente, abraça novamente o homem. O bailarino volta e recomeça a sequência, depois se afasta. A mulher cai. A sequência se repete nove vezes, acelerandose. Repete mais sete vezes, ainda mais rápido. As diferentes velocidades das sequências participam também da atmosfera global da peça: momentos de imobilidade, agitação e rapidez, precipitações, lentidão, doçura ou velocidade, alternância da espera e aquela da ação. Essa diversidade dá o tom do conjunto de cada cena (NÓBREGA, 2015, p. 224-225).

Trazendo para o contexto da errância, ao pensar na caminhada que praticamos cotidianamente, em contraponto com a caminhada errante, por si só, já considero perceptível uma alteração de energias – tendo em vista a finalidade de atualização estética da cidade por meio do olhar –, entretanto, ao refletir sobre as deambulações errantes pelo andar e as práticas da errância pelo gesto dançado, entendo que há, também, outra diferença na energia do corpo.

O dançar na rua exige do corpo de seu praticante, a capacidade de modificar constantemente o seu equilíbrio em prol de uma alteração do que é cotidiano, para o que é cênico, um equilíbrio que não tem seu uso previsto na caminhada. Entendo que

a dança amplifica, quase como se colocasse embaixo de um microscópio, os minúsculos e contínuos deslocamentos de peso com os quais permanecemos quietos, de pé, e que os laboratórios especializados em medir o equilíbrio visualizam por complicados diagramas. É essa dança do equilíbrio que os atores revelam nos princípios fundamentais de todas as formas cênicas (BARBA, 2009, p.45)

Quando o corpo é capaz de sentir e perceber as provocações que vêm da cidade, sinto e as converto em gestos, que acabam por influenciar minha dinâmica, minha energia e meu equilíbrio. Há um transporte da posição de recebimento, para de intervenção; de pedestre, para dançarino e dos outros transeuntes, para espectadores. Há uma suspensão da vivência cotidiana da cidade, para apreciação e para o fazer artístico.

Foi dito, nos primeiros capítulos desta dissertação, sobre a arte como uma espécie de transportadora do ser, do seu estado cotidiano a um estado de suspensão e locomoção da sua atenção. Seria o que Nóbrega (2015) descreve como quando, num trabalho de dança, o movimento executado gera uma experiência cinestésica imediata, no observador: a dança assistida é sentida também internamente, pelo corpo que assiste.

Neste caso, a produção artística suspende a atenção cotidiana do espectador e a transporta para um estado que não deixa intacto o seu corpo, pois o que se vê e o que sente trabalham para interpretação do que está sendo visto, e a sensação do próprio peso é a única característica que diferencia o que é dele e o que é do mundo. A significação do movimento acaba por acontecer no corpo daquele que observa, tanto quanto naquele que produz a dança (NÓBREGA, 2015).

É importante entender que a nossa atenção se divide durante a experiência estética: uma atenção voltada a apreciação e outra que se torna a si. Ambas formas de atenção ocorrem, paralelamente, e juntam-se com outros processos, como a percepção e a memória, para criação de um estado de atenção especial, capaz de acessar as virtualidades do mundo e da subjetividade (KASTRUP, 2012).

Retomando o que já foi dito no relato das vivências no Passo da Pátria, com relação a suspensão causada pela experiência artística, mas pensando do ponto de vista de quem faz a arte, existe um deslocamento da atenção usual – ao perceber o mundo para criação – que faz nos distanciarmos de outros interesses, para a ampliação da percepção. Converte-se a atenção que damos aquilo que é usual, em uma atenção suplementar, esta que nos deixa abertos a perceber o mundo subjetivamente (KASTRUP, 2012).

Entendo, então, que se suspende tudo aquilo que é cotidiano, que é usual, comumente vivenciado para converter a atenção e redirecioná-la, pois

a suspensão da atitude natural de juízo é o primeiro gesto e pode ser desencadeada por um acontecimento especial, que interrompe o fluxo cognitivo habitual, como é o caso da surpresa estética. A experiência estética surpreende pela beleza ou pelo estranhamento, mas sempre por seu caráter de enigma, que mobiliza a atenção e desativa a atitude recognitiva natural. Ela instala um estado de exceção. A suspensão pode ser aí entendida tanto como uma interrupção do fluxo cognitivo quanto como suspensão no tempo (KASTRUP, 2012, p. 28).

A suspensão na experiência estética redireciona a atenção exterior para uma atenção a si, ao modo que estabelecemos relações com a manifestação artística. Somos acometidos pelas reverberações afetivas e de forças captadas, e, dessa forma, a atenção que busca (intenção para fora) se transforma em atenção que encontra (introspecção) e acolhe os elementos afetivos identificados (KASTRUP, 2012).

