• Nenhum resultado encontrado

Imprevisibilidades na pele: Alecrim

3. Perdida em presença: a poética das ruas

3.4 Imprevisibilidades na pele: Alecrim

Em meados do século XIX, a cidade de Natal era composta pelos bairros da Cidade Alta e Ribeira, segundo a SEMURB (2009). Pela necessidade de um lugar para enterrar os primeiros corpos falecidos na área urbana, construiu-se um cemitério fora dos limites da capital potiguar. O lugar onde antes se abrigavam pequenas granjas isoladas do centro comercial do estado, passou a ser habitado por imigrantes fugidos de seus países de origem, pelos mortos do cemitério e aqueles que os visitavam. Dentre os moradores, uma senhora que cultivava Alecrim em sua propriedade, oferecia ramos da planta para

aqueles que passavam em procissão, a caminho do cemitério, o que fez com que a localidade recebesse o nome. Só em 1947, o Alecrim foi considerado como bairro pelo prefeito Sylvio Pedroza e, até onde se tem registro nos meios oficiais, no ano de 2009, o bairro do Alecrim ocupava uma área de 309,37 hectares, com cerca de 8.650 domicílios permanentes, além de ser um dos maiores polos comerciais da cidade.

Parti para essa errância, de frente ao shopping mais tumultuado em que já estive, em pleno portão de entrada da Avenida Coronel Estevam, popularmente conhecida como Avenida 9, iniciei minha meditação com algumas posturas da saudação ao sol – sequência de posturas do Hatha Yoga, que se relacionam à posição do nascer ou pôr do sol. Inspirei e ergui os braços em direção ao céu, apontei os dedos indicadores para cima e os demais para baixo, fiz uma leve retroflexão na coluna, expirei. Trouxe as mãos, juntando as palmas, em direção ao peito e senti a respiração enquanto curvava a coluna para baixo, levando meus braços aos pés. Subi as mãos até acima dos joelhos levemente flexionados e fiz uma breve pressão para esticá-los. Ao mesmo tempo, alonguei a coluna em 90 graus com relação às pernas e mantive a cabeça na sequência da reta que originou do alongamento. Olhei para frente em mais uma inspiração e retornei a curvar-me na expiração. Inspirei retornando vértebra por vértebra, a cabeça foi a última a chegar.

Na frente do shopping, olhei ao redor e entendi o que Gros (2010) explicitou quando disse que a caminhada se trata de viver a sua realidade. Antes de mais nada, a energia primeira sentida em uma errância é a sua, do movimento do próprio corpo no espaço. Essa energia não é uma explosão de forças e sim a irradiação de tudo aquilo que sentimos. Os movimentos de yoga feitos naquele momento, sensibilizaram o corpo ao sentir a cidade, fizeram da minha realidade a principal fonte de inspiração para o erro e a improvisação.

Ainda na Avenida 9, de costas para o shopping, virei à direita e subi a ladeira sentindo o vento me empurrando de volta. Abri os braços para sentir o ar passando melhor no corpo, no vestido, e mexi os dedos. Fechei os olhos enquanto os dedos flexionavam e esticavam levemente, como se uma música natalina tocasse a cada movimento das falanges no ar, vários pequenos sinos badalando na ponta dos dedos. Quando voltei a enxergar o espaço, percebi os olhares voltados para mim, com rostos os quais era possível ler o sinal de interrogação escrito na testa. O que era aquilo?

Dessa vez, fui acompanhada de um jovem, mas talentosíssimo e sensível fotógrafo da cidade, Ian Rassari. Talvez a presença de uma câmera me seguindo, ou na minha frente

e laterais, tenha amenizado o estranhamento das pessoas, quando viam que se tratava de um ensaio fotográfico.

Segui descendo a ladeira da avenida 9 até o cruzamento com a Avenida Presidente José Bento (avenida 3), onde dobrei à direita. Fui caminhando com o vento contra mim e sentindo o sol que tocava a pele, mas era bloqueado sempre que passava por algum lugar coberto. Quando senti novamente o calor no rosto e a luz tão intensa que não conseguia abrir os olhos, parei. Como um movimento de recebimento daquela energia quente, rotacionei os ombros para trás e ergui o peito e os braços em direção ao laranja do astro. Flexionei os joelhos e mexi do quadril ao topo da cabeça, passando pela coluna, em movimentos sinuosos e curvilíneos em um espaço multifocado, fluindo livremente, o meu tronco, de maneira que respaldava nas extremidades – braços, mãos, pernas e pés.

