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sobre quando não saber o que fazer

4. Retornar: as pegadas que não deixei para trás

Sentir e decidir. Apenas essas ações são necessárias ao errante. Para praticar o erro não se fazem necessários artifícios tecnológicos, nem mesmo é preciso deter grande poder aquisitivo. Não é preciso ter uma história, ser alguém de importância, vir de boa família, nem sequer ter um nome. O ato de caminhar está muito mais ligado à recusa do que à aceitação. À recusa, pois, abre-se mão de toda podridão e miséria, do mundo social embebido em violência, para viver em um espaço e tempo singular.

Gros (2010, p. 80) afirma que para desvencilhar-se desse mundo social injusto e desigual, é necessário encontrar em si mesmo os primeiros seres a habitarem a terra – aqueles intensamente ligados à natureza – portanto, é preciso “perder-se para escutar o seu coração, sentir em si palpitar o primeiro homem”. Isso significa ter o dever de não alimentar desejos, de não almejar resultados depois de uma caminhada errante, todavia, saber aproveitar a simplicidade de estar presente e depender apenas da sua própria presença. Basta caminhar sem expectativas,

pois no instante em que não se espera mais nada do mundo, durante essas caminhadas inúteis e tranquilas, então ele se entrega, se oferece, se abandona. Quando não se espera mais nada. Tudo é dado então como um acréscimo, uma graça gratuita da presença (GROS, 2010, p. 83).

Ainda me apropriando da ótica do autor sobre a caminhada, compreendo que errar pela cidade é a consequência de uma ânsia interior do seu praticante. Mais do que o desejo de encontrar ou descobrir as potências estéticas nos ambientes, o erro parte de um impulso, da vontade de partir. É quando o espaço sente a necessidade de tirar um tempo para si, estar do lado de fora e “estar do lado de fora” se traduz em uma sensação de viver em refúgios que, ao mesmo tempo, tornam-se os próprios elementos de estabilidade. Os refúgios nada mais são do que os “dentro” que se transformam pela partida: estamos dentro, para podermos ir para fora, em busca de outro abrigo e assim, tomamos posse da paisagem e mesmo o que está “fora”, vira “dentro”.

Qualquer estrada que pego, qualquer caminho que faço, ao mesmo tempo que está “fora” e “dentro”, é também o aqui. Aqui, onde quer que seja, sei que é apenas um pedaço de uma errância que se alimenta da vontade de “deixar para trás”. E do desejo mais profundo que tenho da partida a pé, ao misto de ansiedade e leveza de deixar-me ir, apenas deambulando posso afirmar com convicção o que sinto e expresso em minha experiência,

e só a mim – apenas a mim – cabe o julgamento e as decisões a serem tomadas no ato de perder-se. É importante entender também que

essa liberdade de escolha não é sempre consciente ou voluntariamente exercitada, sendo muitas vezes aplicada de maneira automática, sem o concurso de uma vontade consciente. (...)[porém] temos condições de nos conscientizarmos de nossas opções, podendo investigar porque fizemos uma tal escolha (LABAN, 1978, p. 51).

Apropriar-se do estar só ao percorrer trajetos errantes é, praticamente, uma atitude de sobrevivência: escolher o ritmo em que quero caminhar, sentir quais ruas devo entrar e quais não passar, são decisões mais fáceis de tomar sozinho, “porque é disso que trata, ao caminhar, de encontrar seu ritmo básico e mantê-lo [...], quando a questão é pautar-se pela passada do outro, para acelerar ou diminuir o ritmo, o corpo não reage tão bem” (GROS, 2010, p. 59).

Retomando experiências já relatas no capítulo anterior, houve um certo estranhamento, por exemplo, ao ir para rua acompanhada de um fotógrafo. Ao mesmo tempo que percebi a experiência como uma forma de errância, tendo em vista questões como a imprevisibilidade e a quebra de expectativas ao receber, naquele momento, sugestões de outra pessoa sobre aquilo que deveria ser feito; ter sido alvo de um tipo de direcionamento de outra pessoa, com outro olhar para a cidade, fez com que o meu ritmo de caminhada e de criação em dança, fosse, diretamente, interferido.