Seguindo por essa ótica, relaciono às falas do filósofo Merleau-Ponty à Rádio Nacional Francesa, transcritos no livro Conversas (1948), em que o autor reitera que a medida em que assistimos um espetáculo somos submetidos a diferentes pontos de vista,

instantâneos e sucessivos, não passíveis de sobreposição – como uma forma de inverter o modo de natural de ver o mundo e abrir-se ao mundo percebido, ou seja, uma suspensão do viver cotidiano.

Um exemplo que o autor dá é o de um pintor que se recusa a seguir as leis da perspectiva geométrica para criação de suas paisagens, para recuperar o nascimento desta paisagem diante do seu próprio olhar, com o desejo de aproximar sua pintura da experiência perceptiva. Dessa forma,

As diferentes partes de seus quadros são então vistas de ângulos distintos, oferecendo ao espectador pouco atento a impressão de "erros de perspectiva", mas dando aos que observam atentamente o sentimento de um mundo e que jamais dois objetos são vistos simultaneamente, em que, entre as partes do espaço, sempre se interpõe o tempo necessário para levar nosso olhar de uma a outra, em que o ser portanto não está determinado, mas aparece ou transparece através do tempo (MERLEAU-PONTY, 1948, p. 14-15).

O autor se remete ao período Modernista – vanguardas artísticas na Europa do século XX, como o Cubismo e o Abstracionismo – e trata de uma pintura que não imita o mundo, mas que por si só já é a criação de um universo que se constrói por meio da perspectiva do artista que a faz. Mesmo que trabalhe a partir de objetos reais, do cotidiano, o objetivo dessa arte não é a de trazer o dia-a-dia propriamente dito, mas fabricar uma espécie de espetáculo que possa ser apreciado (MERLEAU-PONTY, 1948).

Relaciono esta distinção proposta pelos artistas e filósofos modernos ao que Barba (2009) coloca sobre o cotidiano e o extracotidiano nas artes cênicas. O corpo se move de maneiras diferentes cotidianamente e em uma situação de representação artística, são as chamadas técnicas cotidianas e técnicas extracotidianas.

Enquanto as técnicas cotidianas são aquelas em que não pensamos muito ao executar (sentar, levantar coisas, comer, etc.) e praticamos, naturalmente, dentro da rotina construída pela cultura de cada povo; as técnicas extracotidianas, suspendem as ações cotidianas e exigem certos esforços para serem executadas dentro de uma perspectiva teatral, ou dançada.

Nas técnicas extracotidianas há um contraponto ao cotidiano, a medida em que não se respeitam os condicionamentos costumeiros do corpo. Uso mais energia para executar ações que, por vezes, podem ser mínimas. As técnicas extracotidianas nas artes da cena, “põem-em-forma”, segundo Barba (2009, p. 35), o corpo, tornando-o artificial e artístico, porém, dentro dos limites do considerado aceitável, crível (BARBA, 2009).

Ainda de acordo com o autor, essas técnicas se relacionam com a energia do ator em um estado puro, no nível pré-expressivo. Há uma particularidade na presença cênica, caracterizada ainda antes que se comece a querer representar algo. A energia de que falo – a mesma que diferencia o caminhar do dançar na rua – está ligada a tensões, meios de ativação do corpo para um trabalho. Barba sugere uma associação entre isso e as alterações de equilíbrio para um “equilíbrio de luxo” como uma formalização, estilização e codificação.

O equilíbrio de luxo citado por Barba (2009), presente no teatro japonês e na dança clássica, por exemplo, é perceptível ao espectador e determinado por regras precisas ao ator. De semelhante, Laban (1990) coloca a dança como uma forma de impactar a mente por meio de ações de trabalho cotidiano, que quando utilizadas em combinações de qualidades de esforço estudadas pelo intérprete, faz do espectador um ser sensível a percepção de elementos do movimento, mesmo sem saber o porquê. O autor ainda reforça que

os movimentos da dança são praticamente os mesmos utilizados nas atividades diárias. A aprendizagem deve outorgar ao aluno a capacidade e a agilidade necessárias para seguir qualquer impulso voluntário ou involuntário de mover- se [...]. O impulso repartido aos nervos e músculos que movem as articulações dos membros se origina de esforços internos (LABAN, 1990, p.32)

Sendo assim, ao utilizar da dança enquanto uma errância, suspendo a experiência costumeira do viver a cidade, tanto para o meu corpo que dança, como para aqueles que são surpreendidos com a presença de uma manifestação artística em espaço público; levando a uma aproximação a formas de vida diferentes, que nos chamam a atenção para novas possibilidades de ser no mundo7

7 PORPINO, K. O. Fala proferida durante o V Colóquio Internacional Corpo e Cultura do Movimento/ IV

Simpósio Internacional Franco-brasileiro Corpo, Educação e Cultura do Movimento/ II Congresso Internacional de Emersiologia/ I Congresso Internacional de Estesiologia, organizado pelo Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento da UFRN (ESTESIA), Laboratório de Visibilidade do Corpo e da Cultura do Movimento da UFRN (VER), Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Université Montpellier e Université Paris Descartes; em 2018 na cidade de Natal.