Mais uma vez entrei à direita, agora na Rua dos Paianases (avenida 10) e comecei a sentir a dificuldade de estar no bairro do Alecrim. Devido à grande quantidade de pontos comerciais financeiramente acessíveis à população, a região do bairro em que estava, se encontrava extremamente cheia de pessoas e lojas. Descendo na avenida e entrando mais uma vez à direita, no lugar conhecido como camelódromo – o local onde ficam muitos vendedores ambulantes, os camelôs – tentei me mexer, mas estava impossível levantar um dedo sequer. O fotógrafo, Ian, avisou que não poderia permanecer com a câmera na mão em meio a tanto alvoroço. Apenas caminhei até chegar novamente à avenida 9, onde dobrei à esquerda e atravessei a rua, parando na pista, entre os camelôs e os carros passando.

Figura 11: Avenida 9. Fonte: Ian Rassari.

Ian permaneceu do outro lado, também entre lojas e carros. O sinal abriu e comecei a me movimentar, controladamente. O espaço, neste caso, foi minuciosamente pensado para que não houvesse nenhum acidente, dessa forma, meus movimentos se mantiveram diretos, lineares, como se houvessem apenas duas maneiras de me mover: para cima e para os lados – em um plano cartesiano. Assim segui até voltar para calçada.

Como já dito anteriormente, usar da errância e da improvisação é também lidar com imprevisibilidades e acasos. Inesperadamente, Ian, com seu olhar de fotógrafo, passou a intervir no meu caminhar, pedindo para que eu parasse em determinados pontos da avenida para tirarmos algumas fotos. A errância chegou para ele como uma forma de aproveitamento da cidade pela fotografia, assim como para mim, pela dança, e estar com ele foi, também, estar com o inesperado, caminhar com a quebra de um fluxo para criação de outros modos de fazer arte.

Entendo que a fotografia é uma forma de fazer arte, quando o fotógrafo se coloca em uma produção autoral e acrescenta sua percepção do mundo e sentimentos com relação a ele. Na experiência de fotografar a dança produzida na rua, o fotógrafo se colocou a partir do seu próprio olhar, em cima dos movimentos feitos por mim. Ele,

enquanto também artista, entrou nesse processo criativo em tempo real, juntamente à criação que estava sendo feita no momento.

A fotografia adicionou outra qualidade comunicativa ao caminhar e dançar na cidade. Benjamin (2014) destaca o fato de que o surgimento dessa linguagem marcou uma mudança de função na arte – mesmo que o autor relute em considerá-la como arte, tendo em vista sua característica de ser facilmente reprodutível – em um determinado rompimento com a estética tradicional. O autor faz um recorte da época em que vive (1892-1940) ao afirmar que “a linguagem das imagens não alcançou ainda a maturidade, porque nossos olhos ainda não estão à sua altura (2014, p.55)”.

Em contrapartida, atualmente é possível constatar que tal maturidade de olhar se faz presente em trabalhos como o de Ian Rassari, a medida em que existe sensibilidade para criação visual, pela perspectiva do artista. Entretanto, a diferença entre a dança em tempo real e a fotografia dessa dança, também pode ser explicitada por Benjamin (2014, p.59) quando diz que “um tipo de reprodução é a da fotografia de uma pintura, outro tipo é aquela que se deixa fazer de um acontecimento”, ou seja, contextualizando com os acontecimentos descritos, o objeto reproduzido pela fotografia (a dança) é uma obra de arte e a sua produção (a foto) é outra forma de fazer a arte que tem o objeto como foco.

Alguns dos resultados do olhar do fotógrafo para a minha dança, estão disponíveis no código QR ao lado.

Assim, continuei a caminhada em direção ao Centro (Cidade Alta). Dentre as intervenções de Ian no percurso, corri várias vezes, de um lado para o outro da mesma rua, indo e voltando, até a exaustão. Brinquei com as flores de uma pequena praça que serve de ponto de ônibus e está repleta de lixo, logo depois, recebi a proposta desafiadora de descer a ladeira que dá para região do Baldo, pela faixa pintada no chão e que divide os sentidos (mão e contramão) dos carros que vão e voltam da zona leste.

Literalmente no meio da rua, protegida por absolutamente nada, andando na “corda bamba”, em cima de apenas uma linha amarela no chão, desci a ladeira tentando me mexer o mínimo possível. Levantei os braços e apontei para cima, numa tentativa de ter alguma segurança – uma falsa sensação de segurança – enquanto os carros passavam,

subindo e descendo a ladeira, com seus motoristas buzinando e gritando as frases “comunista!” e “é do PT, é?”6.