Mesmo que a interferência não seja, de todo modo, um acontecimento negativo – tendo em vista o que já foi colocado sobre lidar com o imprevisto – acredito ser importante seguir um ritmo próprio, ajustar os passos de acordo com o tempo e permitir que ele aja sobre o corpo. Isso não quer dizer, também, que ao estar solitário, em caminhada, é preciso seguir certa uniformidade nos passos; muito pelo contrário: o corpo não é uma máquina e tem sua liberdade de sentir respeitada para ajustar-se a cada momento, a cada passada (GROS, 2010).

Com isso, estar só agrega ao andarilho, também, a característica da lentidão – não aquela que se opõe à rapidez, e sim à precipitação, à não capacidade de sentir a caminhada e todas as sensações e impressões advindas dela. Existe uma ilusão de que a velocidade faz com que se ganhe tempo, ela nos leva a amontoarmo-nos de atividades e ações que se tornam, como o autor anteriormente citado nomeou de uma gaveta entupida e prestes a estourar, abarrotada. Em contrapartida, a “lentidão é bater perfeitamente com o tempo,

tanto que os segundos se escoam, pingam por conta-gotas como um chuvisco sobre a pedra. Esse estiramento do tempo aprofunda o espaço” (GROS, 2010, p. 43).

Continuando pelo olhar de Gros (2010), a calma que aparece com a lentidão é a consequência de permitir que se deixem os minutos e as horas respirarem, deixar que se viva mais o passar do tempo, com qualidade, de forma que o próprio corpo se faz infuso na paisagem. O mundo de quem erra caminhando e com calma, é vivido, pertence a ele, está para ele e com ele. Se “durante vários dias, moro numa paisagem, vou tomando posse dela devagar, torno-a meu espaço” (GROS, 2010, p. 39), sem a necessidade de modificá- lo de alguma forma, apenas caminhando e percebendo as sensações.

Dessa forma, mesmo com a solidão em uma caminhada errante, devido ao aproveitamento lento do tempo, nunca estou realmente só, caminhando; pois é no ato de entrega ao espaço que torno-me a própria paisagem: então, há o meu corpo e mente quando pratico a errância e o espaço que percorro, o qual ao mesmo tempo que está ao entorno, também faz parte da minha essência. O espaço que acompanha o corpo e o corpo que acompanha o espaço e, assim, não estou só ao mesmo tempo que crio uma unidade de sentidos.

Da mesma maneira, pensar a dança improvisada é entender que ela preenche o espaço e o recria em uma unidade com o meu corpo que se movimenta. Há uma sensação de pertencimento que surge a partir do gesto, do estar presente, vivenciando cada sentimento corporificado em movimentos que seguem um ritmo único e aplica uma gama de significações no lugar em que se está. Dançando, sou capaz de prolongar o espaço pelo movimento, não estar nele – apenas – mas criá-lo no momento em que danço; atravessá- lo ser atravessado por ele, assim como sou é atravessado pelo olhar do outro (PORPINO, 2018). Assim, não danço no espaço, sou o espaço, conecto-me a ele pelo gesto que surge do ato de viver o lugar e

para tanto, é importante não apenas tornar-se ciente das várias articulações do corpo e de seu uso na criação de padrões espaciais e rítmicos, como também apercerber-se do estado de espírito e da atitude interna produzidas pela ação corporal (LABAN, 1978, p. 53)

Estar em errâncias dançantes pela cidade, assim como na caminhada, é partir de um impulso interior de querer estar “fora” e requerer de seu praticante atenção e presença; sendo assim, desenvolvo o respeito pelo meu próprio ritmo e assumo características como a solidão e a lentidão, estas que permitem um maior aproveitamento do espaço e tempo,

e apuram a percepção de um mundo de experiências. Tal impulso interior gera determinadas expressões em gesto que

seja para um propósito definido, seja para refletir determinadas atitudes e estados de espírito, deriva de um poder que até os dias de hoje não foi explicado em sua natureza. Por outro lado, não se pode dizer que este seja um poder desconhecido, já que somos capazes de observá-lo em vários níveis, onde quer que haja vida (LABAN, 1978, p. 50)

