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Mais uma vez, o medo: Ribeira

3. Perdida em presença: a poética das ruas

3.2 Mais uma vez, o medo: Ribeira

Tomada pelos pensamentos da primeira investigação na Cidade Alta/Centro de Natal, desci para o bairro da Ribeira. Este bairro, ao nível do rio que deu origem à cidade – o Rio Potengi –, nasceu como uma vila de pescadores e tribos indígenas, no caminho entre a Cidade Alta e o Forte dos Reis Magos (fortaleza construída pelos Portugueses, com cinco pontas que permitiam a observação total da área pertencente a cidade). Recebeu esse nome, pois quando as marés do rio subiam, alagava-se a Praça Augusto Severo – que no final do século XIX recebeu o Teatro Carlos Gomes, atual Teatro Alberto Maranhão, o qual também permanecia alagado durante as cheias do rio (SEMURB, 2009).

A Ribeira só foi consolidada como um bairro de grande importância comercial após a construção do Porto de Natal. Até onde se sabe nos registros da SEMURB (2009), no ano de 2009, o bairro da Ribeira ocupava uma área de 60,5 hectares, com cerca de 631 domicílios permanentes, além de uma população residente de 1.923 pessoas.

Sendo assim, desci na parada do ônibus onde antes funcionava a rodoviária, onde fica o Museu de Cultura Popular Dijalma Maranhão, em frente ao Teatro Alberto Maranhão, que atualmente se encontra fechado e sucateado, passando por uma reforma. Foi na frente dele que parei para iniciar minha meditação.

Há pouco tempo nas minhas aulas de Yoga, tinha passado por um exercício de respiração associada a um movimento que ao inspirar abre-se os braços e expande o tronco como em um release2 e ao expirar curva-se a coluna em uma contração3, elevando os braços a frente e unindo polegar com polegar, dedo mínimo com dedo mínimo das mãos, em formato de flor de lótus. Durante a aula me senti tão confortável e integrada a execução do movimento que resolvi levá-lo às ruas.

Dessa forma, sentei-me em um banquinho de alvenaria construído na frente do teatro e fechei os olhos. Pude ouvir os barulhos dos carros, dos trabalhadores passando e conversando, entretanto, à medida em que passava a levar minha atenção ao movimento da minha coluna de acordo com o ritmo respiratório, fui sendo levada ao estado de auto- observação como se fosse ao mesmo tempo primeira e terceira pessoa de mim mesma. O estado de consciência inclui o conhecimento de que existem eventos acontecendo ao seu

2 Inspirar, encontrar na coluna uma linha reta vertical da pelve ao topo da cabeça (LEAL, 2006) 3 Curvatura da coluna associada à expiração. É possível realiza-la sem soltar o ar, porém ao expirar, o corpo se livra de bloqueios e o movimento ocorre de forma mais flexível favorecendo a contração (LEAL, 2006)

redor, é vivenciado exclusivamente pelo viés da própria existência e nunca pela observação de terceiros (DAMÁSIO, 2011).

Sentia o esticar e contrair do meu corpo partindo da pelve até o topo da cabeça, ao mesmo tempo em que me imaginava de fora, em transparência, enxergando cada pequena alteração muscular e óssea da inspiração e expiração. Acredito que dessa forma entrei no estado meditativo de atenção plena, entendendo onde estava e o que acontecia dentro e fora de mim. As metodologias de primeira pessoa, assim como a meditação, aumentam a sensibilidade do sujeito para a percepção da própria experiência, intensificando a consciência de si a medida que se tornam mais estáveis e espontâneas (SADE, 2009).

Como não me ative ao tempo de relógio que passei fazendo isso, permaneci nesse momento durante aproximadamente 30 repetições, variando o ritmo, mas tentando me manter em tempo lento.

Usar da lentidão acaba por ser tanto uma premissa quanto uma consequência do perder-se, pois é com a lentidão que é possível melhor ver, aprender e perceber a cidade e o mundo e pode estar presente mesmo em meios rápidos, pois trata-se da capacidade de buscar outras referências espaço-temporais (JACQUES, 2006). São aqueles que se apossam do tempo lento que melhor aproveitam dos estímulos que a cidade oferece.