Neste momento, levantei a reflexão sobre o papel da arte na sociedade. Estar na rua, fazendo arte, faz de mim uma pessoa comunista ou vinculada ao PT? De onde surgiu esse pensamento de que a ocupação da rua por manifestações artísticas é, necessariamente, uma atitude relacionada ao pensamento político de esquerda?

Figura 12: Fonte: Ian Rassari.

Continuei, subi a ladeira da avenida Rio Branco, já entrando na Cidade Alta, e dobrei à esquerda em uma rua estreita. Tentei sair da calçada, mas não consegui. Apesar de pequena, a rua era bastante movimentada e notei que as casas – mesmo quando já haviam se tornado comércio – mantinham as características de suas arquiteturas originais. Algumas paredes continham pichações e notei que, especificamente, no centro da cidade, as pichações de parede muitas vezes são poemas ou trechos de músicas – que se diferem de outras manifestações que carregam símbolos e linguagens próprias dos grupos que a fazem.

O fluxo de carros diminuiu e fui para o asfalto, ajoelhei e mexi os braços em ondas no espaço, levantei e continuei seguindo até o final da rua, que ia de encontro à Igreja do Galo. Já chegando perto da igreja, comecei a girar enquanto sentia o vento passando nos

6 PT = Partido dos Trabalhadores. Partido que governou o Brasil de 2002 a 2016, aliado ao centro- esquerda, concorreu nas eleições presidenciais de outubro de 2018 e estava em campanha no momento da vivência relatada.

cabelos e levantando o vestido. Parecia um peão, rodando no espaço. Neste momento, entrou na rua, um senhor pedalando sua bicicleta, que desviou bruscamente do meu corpo – íamos colidir. Continuei girando até não conseguir mais, pois começamos todos a rir: eu, o senhor na bicicleta, o fotógrafo, os que estavam na frente da igreja.

Figura 13: Fonte: Ian Rassari.

O riso foi tanto, que a caminhada continuou entre os comentários sobre o que poderia ter acontecido de mais grave, anteriormente. Seguimos em direção ao prédio onde fica o Palácio das Artes – Pinacoteca do Estado. Um momento de tristeza. Muitas janelas quebradas, lixo por todos os lados, o prédio fechado e inutilizado, plantas crescendo e tomando conta da área externa. Total descaso. Paramos em sua frente e comecei a brincar com as formas das portas e janelas. Tentei reproduzir as figuras geométricas que, juntas, criavam a arquitetura daquele espaço.

De todos os momentos em que dancei na cidade, talvez este tenha sido o que mais conversou com os situacionistas, tendo em vista que os movimentos efetuados ligaram- se diretamente às características físicas do espaço, muito mais do que às sensações. Acredito, dessa forma, que

o movimento, portanto, revela evidentemente muitas coisas diferentes. É o resultado, ou da busca de um objeto dotado de valor, ou de uma condição mental. Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que se move numa determinada situação. Pode tanto caracterizar um estado de espírito e uma reação, como atributos mais constantes da personalidade. O movimento pode ser influenciado pelo meio ambiente do ser que se move (LABAN, 1978, p. 20)

Atravessei a praça dos três poderes – entre a Pinacoteca, a Câmara dos Deputados e a Prefeitura – e fui em direção à rua lateral da Prefeitura. Há uma árvore nesta rua com muitas ramificações. Uma árvore com curvas, que mesmo parada se movimenta nos desenhos naturais de seus galhos. Nesta árvore, fizemos mais uma intervenção, com a sugestão de Ian, enraizei as pernas e movimentei meus braços tentando seguir o fluxo da própria natureza. Fiquei alguns minutos contemplando esse momento de contato com a resistência - a resistência de um pedaço de verde que se mantém vivo em meio ao asfalto.

Descendo a caminho da Ribeira, entramos em uma rua tombada como patrimônio histórico do Rio Grande do Norte. A rua em questão mantém seu calçamento original, com pedras retiradas da praia e moldadas para facilitar a passagem dos carros dos séculos passados. Deitei no chão, utilizei os apoios dos pés e mãos para me movimentar, resistindo à gravidade, como se tentasse escalar um muro de pedras.

Continuei o percurso até chegar na Ribeira. Finalizei a caminhada no porto com os pés e mãos molhados nas águas do Rio Potengi, admirando um pôr do sol rosado. O céu escurecendo por trás dos barcos, concluí assim os trajetos errantes e dançantes pela cidade de Natal.