Sendo assim e pensando nisso, retomo às duas questões nortearam as práticas investigadas durante esta pesquisa: que significações são criadas ou atualizadas ao usar de movimentos improvisados nos espaços da cidade pela errância? Como a cidade afeta a dança e a dança afeta a cidade? Relembrando as experiências que compuseram o capítulo anterior, repenso sobre seus sentidos e entendo que algumas discussões se fazem importantes para respondê-las.

4.1 Sobre as permissividades de sentir e ser: os significados criados

Estar na rua, sozinha e na condição de ser mulher, fez surgir em mim o sentimento do medo, que marcou a maioria das errâncias. Segundo o Panorama da Violência Contra as Mulheres no Brasil - 2ª Edição, publicado em 2018 na página do Senado Federal, com indicadores estaduais e nacionais, a cada 100 mil mulheres no estado do Rio Grande do Norte, uma taxa de 5,1 é morta em situação de feminicídio. Além disso, só no RN, pelo menos uma taxa de 68,8 (para cada 100 mil mulheres) ligaram – até o ano de 2016 – para o 180 (número de telefone para denúncias de violência contra a mulher) e relataram casos de violência física, violência psicológica, violência moral, violência patrimonial, violência sexual, cárcere privado e tráfico de pessoas.

No âmbito nacional, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan registrou pelos centros de saúde do país, um crescimento de 4559 casos de violência física, 22720 casos de violência psicológica/moral, 14237 casos de violência sexual e 1527 casos de violência patrimonial, em 2014; para 1012018 casos de violência física, 50955 casos de violência psicológica/moral, 27059 casos de violência sexual e 3055 casos de violência patrimonial, em 2016.

Muitos desses números, segundo o Panorama, aplicam-se em situações de violência doméstica (violência cometidas por pessoas próximas às vítimas), entretanto, grande parte de ocorrências policiais atendidas e registradas pelas Secretarias de Segurança Pública, se enquadram no chamado “lesão corporal dolosa”, quando o agressor

comete a violência física ou estupro, pontualmente e não progressivamente. Muitos desses casos não são solucionados.

A sensação do medo reflete no corpo, a apreensão de entrar para estatística. Estar na rua e sozinha foi como assumir o (infeliz) risco de passar por situações, no mínimo, desconfortáveis. O corpo não abandona os reflexos desse sentimento e mesmo na caminhada – a exemplo da primeira errância na Cidade Alta (página 43) –, a percepção da cidade embebida de medo, me foi menos proveitosa do que em momentos em que a sensação não esteve presente – passos acelerados, olhares menos fixos aos detalhes do espaço, vontade de sair daquele ambiente; foram características notadas na situação. A dança, nesses momentos, se apresentou de forma contida ou direta, como no caso em que estive no bairro da Ribeira (página 47). Atingidos pelo medo, ou desconforto, os movimentos registrados se voltaram para dentro, ou aconteceram em um tempo rápido, fluíram por meio do controle e os espaços além da minha própria cinesfera mal se aproveitaram, pois “a fluência do movimento é controlada por centros nervosos que reagem aos estímulos internos e externos” (LABAN, 1978, p. 49).