Assim, caminhei devagar em uma diagonal. Pausei, girei em meu próprio eixo olhando todo o meu redor, voltei a andar no mesmo sentido que estava, o qual me levou direto a um boteco de esquina e dobrei à direita em uma rua onde é alocado um albergue noturno – local de acolhimento aos moradores de rua – e percebi algumas pessoas consumindo bebidas alcoólicas e conversando em frente a esse prédio. Enquanto ia de encontro ao local, avistei um beco que nunca percebera a existência. Notei ser um lugar estreito e novamente senti medo, assim como no centro da cidade, por ser mulher e por estar sozinha. O medo me fez andar em zigue-zague em tempo rápido, para frente, para sair dali. Aparentemente a sensação de medo é a que menos me permite vivenciar as localidades me apropriando da lentidão.

Dependendo do contexto em que aparecem as imagens causadoras de medo, o indivíduo pode paralisar-se ou fugir correndo da fonte de perigo. (...) A alternativa da imobilização induz automaticamente à paralisia, à respiração superficial e à desaceleração dos batimentos cardíacos (...); a opção de fugir aumenta automaticamente o ritmo cardíaco e a circulação do sangue para as pernas, já que para correr é preciso músculos bem nutridos nos membros corredores (DAMÁSIO, 2011, p. 146).

Cheguei em uma rua larga e com mais pessoas passando, apesar da quantidade ser, aparentemente, menor que outros pontos da cidade. Entrei em outro beco à esquerda, dessa vez, aparentemente, um pouco maior que o anterior, estranhamente bonito aos meus olhos, onde enfim consegui caminhar um pouco mais lento e me veio o impulso de mexer os braços, movimentos sinuosos que se expandiam gradativamente, senti leveza e sutileza nos braços e pernas, fluí livremente até sair dali. Associo essa reação ao fato de ter relaxado minha musculatura após muita tensão provocada pelo medo anterior. Movimento de alívio.

No final desse beco, notei uma rua asfaltada com muitas peixarias em funcionamento, percebi o cheiro forte dos peixes e abaixei a cabeça, virei para os lados e senti desagrado. O nariz, assim como os olhos, nos dá a capacidade de ampliar e compreender o mundo. O sentido do olfato muitas vezes está relacionado a questões biológicas, um exemplo é que diversas espécies de animais – assim como nós, humanos – exalam cheiros que levam ao instinto e desejo sexual. Já os odores como o de putrefação, por exemplo, provocam em nós uma repulsa que em outras espécies, ou até em crianças muito pequenas não causa. Isso está intimamente

ligado ao fato de que temos a capacidade de lembrar (inconscientemente) que o podre está relacionado ao que está morto e que também iremos morrer um dia (TUAN, 1983).

O movimento da cabeça logo deu sequência a uma contração nos ombros e a mão que subiu ao rosto. Permaneci contida no desejo de virar um caracol, de me fechar dentro da minha casa imaginária que me protegeria daquele odor. O olfato me conectou aquele

ambiente de forma negativa, trouxe o que senti de ruim externamente em forma de desprazer e respondi com movimentos moderados, controlados, em direção a dentro de mim.

Dessa forma obtive o reconhecimento do odor, a qualificação dele como algo ruim e consequentemente uma resposta corporal controlada porque

o desprazer, o desconforto, provoca movimentações interrompidas, controladas como as contrações (...) Fica evidente a integração entre as qualidades do movimento que não acontecem isoladas, mas em combinações qualitativas. Um sentido evoca mais enfaticamente qualidades de um fator do movimento, apenas como ponto de partida para a improvisação e para facilitar a compreensão sinestésica das dinâmicas do movimento (LEAL, 2009, p. 60).

Voltei a andar e mais a frente entrei em uma rua a qual sou familiarizada, Rua Chile – onde se encontram sedes de escolas de dança e alguns bares conhecidos – e foi impossível não me perder dentro das minhas memórias. As relações de sentido que fazemos nas nossas

vivências e as

qualidades que

atribuímos a

determinados lugares

só se fazem possíveis porque lembramos das

coisas que

vivenciamos, que

marcaram os

momentos, porque

lembrar delas é lembrar de nós mesmos e da nossa relação com o mundo (PORPINO, 2016).

Ainda segundo Porpino (2016), Merleau-Ponty tem, na sua compreensão de recordação, a própria experiência perceptiva, não algo anterior a ela. A memória emerge da percepção e não é resgatada por ela e “somente no ato de perceber é encontrado o sentido a partir do qual relembramos nossas experiências passadas” (PORPINO, 2016, p. 191). Então, como modificar o significado de algo que já está intrínseco ao nosso corpo

e mente pelas vivências anteriores? A autora permite a resposta dessa pergunta ao dizer que podemos compreender a evocação da memória como uma experiência estética que ao mesmo tempo é uma via de mão dupla entre o corpo e a dança. Com a dança é possível retomar o passado e recriar o presente projetando mundos simultâneos (PORPINO, 2016). Caminhei mais um pouco até chegar ao largo da R. Chile, onde tem um prédio grande, provavelmente construído entre a segunda metade do século XIX e século XX (período de crescimento e modernização da cidade de Natal) – a maior parte da ribeira tem prédios como este – que eu imagino que seja a antiga entrada para o porto. Na sua frente tem uma escadaria que contrasta com a realidade dali por ser um pouco mais atual, esculpida em um material que lembra granito.