Entendo que, em uma movimentação, a fluência é influenciada pela ordem em que as partes do corpo são acionadas, sendo assim, relacionando os estudos de Laban às experiências vivenciadas no decorrer da pesquisa, nos momentos de sensações ruins ficaram perceptíveis ações que caracterizam este fator de movimento como controlado, pois

o controle da fluência do movimento, portanto, está intimamente relacionado ao controle dos movimentos das partes do corpo (...), a fluência do movimento é controlada quando o sentido dele toma um rumo para dentro, que se inicia nas terminações das extremidades, progredindo em direção ao centro do corpo (LABAN, 1978, p. 48)

Estudiosos do movimento, da dança e do teatro, como Rudolf Laban, em sua trajetória, propuseram práticas corporais que acreditavam que todo movimento e deslocamento do corpo partem de uma motivação interna, constituída por pensamentos, sentimentos e emoções. Devido a isso, “esses elementos internos ou motivações participam dos processos artísticos, modificam os parâmetros orientadores da criação e do movimento e ampliam as possibilidades de composição” (CHRISTÓFARO, 2019, página 01-02).

Além disso, Laban (1978, p. 51) também frisou que “todos os movimentos humanos estão indissoluvelmente ligados a um esforço o qual, na realidade, é seu ponto de origem e aspecto interior”, sendo esse esforço caracterizado por suas definições de

peso, espaço, tempo e fluência; cada qualidade surgida da junção dessas especificações, representam determinadas ações e apresentam resultados distintos nos gestos.

Dessa forma, ao mesmo modo em que o medo me privou de movimentar o corpo fluentemente livre, pelo espaço, sensações como a gratidão, a liberdade e o bem-estar, bem como a temperatura quente do sol e a textura do vento batendo no corpo de forma agradável, desencadearam em uma dança de maior aproveitamento espacial e maior amplitude de movimentações, a exemplo da vivência no Alecrim (página 64).

Dos sinos imaginários que tocaram músicas pelas pontas dos dedos, às curvas na coluna que se estenderam pelos braços, ao flexionar dos joelhos e movimentos dos pés; nada restringiu a utilização dos espaços da cidade. Percebo aqui, que

os movimentos que se originam do tronco, do centro do corpo, e depois fluem gradualmente em direção das extremidades dos braços e pernas são em geral mais livremente fluentes do que aqueles nos quais o centro do corpo permanece imóvel quando os membros começam a se movimentar (LABAN, 1978, p. 47)

Figura 15: avenida 9, 2018. Fonte: Ian Rassari

Nesse ponto das investigações dançadas, o movimento foi capaz de não apenas ser afetado pela percepção da cidade, como também de marcar naquele espaço, a expressão de uma plenitude e da completude sentida.

Assim, cada sentimento transpassado em movimento, fez do espaço, também, uma extensão daquilo que foi sentido. Um lugar de transmissão instantânea e união entre o corpo e a cidade, que vivem o mesmo momento e sua efemeridade – tendo em vista que as sensações são atualizadas a cada etapa da vivência. O espaço passa a ser, mesmo que por um curto período de tempo, o meu corpo e tudo aquilo que trago com ele. Eu viro o espaço pela dança, o espaço vira o corpo pelas sensações que a dança produz. O espaço se transforma em lugar, por receber toda carga de significâncias que carrego em mim.

Nesse momento, em que corpo e espaço se unem em suas singularidades, aprendo a encher-me de afeto por mim, tendo em vista que não há nada mais a perder, basta caminhar e dançar, sem qualquer expectativa. É então que posso chegar ao “benefício” principal de uma errância pelo gesto dançado: o ser.

O ser no sentido de encher-me de presença e vivenciar o momento, apenas observando toda e qualquer mudança dentro de mim e no espaço, minhas reações e percepções do ambiente. Ser, compreendendo que para ser é preciso estar, estar ativo e atento, pois “não ter nada para fazer exceto caminhar permite resgatar o puro sentimento de [...] redescobrir a simples alegria de existir” (GROS, 2010, p. 87).

Retomo ao ponto deste capítulo em que Gros (2010) reflete sobre encontrar em si o primeiro homem a habitar a terra. Revelar esse homem é reencontrar o que há de mais selvagem possível, o natural, remover em si mesmo o verniz do homem social e moldado, não para encontrar uma identidade própria, mas para despir-se da ideia de identidade e sentir-se intuitivo na relação com o meio.