Atrás dele fica o rio Potengi e o pôr do sol mais bonito de Natal – em minha opinião. Nunca estive naquele prédio para ver as portas abertas, normalmente não passo por lá em dia de semana. Algumas pessoas trabalhavam com algo relacionado às embarcações, ou ao trato de peixe. Na frente, um largo de paralelepípedo que acaba quando encontra mais construções dos séculos passados, a maioria abandonada, umas duas ou três casas onde hoje funcionam bares à noite.

É difícil distinguir a sensação que tive naquele ponto. Sentia um pouco de medo, ao mesmo tempo que me sentia contemplada por estar em um local com tanta história. Desci e subi as escadas de vários jeitos: de frente, de costas, rapidamente, um pouco mais lento, sentando nos degraus, pulando de dois em dois... Confesso que tive vergonha depois de perceber todos me olhando com caras de “o que essa doida está fazendo?”.

Atravessei a rua e voltei a caminhar próximo às casas abandonadas e aos bares fechados. Passei a respirar um pouco mais fundo, até que o ritmo do meu corpo diminuísse e eu pudesse voltar a um estado de calmaria. Enquanto fazia isso, ia olhando atentamente aos vários cartazes grudados nas paredes, um em cima do outro, com suas propagandas, ou letras de músicas, ou poesias, ou protestos políticos. Cada um que procurasse seu espaço para aparecer.

Retornei pela mesma rua cheia de casas, peixarias, antiquários e outras peculiaridades, até chegar novamente à rodoviária velha. Sentei um pouco e olhei ao redor. Sentia vontade de continuar na rua, mas já estava anoitecendo – tendo em vista que em Natal anoitece por volta das 17h40, quando o céu começa a escurecer – e o perigo aumenta para uma mulher sozinha. Queria andar pelo caminho que o trem faz quando sai da Companhia Brasileira de Trens Urbanos – CBTU, em direção ao bairro do Alecrim,

por uma avenida que passa no meio de uma comunidade conhecida como violenta, por ser de periferia: Passo da Pátria.

Pensei duas vezes antes de seguir. Desisti. Mas já fico com uma sugestão de por onde começar minha próxima andança. Tomei meu rumo subindo as ruas por trás do teatro, descobri uma delegacia da polícia civil que abriga, em sua frente, carros lançados por volta dos anos 60-80 (alguns com buracos de tiro de armas de fogo), muros de construções antigas caindo aos pedaços e uma escada quase destruída pelo tempo e pela falta de manutenção. Subi as escadas e já estava na rua em que meu pai mora - vejam só. Hora de parar e tomar um café.

Figura 8: mapa imaginário do trajeto percorrido na ribeira, 2018. Fonte: acervo pessoal.

***

Comparei as duas experiências vividas e tentei pensar sobre o questionamento que me veio quando estava na Ribeira: como modificar o significado de algo que já está intrínseco ao corpo e mente pelas vivências anteriores? Acrescentei ainda mais uma pergunta: qual a diferença entre as estéticas criadas na cidade durante a errância dos situacionistas caminhantes da década de 60 e a minha errância por meio do movimento dançado?

A produção artística da época situacionista evidenciava a necessidade de conhecer os centros urbanos através do perder-se dentro deles, não seguindo direções prévias, mas

sim despindo a cidade e descobrindo-a por meio da desorientação espacial como forma de ir contra seu uso apenas para produção industrial e comercial, mas também para prazer e contemplação. O caminhar pela cidade apareceu como premissa da experiência do erro como uma forma de valorizar o lugar por meio das impressões percebidas durante seu ato. Foi a partir das derivas situacionistas que a cidade passou a ser medida de acordo com afetos e paixões decorrentes da subjetividade do frequentar lugares e escutar seus próprios impulsos (CARERI, 2013).

Ainda muito ligado a parte visual e literária da arte, a Internacional Situacionista deu força ao olhar para a cidade de forma não-óbvia, contrapondo-se ao fato de que é comum que os centros urbanos sejam tomados por lugar de passagem e que seu uso seja restrito a apenas uma

forma de translado.

Quando optei por vivenciar

o que imaginara ser

próximo do que os errantes situacionistas faziam anos

atrás, na primeira

experiência relatada,

caminhei pelo centro de

Natal e percebi

características

arquitetônicas, sociais e políticas do espaço.

Fui capaz de estar presente andando na condição de observadora daquele lugar muito mais do que interventora em uma ação corporificada. Estive na posição passiva de receber e perceber as informações que o espaço me proporcionou, mas não me senti ativamente intervindo para construção de uma nova estética, porém absorvendo outras significações, criando novos lugares.

É certo que, mesmo não havendo uma modificação física em um espaço, o ato de caminhar por si só já implica em transformação dos seus significados. A presença da caminhada e as variantes percepções que advém da travessia é naturalmente uma forma de transformação da paisagem, mesmo não apresentando sinais arquitetônicos, muda-se culturalmente o significado daquele espaço e transforma-o em lugar (CARERI, 2013), qualifica-se com novos valores aquilo que antes carregava outros signos.

Entretanto, ao adicionar o movimento ritmado à caminhada, pude notar que utilizar da dança naquele momento e naquele espaço produziu uma infinidade de outras significações. Adicionar movimentos improvisados a partir do sentimento percebido durante o percurso é criar uma estética de afetamento mútuo entre corpo-espaço que transcende o que os olhos veem, transformam o espaço em sentimento, em lugar de transmissão de sensações. Meu corpo e a cidade se conectam em uma unidade poética, atribuindo aos espaços que antes caminhara, na infância, qualidades que ao serem sentidas marcam aquele lugar.

Isso é possível, pois se uma cena tem valor e o momento vivido receber uma carga de emoção suficiente ao cérebro, acarretaremos na absorção de registros visuais, sonoros, sensações táteis, odores e demais percepções que, ao serem revisitados, se atualizarão em significados próprios, relacionados a determinada cena, determinado lugar (DAMÁSIO, 2011)

Acrescento que entender o corpo como um organismo inteiro é também entender que nossas emoções transbordam os limites da pele – do que é interno e externo aos próprios órgãos – e que podem sair em forma de movimentações que também qualificarão o local onde estamos. O movimento dançado no espaço da cidade é uma potente forma de atribuir sentidos a ele, assim como virá dele novos significados para quem dança.

É uma forma de levar a poética do corpo indo de encontro a automação do movimento da cidade. É crítica à rapidez do cotidiano, assim como lança um olhar para o lugar urbano passageiro – que todavia ainda se encontra enquanto efêmero, porém tendo fixado no corpo uma gama de outras significações também efêmeras se levar em consideração que poderão ganhar novos entendimentos na próxima experiência vivida no mesmo espaço.

É o corpo que leva sua poética para o espaço urbano, que atualiza informações, dialoga com o entorno e trabalha em rede, organizando ideias recém articuladas com os ambientes de execução; é ele que inclui em suas ações o conceito de deslocamento não apenas espacial, mas também de transporte da experiência da dança para cidade e realiza a aproximação da arte com o cotidiano (SANTOS, 2012).

Marques (2010) diz que se não formos capazes de criar relações entre a dança e mundo, seremos incapazes de exercer nossa cidadania. É necessário que a linguagem de dança seja revestida de sentidos provenientes do mundo para poder propor outros caminhos de se fazer e ler a arte, assim como contribuir para a construção de outras possibilidades de viver na sociedade.

Pensando nisso, relaciono a minha prática errante e o surgimento de movimentos dançados improvisados em meio ao erro na cidade como parte da composição do próprio espaço urbano, pois a criação artística dentro desse cenário é capaz de diluir fronteiras e inventar intersecções com outros sentidos de espacialidade (LINKE et al., 2017).

Acredito que à medida em que o movimento dançado surge da cidade, a cena formada se enche de valores e emoções tão fortes que sobressaem ao simples caminhar por ela e perceber sua arquitetura. O corpo interage com o meio a que está contido para criar sua noção de mundo, assim como a representação do que é o mundo só é possível entrar no corpo por intermédio de suas vivências.

É como se uma micropercepção se abrisse aos corpos, permitindo-lhes vivenciar um espaço renovado. As calçadas, concretamente, continuam sendo as mesmas calçadas; mas, ao dançá-las, criamos, na renovada ocupação, outro espaço. Um espaço vivido, através da poética do corpo em dança (SANDER, 2012, p. 4)